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QUEM EU AMO EM TI?

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 187-189)

Em 1920, Freud publica um artigo intitulado A psicogênese de um caso de

homossexualismo numa mulher. Neste texto, discute a etiologia da homossexualidade,

que acredita ter bases tanto físicas (congênitas) quanto psíquicas. No caso em questão, Freud afirma que, embora a paciente não apresentasse nenhum desvio óbvio do tipo físico feminino, suas feições eram agudas, o que poderia ser visto como indicador de "masculinidade física". Sua objetividade e sua acuidade de compreensão também poderiam ser vinculados à masculinidade49. Em seu comportamento para com seu objeto amoroso, havia "assumido inteiramente o papel masculino, isto é, apresentava a humildade e a sublime50 valorização do objeto sexual tão características do amante masculino, a renúncia a toda satisfação narcisista e a preferência de ser o amante e não o amado" (Freud, 1976h, p. 193).

O objeto amoroso escolhido pela paciente de Freud descrita neste artigo, lembrava, de algum modo, seu irmão mais velho. Disso Freud conclui que sua escolha corresponderia não apenas ao ideal feminino, mas também ao masculino, satisfazendo tanto a tendência homo quanto a heterossexual. Como a análise de homossexuais masculinos também revela – em muitos casos – essa característica, Freud assevera a necessidade de ser mantida em mente a bissexualidade universal dos seres humanos (Freud, 1976h, p. 195).

Na descrição da história de sua paciente, Freud conta que:

A mãe, moça ainda, via na filha, que se desenvolvia rapidamente, uma competidora inconveniente; favorecia os filhos em detrimento dela, limitava-lhe a independência tanto quanto possível e mantinha vigilância especialmente estrita contra qualquer relação mais chegada entre a jovem e o pai.

[Além disso,] no exato período em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande desapontamento. Tornou-se profundamente cônscia do desejo de possuir um filho, um filho homem; seu desejo de ter o filho de seu pai e uma imagem dele, na consciência ela não podia conhecer. Que sucedeu depois? Não foi ela quem teve o filho, mas sua rival inconscientemente odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens (Freud, 1976h, p. 196).

49 Talvez não seja excessivo ressaltar aqui a relação feita por Freud entre masculinidade e objetividade e

inteligência.

50 Esta parece ser a primeira vez que Freud considera o processo de supervalorização comum "no amor

Segundo Freud (1976h), como a mãe da paciente ainda dava grande valor às atenções e à admiração dos homens, havia um ganho secundário em sua doença51: a melhoria de suas relações com a mãe. Sua nova posição libidinal servia também para ferir o pai e vingar-se dele. Sua escolha objetal, que recaía sobre uma mulher de "má reputação", reforça a idéia de que amava de forma masculina, escolhendo um objeto moralmente inferior. A análise mostrou que a paciente havia tido um forte "complexo de masculinidade" na infância. Era cheia de energia, travessa, e não tinha o menor interesse em ser colocada em segundo lugar com relação ao irmão mais velho. Com a descoberta de que ele possuía um pênis, desenvolveu uma inveja acentuada (pp. 197- 209). "Era na realidade uma feminista; achava injusto que as meninas não gozassem da mesma liberdade que os rapazes e rebelava-se contra a sorte das mulheres em geral" (p. 209).

Vale ressaltar que, embora Freud continue afirmando, neste texto, a importância da inveja do pênis na infância da mulher, ele levanta um outro motivo para que haja uma revolta da menina com relação à mãe: a obstrução que esta faz a seu relacionamento com o pai. Isto é, a ser seguida a lógica de Freud para a entrada da menina no complexo de Édipo (inveja do pênis / revolta contra a mãe que "não lhe deu" tal órgão / tomar então o pai como objeto / identificar-se com a mãe) há aqui uma inversão de fatores. Se a hostilidade materna – gerada por ciúmes da relação que o pai mantêm com a menina – é que leva a uma revolta contra ela, é porque a criança já havia

escolhido o pai como objeto. Essa escolha objetal só pode então ter sido realizada

devido à sedução (normalmente bem distante da violência sexual), exercida pelo pai sobre ela.

Freud prossegue seu artigo discutindo os fatores determinantes da homossexualidade. Afirma haver uma combinação de fatores hereditários, constitucionais (congênitos) e externos. Haveriam três elementos envolvidos, sendo que nem todos necessitam estar presentes ao mesmo tempo: os caracteres sexuais físicos, os caracteres sexuais mentais, e o tipo de escolha de objeto. Contudo, considera não ser tarefa da psicanálise solucionar o "problema" da homossexualidade, mas apenas revelar os mecanismos psíquicos que determinam a escolha de objeto, ligando-os às disposições

51 Vale ressaltar que, em uma nota de rodapé, na mesma página (197) em que utiliza o termo doença,

pulsionais. O trabalho restante seria da biologia. A psicanálise não pode elucidar a natureza intrínseca do que é "masculino" ou "feminino", pois sua redução leva apenas a relacionar estes termos com "atividade" e passividade", o que não seria suficientemente esclarecedor (pp. 209-211).

Ao final de seu artigo, citando experiências cirúrgicas52 realizadas em homossexuais masculinos visando obter a "conversão" do sujeito em heterossexual, afirma que:

Qualquer tratamento análogo do homossexualismo feminino é, atualmente, bastante obscuro. Se consistisse em remover o que são provavelmente ovários hermafroditas e enxertar outros, que se supõe serem de um único sexo, haveria poucas perspectivas de ser aplicado na prática. Uma mulher que já se sentiu ser um homem e amou à maneira masculina, dificilmente permitirá que a forcem a desempenhar o papel de mulher, quando deve pagar pela transformação, não vantajosa sob todos os aspectos, com a renúncia a toda esperança de maternidade (Freud, 1976h, p. 212).

É possível iniciar uma discussão sobre a parte do texto acima citada questionando o que seriam "ovários hermafroditas" e "ovários de um único sexo". As confusões causadas pelo modelo de sexo único parecem estar ainda bem presentes na época deste artigo, e isso para vários cientistas, não apenas para Freud. Quanto à frase final, vale ressaltar, além da reafirmação de que a forma de amar "masculina" é melhor, a percepção que Freud tem das vantagens sociais de que os homens desfrutam em sua época. A despeito disso, mais acima relaciona a homossexualidade de sua paciente, entre outras coisas, ao fato dela ser uma "feminista", alguém que questiona a situação das mulheres em geral. Isto lembra a relação feita por Schiller (2000), entre a significação social dada às revoltas esboçadas por mulheres oprimidas e a descrição (feita em um jornal de medicina do século XIX) de uma "doença" que acometia os negros no sul dos Estados Unidos, e que os levava a fugir – sendo a escravidão a norma, o desejo de insubordinação era tido como uma doença grave (p. 122).

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 187-189)