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APENAS A NUDEZ FEMININA SERÁ CASTIGADA?

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 192-199)

O ensaio apresentado por Horney no Congresso supracitado é intitulado Sobre a

gênese do complexo de castração na mulher. Neste trabalho, Horney assevera que os

psicanalistas têm tomado como axioma o fato de que as mulheres se sentem em

53 O que, de certa forma, corrobora a hipótese de André (1996) de que Anna é a paciente central

considerada no texto de Freud sobre essas fantasias (p. 49). Essa hipótese também é defendida por Sayers (1922, p. 144-145).

desvantagem devido a seus órgãos sexuais, sem considerar que isto constitua um problema em si, possivelmente devido ao fato de que, para o narcisismo masculino, parecer algo tão evidente que dispensa explicações. Contudo, sendo esse axioma correto, dele derivaria a conclusão de que metade da humanidade não está satisfeita com seu sexo (Horney, 1979, pp. 71-72).

Horney afirma que a forma mais corrente de inveja do pênis é aquela que aparece ligada ao fato dos homens poderem urinar em pé. Poder-se-ia considerar esta inveja como contida no erotismo uretral, pelo fato do jorro de urina ter um caráter sádico, estando ligado a uma forma de onipotência. Mas Horney não dá a esta questão demasiado valor. Considera como muito mais importante o caráter exibicionista e escopofílico da fase fálica, pois quando o menino urina é autorizado a expor seu pênis e olhar para ele, satisfazendo assim uma parcela de sua curiosidade sexual. Para Horney, isto explicaria o fato de que o exibicionismo, nas meninas, e depois nas mulheres, estaria ligado não aos órgãos sexuais, como no sexo masculino, mas sim ao corpo como um todo, visto seus órgãos não serem visíveis com facilidade. Assim, as roupas femininas, que tendem a mostrar muito mais que as masculinas, seriam uma tentativa de compensação exibicionista (Horney, 1979, pp. 71-75).

O terceiro fator da inveja do pênis concentrar-se no fato de não poder urinar em pé estaria relacionado à ligação feita entre poder olhar e tocar com a masturbação. As meninas acreditariam que a licença concedida aos meninos e homens de segurar e ver o seu pênis cada vez que urinam seria uma licença para a masturbação. O fato de que, na maturidade, lhe esteja reservado um papel mais importante que o do homem na reprodução não pode representar compensação alguma para a menina nesta fase, por estar além de suas potencialidades de satisfação direta (Horney, 1979, pp. 75-76).

Em seguida, Horney questiona a relação entre o desejo (sentido por algumas mulheres) de ser um homem com a inveja do pênis. Afirma então que, em sua experiência clínica, quanto maior o desejo de ser homem demonstrado por uma paciente, maior havia sido a fixação inicial no pai. Ou seja, teria havido uma tentativa, por parte da menina, de dominar o complexo de Édipo de maneira normal, a partir de uma identificação com a mãe e, como esta, tomar o pai como objeto amoroso. Na infância, a menina elabora, com base em sua identificação (hostil ou amorosa) com a

mãe, a fantasia de haver sofrido a plena apropriação sexual por parte do pai. Essa fantasia levaria a uma outra, a de ter sido posteriormente traída pelo pai. Em seguida, ambas as fantasias, no contato com a realidade, redundariam em uma sensação de desengano. O que depois levaria a um desejo de ser homem, evitando a identificação com a mãe, seria o sentimento de culpa na raiz da relação: ser igual à mãe / ter relações com o pai. Da mesma forma dar-se-ia o abandono do desejo de ter filhos, visto sua constituição original ser o desejo de um filho do próprio pai (Horney, 1979, pp. 77-82).

A inveja do pênis seria então um substituto (sem culpa para o ego) do desejo pelo pai, pois a castração ter-se-ia dado como punição pela relação concreta com ele. Em todos os casos em que predomina o complexo de castração na mulher, ocorre invariavelmente uma tendência mais ou menos marcante à homossexualidade. Desempenhar o papel do pai conserva sempre o desejo pela mãe, em um sentido ou em outro. Assim, o homem neurótico que se identifica com sua mãe, e a mulher neurótica que se identifica com seu pai, repudiam do mesmo modo seus papéis sexuais respectivos (Horney, 1979, pp. 83/87).

Horney segue afirmando que o medo da castração no homem neurótico – sob o qual se ocultaria um desejo de castração, ao qual, na sua opinião, nunca se presta suficiente atenção – corresponderia exatamente ao desejo do pênis na mulher neurótica. Essa simetria seria muito mais óbvia não fosse o fato da atitude do homem em sua identificação com a mãe ser diametralmente oposta à da mulher em sua identificação com o pai. No homem, o desejo de ser mulher não só é contrário ao seu narcisismo consciente, mas implicaria na realização da castração. Na mulher, a identificação com o pai se vê confirmada por desejos antigos que apontavam na mesma direção, e não leva consigo sentimentos de culpa de nenhuma classe (Horney, 1979, pp. 87-88).

Apesar de suas críticas à idéia de uma inveja do pênis universal entre as meninas, ao menos neste primeiro trabalho Horney parece confirmá-la, desenvolvendo apenas uma discussão sobre seus motivos. Motivos esses que, diga-se de passagem, não se diferenciam muito daqueles apontados por Freud, embora este último possa não ter chegado ao cerne de algumas considerações feitas por esta autora. Parece que o que há de mais original, nesta sua obra inicial, é o fato de desenvolver melhor a relação primária da menina com a mãe, colocando a identificação com esta como sendo anterior

ao desejo pelo pai, que seria dela decorrente. É fato que, como foi anteriormente afirmado, este ensaio representa uma resposta a Abraham54 (anteriormente seu analista, por sinal), e não a Freud. É possível também perceber que sua análise da relação da menina com a mãe irá afetar, posteriormente, as teses kleinianas.

RESTA-NOS APENAS O VAZIO55

No início de 1923, Freud termina de escrever um artigo no qual faria uma revisão de suas teses sobre o desenvolvimento sexual infantil a partir dos Três ensaios... (desde 1905 até sua edição de 1922). Nesse artigo, intitulado A organização genital

infantil (uma interpolação na teoria da sexualidade)56, Freud afirma que, em seu texto supracitado de 1905, a ênfase incidia na diferença fundamental entre a vida sexual infantil e adulta. Em seguida, as organizações pré-genitais da libido e o início bifásico do desenvolvimento sexual teriam tomado a maior parte de seu interesse. Por fim, a partir das conclusões a que chega pelas pesquisas sexuais infantis, Freud teria reconhecido a proximidade da vida sexual das crianças, em torno dos cinco anos de idade (desfecho do Édipo), com a vida sexual adulta, em função da escolha única de objeto (Freud, 1976i, pp. 179-180).

Nesta revisão de 1923, contudo, Freud afirma que a aproximação da vida sexual da criança com a do adulto está além da escolha de objeto. Mesmo não havendo, na infância, um primado dos órgão genitais à serviço da reprodução, é possível observar uma "organização genital infantil", na qual a principal característica seria o fato de que, para ambos os sexos, o único órgão genital levado em consideração ser o masculino. O que ocorreria, portanto, seria uma primazia do falo57. Afirma então só ser possível descrever como isso afeta a criança do sexo masculino, por desconhecer os processos correspondentes na menina. Freud retoma então a descoberta, pelo menino, de que algumas pessoas não possuem pênis, e sua associação deste fato à ocorrência de uma castração, sendo a mãe o indivíduo que mais terá dificuldade de aceitar como sendo "castrado". Na fase da

54 Esta discussão não pôde ser melhor aprofundada pela impossibilidade de acesso ao trabalho de

Abraham, excetuando-se as observações feitas por André (1991, p. 7 e 1996, p. 25).

55 Do poema Primavera partida, de Li Travassos.

56 Cuja essência seria acrescentada à edição de 1924 dos Três ensaios...

organização genital infantil, [...], existe masculinidade mas não feminilidade. A antítese aqui é entre possuir um órgão genital masculino e ser castrado. Somente após o desenvolvimento haver atingido seu completamento, na puberdade, que a polaridade sexual coincide com masculino e feminino. A masculinidade combina sujeito, atividade e posse do pênis; a feminilidade encampa objeto e passividade. A vagina é agora valorizada como lugar de abrigo para o pênis; ingressa na herança do útero (Freud, 1976i, p. 184).

É interessante observar que, tendo Freud descrito em vários textos anteriores a importância do pênis na fase edípica das crianças de ambos os sexos, bem como afirmado que a descoberta da diferença sexual levaria a menina ao sentimento de inveja, neste texto ele negue conhecer os processos correspondentes na menina. Estaria ele se sentindo atacado pelos poucos questionamentos que até então haviam surgido, dentro do movimento psicanalítico, sobre o desenvolvimento sexual da menina? Vale ressaltar que na descrição que faz da significação que ganha a vagina para o homem adulto, Freud afirma que este órgão ingressa na "herança do útero", afirmação que pode ser facilmente reportada às teses ferenczianas em Thalassa.

UMA PRÓTESE QUE NÃO FALA FRANCÊS58

Em fevereiro de 1923, inicia-se um longo tormento na vida de Freud, com a descoberta de um tumor maligno em sua mandíbula. Felix Deutsch, então seu médico, que procede, em abril, à primeira das trinta e três cirurgias que Freud viria a sofrer, esconde do paciente a natureza da doença (atitude que jamais seria perdoada). Em junho, Freud perde o neto favorito, Heinerle, em função de uma tuberculose, o que o leva a uma séria depressão. Após sofrer uma segunda operação, em outubro, na qual grande parte do seu maxilar superior é retirada, Freud precisa usar uma prótese altamente incômoda e desagradável visualmente, que seus discípulos mais próximos não tardam em apelidar de "o monstro". A voz de Freud fica anasalada, ele passa a evitar comer na presença de outras pessoas, e complicações vão levando a dificuldades auditivas em seu ouvido direito (Jones, 1979b, pp. 649-660).

58 A prótese que precisou colocar, para substituir uma parte de seu maxilar, retirada em função do câncer,

incomodava Freud grandemente, dificultando sua fala. Anos depois da implantação desta prótese (possivelmente em 1926) quando até mesmo seu alemão era difícil de ser compreendido, e o francês impraticável, ele fez uma visita a uma amiga francesa, tendo que pedir ao marido dela que traduzisse suas palavras, para isso se justificando com a frase: "Minha prótese não fala francês" (Freud, conforme citado por Jones, 1979b, p. 664). Tem-se aí uma amostra do humor judeu de Freud, incurável mesmo nos momentos mais difíceis da doença.

Desde o começo de sua doença, Freud só aceita a filha Anna como sua enfermeira, por isso, os planos dela de morar em Hamburgo, para cuidar do outro filho da irmã falecida, e de trabalhar na recém fundada clínica de Eitingon em Berlim, são completamente frustrados, ligando sua história definitivamente à história do pai. A partir daí, ela não só viajaria com ele para a execução de seus tratamentos médicos, como editaria e exporia sua obra, e o representaria nas mais diversas situações (Sayers, 1992, p. 145-146).

Embora tendo que passar um período razoavelmente longo inativo, Freud nem por isso descuidaria "dos seus" em 1923. Ao saber que em função da inflação que assola a Alemanha (e por precisar manter financeiramente os membros de sua família), Andreas-Salomé atende pacientes até dez horas por dia, Freud irrita-se muito. Sugere que ao invés desta atitude, que ele chama de "tentativa de suicídio mal dissimulada", ela aumente o preço das consultas, podendo assim diminuir o número de pacientes. Além disso, embora Andreas-Salomé não lhe peça nada, envia-lhe freqüentemente quantias generosas de dinheiro (Roudinesco & Plon, 1998, p. 24).

Helene Deutsch passa, por esta época, um tempo em Berlim, onde faz uma análise didática com Abraham e, aproveitando a distância do marido, tem um caso com o psicanalista Sandor Rado. Preocupado com esta tentativa de emancipação de Helene, Freud escreve a Abraham, pedindo-lhe para evitar que o tratamento resultasse na separação dos Deutsch, no que é atendido. Durante sua permanência em Berlim, Helene Deutsch escreve seu primeiro trabalho sobre a psicologia da mulher. Também em 1923, Horney, que se sente marginalizada em Berlim, emigra para os Estados Unidos, instalando-se em Chicago, onde um ex-aluno a nomeia diretora assistente do instituto que acabara de fundar. E o marido de Klein junta-se a ela e os filhos na capital da Alemanha (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 151/356 e Sayers, 1992, pp. 44/206).

Ainda em 1923, Ferenczi e Rank publicam uma obra intitulada Perspectivas da

Psicanálise – sobre a interdependência da teoria e da prática, na qual propõem

algumas inovações, o que provoca uma certa reação no grupo mais conservador do meio psicanalítico. Em fins desse ano, Rank publica a obra O trauma do nascimento, na qual defende que no momento do parto todo ser humano sofre um trauma, devido à separação biológica da mãe, o que o levaria a desejar inconscientemente a volta ao útero

materno. Essa tese59 fugiria da concepção clássica do complexo de Édipo, por conferir uma especificidade ao desenvolvimento sexual da mulher. Em sua obra, onde considera a primeira separação biológica da mãe o protótipo da angústia psíquica, Rank teria feito uma crítica da teoria freudiana clássica, demasiadamente centrada – em sua opinião – no lugar do pai e no falocentrismo. Freud mostra-se, por um lado, bastante interessado na teoria de Rank mas, por outro, preocupado que ela pudesse significar a dissolução de todas as suas teorias sobre as neuroses. Ao receber uma carta de Abraham sobre o assunto, comparando Rank e Ferenczi a Jung, Freud imprudentemente repassa estas dúvidas a Rank que, por sua vez, as repassa a Ferenczi, provocando muita confusão (Jones, 1979b, pp. 620-629 e Roudinesco & Plon, 1998, pp. 642-643).

Em 1924, em função das discussões sobre a pertinência de suas novas teorias, Rank retira-se do Comitê Secreto. Freud, injustamente, culpa Abraham por isso. Anna Freud assume, a partir de então, o lugar de Rank no Comitê, e seria a única mulher a dele participar, em toda sua duração. Também no início de 1924, após o casamento de sua filha, Melitta, Klein separa-se do marido e inicia a sua segunda análise, desta vez com Abraham, de quem adotaria algumas idéias para desenvolver suas próprias perspectivas sobre a organização do desenvolvimento sexual. No VIII Congresso da

IPA, Reich expõe seu conceito de "potência orgástica", que não é bem recebido pelos

ortodoxos. Helene Deutsch apresenta seu trabalho sobre a psicologia da mulher, escrito em Berlim, que seria publicado no ano seguinte. Ela também assume a direção da

Policlínica Psicanalítica de Viena neste ano – com Reich sendo nomeado diretor do Seminário de Psicoterapia desta instituição – e escreve um livro intitulado Psicanálise das funções sexuais da mulher (Autor desconhecido em Reich, s.d., p. 12 e Roudinesco

& Plon, 1998, pp. 151/259/432).

Ainda no Congresso da IPA, Klein apresenta uma comunicação altamente controvertida sobre a psicanálise de crianças pequenas, na qual questiona alguns aspectos do complexo de Édipo, mostrando a internalização precoce que a criança faz de suas relações com a mãe. Além disto, demonstra a possibilidade de utilizar a técnica analítica em crianças quase sem alterações, do que Anna Freud viria a discordar veementemente. Klein é apoiada por Abraham e também por Jones, que iria tentar

convencer Freud a aceitar estas declarações "heréticas". Em setembro, Hermine von Hug-Hellmuth é assassinada por seu sobrinho, o que atingiria a psicanálise de forma bastante negativa. Em novembro, estimulado por esta tragédia, Fenichel cria, na DPG, um Seminário de Crianças, onde serão abordados tanto os problemas da psicanálise de crianças quanto a ligação entre política e psicanálise. Também neste mês, Rank despede-se de Freud, e parte para os Estados Unidos, onde iniciaria uma carreira bem sucedida (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 259/357/432/643/810).

Em dezembro do mesmo ano, Klein vai à Áustria, para fazer uma comunicação sobre a psicanálise de crianças na WPV e, nesta ocasião, confronta-se diretamente com Anna Freud. Estava aberto o debate sobre o que deveria ser a psicanálise de crianças: uma forma aperfeiçoada de pedagogia, levando-se em conta que a criança não busca a análise por seu próprio sofrimento, mas em função do sofrimento que provoca nos outros (Anna Freud), ou a oportunidade de exploração psicanalítica desde o nascimento (Klein). Também é a partir de 1924 que Reich passa a interessar-se mais seriamente pelas obras de Marx e Engels, buscando nelas uma origem social para as doenças psicológicas, e tentando conciliar os conceitos marxistas com os da psicanálise (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 259/432/651).

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 192-199)