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Do Renascimento até hoje: fim das Idades Míticas? As etapas da cronologia mítica

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 166-172)

IDADES MÍTICAS

4. Do Renascimento até hoje: fim das Idades Míticas? As etapas da cronologia mítica

4. Do Renascimento até hoje: fim das Idades Míticas? As etapas da cronologia mítica

O florescimento do tema da Idade do Ouro no Renascimento não deve criar-nos ilusões. Primeiro, porque a Reforma e a Contra-Reforma vão ter maior respeito pela concepção cristã do tempo, que exclui o tempo circular, o tempo cíclico, o eterno retorno. A idéia do Milênio só se conservará, talvez um pouco, nas seitas. Depois, porque a periodização da história se encaminha para a imposição da idéia de progresso, que triunfará com o iluminismo do século XVIII.

4.1 A concepção da Idade do Ouro no Renascimento

Cioranescu [1971] exagera, sem dúvida, quando escreve: "A partir do Renascimento, a tradição clássica reduz- se a um simples motivo literário, que sobrevive artificialmente, tal como as ninfas de Ronsard ou os temas pedidos à mitologia. Esta tradição não se liga a nenhuma realidade presente ou previsão de futuro, porque a visão circular do tempo histórico se tornou também numa simples imagem sem profundidade; talvez porque, a partir do momento em que já não dependia da dura necessidade de trabalhar, o mito só punha problemas, sem apontar soluções. A tendência continua, no entanto, bem presente. É certo que a concepção da Idade do Ouro revela, no Renascimento, características originais interessantes, mas que alteram profundamente o tema tradicional. Para os humanistas, o retorno da Idade do Ouro não é o regresso a um estado de natureza, mas, pelo contrário, depois da barbárie da media

aetas (Idade Média, o termo e a idéia acabam de nascer), um renascimento do mundo que é, sobretudo, o das letras e

das artes [cf. Reeves, 1969, pp. 429-452]. É a exclamação de Rabelais: "Estão já constituídas todas as disciplinas!", que é um eco da de Marsilio Ficcino, na sua famosa carta de 1492, sobre a Idade do Ouro: "Se é legítimo apelidar o nosso século de Idade do Ouro, é porque ele produz espíritos de ouro (aurea ingenia). Este século, à semelhança do ouro, trouxe para a luz as artes liberais quase extintas, a gramática, a poesia, a oratória, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música, os cânticos sagrados da antiga tradição de Orfeu. E isto em Florença... E sobretudo na corte do muito poderoso duque de Urbino... E, na Alemanha, foi no nosso tempo que se inventou a imprensa".

Savonarola passará desta concepção humanista da Idade do Ouro a uma concepção ascética e virá a queimar na praça pública, o que antes tinha adorado.

Do mesmo modo, um século mais tarde, Tomasso Campanella – cuja obra supõe várias leituras, mas surge como fruto de um homem de transição entre a Idade Média e o Renascimento, atrasado em relação a Galileu e Descartes – na Monarchia Messiae (1605) escreve que, no saeculum aureum, o das suas esperanças, ver-se-á o desenvolvimento da sabedoria humana através da difusão da paz, a ciência multiplicar-se pela segurança da navegação, as viagens, o comércio, a informação.

A segunda grande originalidade, proveniente do tema da Idade do Ouro, refere-se à América. Mas, também aqui, o tema é ambíguo. Se é verdade que durante muito tempo a idéia de um retorno a um paraíso natural, a descoberta do índio, "bom selvagem", a crença de que as Américas eram as "Ilhas Afortunadas" [cf. Eliade, 1969, pp. 182-2031, é também certo o que Cioranescu observou sobre o contato com os índios das Antilhas que não semeavam e não trabalhavam, faziam as colheitas em comum e, no entanto, conheciam a guerra e o ódio e viviam num século de ferro, "a idéia de uma Idade do Ouro frugal e pura, primitiva e modesta, tinha-se desfeito e o seu esquema não resistia à análise" [1971, p. 88]. Apresenta como exemplo desta evolução do tema da Idade do Ouro, Antonio de Guevara, que no seu Libro Llamado Relox de príncipes (1529) evoca uma Idade do Ouro da felicidade "singularmente limitada", onde o trabalho é necessário e, sobretudo, onde existe, pela primeira vez, a propriedade privada [cf. Levin, 1969].

Também os esforços de alguns exegetas católicos, para conciliar as perspectivas cristãs da história e o tema da Idade do Ouro e para dar crédito à espera de um papa angélico (Papa angelicus), na tradição do joaquinismo do século XIII, não chegam muito longe. Coelius Pannonius (Francisco Gregário) no comentário do Apocalipse, de 1571,

ao considerar a sétima idade sabática como o retorno dos aurea saecula, só encontra, para defini-la, a alusão a dias mais felizes, a um sol mais brilhante, ao desaparecimento do raio e do trovão.

Bartolomeu Holzhauser, na interpretação do Apocalipse, no princípio do século XVII, define a próxima idade da felicidade essencialmente pelo desaparecimento dos hereges e pela realização na terra da palavra evangélica: "Haverá um só pastor e um só rebanho, graças à constituição de uma monarquia católica, que reúne todos os homens" [Reeves, 1969, p. 463].

O calabrês Tommaso Campanella, na Monarchia Messiae, no De Monarchia Hispanica, nos Aforismi identifica também "a Idade do Ouro socialista" – que julgou ver na Cidade do Sol – com a monarquia universal única, como tinha anunciado Guillaume Postei e, na linha da politização joaquinista e medieval do milenarismo, designa a Espanha e, depois, desiludido, a França, como sendo a monarquia do século da felicidade; já no fim da vida (1639) verá no futuro Luís XIV, que acabava de nascer, o monarca universal da Idade do Ouro.

4.2 As ideologias do século XVIII e XIX

A partir da revolução científica do século XVII, as Idades Míticas e a Idade do Ouro parecem não passar de termos literários, metafóricos, que vão ao encontro das velhas luas da mitologia, como diz Cioranescu. Podemos no entanto perguntar se nas ideologias dos séculos XVIII e XIX não estiveram sempre presentes, mais ou menos camufladas, as velhas ideologias cronológicas. A teoria de Rousseau, principalmente no Discours sur l'origine de

l'inégalité parmi les hommes, assemelha-se muito a uma ideologia da Idade do Ouro [cf. Lovejoy, 1923; Whitney,

1934].

O romantismo, sobretudo o alemão, por oposição ao "progressismo" das Luzes, muitas vezes virou os olhos para um retomo à Idade do Ouro [cf. Mãhl, 1965]. O socialismo, lançando por terra o sentido da cronologia mítica e proclamando que "a Idade do Ouro que se julgava estar para trás está na nossa frente", marca, tal como já acontecera com o judaísmo e o cristianismo, uma viragem na concepção da história, mas nada inclui da ideologia cronológica, no seu milenarismo materialista.

A teoria das três idades do positivista Auguste Comte nada tem que ver com as velhas concepções dos três estados, como, por exemplo, as de Da Fiore?

Se a teoria das Idades Míticas continua, de modo subjacente, a ser fascinante, é porque, para lá do conteúdo atraente de temas como a Idade do Ouro, o País da Abundância ou Milênio, estas teorias hoje extravagantes foram um dos primeiros esforços – um esforço plurissecular – para pensar e domesticar a história.

A escatologia dá sentido à história, as Idades Míticas dão-lhe conteúdo e ritmo no interior desse sentido. O que está em causa, em primeiro lugar, nas Idades Míticas, é a idéia de progresso. Tudo era, realmente, melhor no início? Podemos ser felizes na história e no tempo, sem os negarmos? Simultaneamente com a idéia de progresso está também em jogo a de civilização. Será que a felicidade, a justiça e a virtude se situam numa idade primitiva da natureza selvagem ou que, como na escatologia, reencontramos o conteúdo revolucionário na idéia de igualdade e de inexistência da propriedade privada? Ou será que o progresso não está, pelo contrário, no desenvolvimento das técnicas, artes, costumes, em suma, na cultura?

As teorias das Idades Míticas introduziram, no tempo e na história, a idéia de período e, ainda, a idéia de uma coerência na sucessão dos períodos, a noção de periodização. Como corolário, uma questão: como e por que razão se passa de um período a outro? Daí decorre toda uma série de problemas essenciais: os da transição, do motor da

história e, evidentemente, do sentido da história. É certo que as concepções das Idades Míticas pejaram o pensamento

histórico de dados tão mistificadores ou demolidores como revolucionários. Do ponto de vista científico, conseguiu-se um grande progresso quando a periodização deixou de estar ligada às idades, miticamente valorizadas ou desvalorizadas. Foi no século XVI que apareceram dois sistemas de periodização que marcaram uma viragem na

ciência histórica. Um, é a divisão tripartida da história da humanidade em história antiga, história medieval e história moderna. Outro, é a definição aritmética do século em cem anos, por oposição à noção sagrada, mítica, de saeculum.

Hoje, os historiadores vêem de preferência os malefícios destas periodizações que encerram a história em falsas balizas e esquecem-se dos progressos que através delas se realizaram.

Está então morta a Idade do Ouro? Estão mortas as Idades Míticas? Quando deparamos com a Idade do Ouro das seitas, dos hippies e dos ecologistas, dos economistas do crescimento zero, permitindo-nos pensar que as Idades Míticas não estão mortas e que talvez venham a conhecer uma renovado nas mentalidades, senão nas teorias dos historiadores. [J. Le G.].

Tradução: Irene Ferreira

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As idades míticas (cf. mythos/logos) são épocas excepcionalmente felizes, sem trabalho (caracterizadas, em certos casos, pelo automatismo de produção de bens), sem proibições ou impedimentos de tipo algum (cf. incesto,

morte, direito, poder/autoridade, repressão); foram teatro de excepcionais cataclismos, de importância não raramente

fundamental para o próprio destino (cf. futuro) de uma cultura (cf. cultura/culturas).

O seu estudo constitui uma abordagem privilegiada das idéias sobre o tempo (cf. tempo/temporalidade), a

história e as sociedades perfeitas (cf. utopia). Essas idades situam-se umas vezes nas origens dos tempos, outras no

fim (cf. escatologia, milênio).

No primeiro caso, quando a idade mítica é tomada como ponto de partida, segue-se-lhe um período de decadência (cf. também periodização); no segundo, pode conceber-se a história como um progresso (cf.

progresso/reação).

Pode ainda acontecer que o tempo seja pensado como uma sucessão de ciclos (ef. ciclo) em que as idades míticas retornam indefinidamente (cf. também calendário, sagrado/profano).

ESCATOLOGIA

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