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Escatologia e milenarismo no Ocidente medieval

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 184-187)

IDADES MÍTICAS

4. Escatologia e milenarismo no Ocidente medieval

A partir do século III as escatologias não sofreram enriquecimentos (a própria escatologia muçulmana, como se viu, é tributária das escatologias judaica e cristã) mas, principalmente depois do Ano Mil, a escatologia cristã tal como a judaica alimenta movimentos milenaristas. As duas religiões vão conhecer uma alternância ou uma simultaneidade de correntes, de escatologização através das seitas ou de re-eclesiastificação, no que diz respeito à Igreja cristã, através da fundação de novas ordens religiosas (segundo a interpretação de Ernst Troeltsch, no início do século XX).

Entre os Judeus que conhecem uma literatura profética e apocalíptica quase ininterrupta [cf. Silver, 1927; Lods, 1949], no século VIII o alfaiate iletrado Abu Isa de Isfahãn, que se considerou o quinto e último mensageiro do Messias e o discípulo Yudqhan Al-Raï preparam o movimento dos Karaites, "os que aceitam a escritura", por oposição aos Rabinos, "os que acreditam nas autoridades".

Entre os Cristãos desde o século I que se desenrolam controvérsias quer em tomo da proximidade da parousia, quer da universalidade da espera da salvação. Enquanto que a comunidade cristã primitiva se considera um grupo messiânico no quadro do judaísmo, as comunidades helenísticas defendem que a esperança de salvação é, desde então, universal.

A única modificação digna de nota na escatologia cristã oficial produz-se no século IV, com o reconhecimento do Cristianismo por Constantino. Eusébio de Cesaréia, na História eclesiástica [X, 4], considera que a vitória de Constantino é "a demonstração evidente do estabelecimento atual do reino escatológico de Deus no mundo". O monaquismo mantém, sem dúvida, uma certa presença escatológica na Igreja (S. Bernardo, ainda no século XII, mostrara a vida do monge, como uma prophetica expectatio 'espera profética'), mas Santo Agostinho canalizará a espera escatológica condenando, sem apelo, o Milenarismo que considera uma fábula ridícula [De civitate Dei, XX, 7- 13]; ao fazer da Igreja a encarnação da Cidade de Deus, sociedade escatológica, face à cidade terrena, disputada por Cristo e Satã, faz de certo modo parar a história: Otão de Frising em meados do século XIII, na História das duas

cidades, tira esta conclusão do agostinismo.

considerar próximo o fim do mundo, grande pensamento do seu pontificado, que anima a obra de conversão externa dos pagãos e de conversão interna dos cristãos [cf. Manselli, 1954]. No século VIII, o Venerável Beda na Explanatio

Apocalypsis defende, tal como Santo Agostinho, que o Milênio começou com a Encarnação.

A partir do Ano Mil desenvolvem-se movimentos milenaristas aparentemente sem uma base social precisa [cf. Cohn, 1957], embora ela lhes tenha sido atribuída por uma interessante interpretação marxista [cf. Töpfer, 1964]. Muitas vezes concentraram a atenção sobre a vinda do Anticristo que deve preceder o Milênio e que, mais do que o próprio Milênio adquiriu facilmente uma conotação política, através da oposição rei justo-rei tirano, que permite identificar o adversário com o Anticristo [cf. Bernheim, 1918; cf. também o ultrapassado trabalho de Wodstein, 1896, que tem o mérito de mostrar a nebulosa ideológica da escatologia cristã: Anticristo, Milênio, Fim do Mundo, Juízo Final].

A melhor ilustração desta utilização política do apocalipse foi o caso do imperador Frederico II, na primeira metade do século XII, considerado por uns o "Imperador dos últimos dias" e, por outros (influenciados pelo seu inimigo mortal, o papado), o Anticristo. Personagem apocalíptica, herói lendário (segundo o mito do sono do "Velho da Montanha", Frederico II teria descido pela cratera do Etna, de onde espera regressar à terra como Messias, enquanto que, segundo outros, teria descido ao Inferno), suscitou falsos Frederico II depois da sua morte, impostores ou visionários. Mas outra tradição que influenciou Savonarola, no fim do século XV, atribuiu o papel de imperador escatológico a um segundo Carlos Magno [cf. Folz, 1950]. A Cruzada, preparada pelo mito da Jerusalém celeste, teve aspectos escatológicos essenciais [cf. Dupront, 1960]. A escatologia não estava, como é evidente, menos difundida entre o Cristianismo grego.

Na Igreja existiu sempre uma corrente escatológica, desejosa de lhe dar um aspecto puramente espiritual, longe de todos os compromissos com este século [cf. Benz, 1934] e que identificava, de boa vontade, a Igreja Romana com a Babilônia, a grande Prostituta, a Besta do Apocalipse. Esta corrente encontrou o seu primeiro teórico em Joaquim da Fiore, que fundou a Ordem Fiorense e morreu em 1302. Na sua Expositio in Apocalypsum (1195) dividia a história da humanidade em três Idades: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. Esta terceira idade, precedida de grandes perturbações e infelicidades, veria o advento do reino dos puros, isto é, dos monges sobre a terra, que será governada segundo o Evangelho Eterno. Os cálculos mais ou menos esotéricos de que as obras de Joaquim da Fiore estão cheias, levam-no a fixar a data do fim da segunda idade e do advento da terceira, em 1260 [cf. Buonaiuti, 1931; Crocco, 1960; Reeves, 1969].

As idéias, cálculos e imagens de Joaquim da Fiore exerceram considerável influência até o século XIX, mas foram importantes sobretudo no século XIII, quando inspiraram uma parte da nova ordem franciscana, os Espirituais; Pietro de Giovanni Olivi, um dos seus mais eminentes representantes, escreve sob a influência de Joaquim, no fim do século XIII, um comentário do Apocalipse, que atacava vivamente a Igreja de Roma e expunha doutrinas escatológicas das quais procura, numa carta, persuadir o Rei de Nápoles, Carlos II [cf. Manselli, 1955]. Alguns Espirituais que pertenciam a outras ordens mendicantes, como o padre agostiniano Agostino Trionfo [século XIV), consideravam S. Francisco de Assis uma personagem escatológica e identificavam-no com o anjo do sexto céu do Apocalipse. Muitos religiosos e pessoas do povo esperaram a grande data de 1260 e, passada esta sem perturbações, recomeçou a espera dos fanáticos do Apocalipse que, em vez de ficarem desiludidos, redobram o proselitismo em torno da informação de uma espera da parousia, como o mostrou Festinger [1956].

Foi especialmente interessante o movimento escatológico – entre o milenarismo medieval e o messianismo da Idade Moderna – animado por Savonarola em Florença, de 1494 a 1498. Weinstein [1970] mostrou como, no fim do século XV, existiam duas correntes de espera escatológica: uma, otimista, que acreditava na proximidade do advento de uma idade de paz e felicidade, depois das atribulações da grande peste e do grande cisma e de algumas provações finais, em especial uma batalha decisiva contra os Turcos (também Giovanni Nanni de Viterbo no seu De futuris

Mundo não deixando escolha, além de um urgente arrependimento (também os dominicanos Manfredo da Vercelli e S. Vincenzo Ferreri).

Savonarola aderiu num primeiro momento, nos sermões da Quaresma em S. Gimignano, em 1486, à escatologia pessimista, pregando o arrependimento, continuou nesta linha, influenciado pelo Apocalipse de S. João, em Brescia e outras cidades do Norte da Itália e, por fim, em Florença em 1490, onde foi prior do convento de dominicanos de S. Marcos. A partir de 1494, os seus pontos de vista escatológicos mudaram completamente, tendo-se tornado adepto da escatologia otimista, esperando a iminência, não do fim do mundo, mas do Milenarismo terrestre. Ao mesmo tempo, identificava Florença com a nova Jerusalém deste Milênio e, em seguida à restauração da República de 1494, que depôs os Médici, participa ativamente nos acontecimentos políticos para estabelecer em Florença um governo de paz, baseado na estabilidade social, à imagem do governo veneziano e inspirado na política tomista. Nos Sermões do Advento, entre novembro e dezembro de 1499 – pregados na Catedral de Santa Maria del Fiore, cujo tema era o livro do profeta Ageu, que tinha falado aos filhos de Israel, depois da sua libertação do cativeiro da Babilônia – Savonarola que, perante o dilúvio da invasão francesa, tinha pedido aos florentinos que se fechassem na Arca, depois da partida do exército francês, em 28 de novembro, declarou que a Arca não era o refúgio do arrependimento mas como no tempo de Noé, o instrumento escolhido por Deus para uma grande renovação. "Segundo ele, o mundo entraria em breve numa quinta idade, que veria o aparecimento do Anticristo. Mas um Cristianismo renovado sairia vitorioso e propagar-se-ia até o Oriente. "Turcos e pagãos" seriam batizados passando a existir um só rebanho e um só pastor. Em todos estes acontecimentos Florença desempenharia um papel decisivo: seria a nova Sião, o centro da Reforma que ia ganhar toda a Itália, toda a Cristandade e, por fim, todas as nações da terra. Mas os florentinos deviam preparar-se para a tarefa que os esperava para uma renovatio temporal e espiritual. Agora que tinham expulso o tirano, deviam instaurar um governo que velasse pelo bem comum e servisse a todos de modelo" [1970, p. 39].

Em 1497, um dos partidários de Savonarola, Giovanni Nesi, publicava o Oraculum de novo saeculo, "no qual se misturavam o milenarismo cristão e o ocultismo hermético neo-pitagórico... Este Cristo reinava em Florença e a Idade do Ouro ia iniciar-se" [ibid., p. 31]. Savonarola que explicita as suas idéias escatológicas nos Sermões sobre o

Apocalipse (13 de janeiro de 1495) e no Compendium revelationum (Verão 1495) despertou o interesse excessivo

com a renovado, em Florença e fora dela, o que lhe criou inimigos poderosos, como o papa Alexandre VI Bórgia, que o proibiu de pregar e, como se sabe, Savonarola foi preso e o seu corpo queimado em 23 de maio de 1498, na Piazza della Signoria, em Florença.

Donald Weinstein considera que "se encontram na Florença de Savonarola todas as características do modelo milenarista, tal como os especialistas o definem: uma crise social, um chefe carismático, o mundo encarado como campo de batalha onde se defrontam as forças do bem e do mal, um povo eleito, a concepção de uma redenção final num paraíso terrestre" [ibid., p. 33]. Quando, no final da obra, se interroga sobre se o movimento de Savonarola foi medieval ou moderno, conclui que, se as fontes ideológicas, sejam elas as idéias apocalípticas ou o mito urbano, pertencem à tradição medieval, o movimento foi um anúncio do que se passou mais tarde, nomeadamente sob influência da Reforma, pelas "tendências para o sectarismo, a piedade laica, e o messianismo" que nele se manifestam [ibid., p. 384].

O movimento de Savonarola traz duas importantes novidades à escatologia: 12) Em ruptura com o agostinismo

(e regressando em certa medida à tradição de tipo judaico de uma nova Sião, identificada com uma cidade, senão com um povo), Savonarola quis mostrar que o Milenarismo se podia instaurar num lugar que não pertencia aos lugares tradicionais do profetismo judaico-cristão: Jerusalém ou Roma; 2º) Esta é a primeira tentativa de realização efetiva de uma utopia político-religiosa (como talvez Arnaldo de Brescia e Cola di Rienzo tinham sonhado, num contexto muito diferente, para Roma). Ao movimento de Savonarola faltou, no entanto, um caráter essencial da escatologia moderna, definido por Karl Mannheim: a união do espírito revolucionário com o chilianismo. Nem a base social de Savonarola,

nem o seu programa político têm nada de revolucionário. Donald Weinstein caracterizou excelentemente o "conservantismo político" de Savonarola, que não foi nem o "herói antiaristocrático e democrata" de alguns, nem o mero instrumento nas mãos de oligarcas, de outros. Numa perspectiva milenarista, que teria podido ser a de uma sociedade sem classes, foi simplesmente um defensor da pace universalis, de uma concórdia harmoniosa entre os cidadãos de uma sociedade, hierarquizada em termos mais justos [ibid., pp. 170 ss.].

5. A escatologia cristã (católica, reformada e ortodoxa) na Idade Moderna

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 184-187)

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