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NO PRINCÍPIO ERA A MULHER

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 98-103)

Como clínico, Freud atende, nesta época, principalmente mulheres da burguesia vienense, qualificadas como "doentes dos nervos" e vítimas de sintomas histéricos. Procura aliviar seus sofrimentos psíquicos – contrariamente ao niilismo terapêutico da época. Por algum tempo, utiliza os métodos em voga – uma mistura de massagens, hidroterapia e eletroterapia – constatando finalmente que não produzem nenhum efeito. Começa então a utilizar a hipnose, inspirado no método catártico desenvolvido por Breuer, e no método de sugestão de Bernheim (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 274-275).

Em 1891, Freud publica Contribuição à concepção das afasias, monografia onde propõe uma abordagem funcional dos distúrbios da linguagem. Desta forma, a doutrina das "localizações cerebrais" era substituída pelo associacionismo5, que abriria caminho para a definição de Freud de um "aparelho psíquico". Em 1893, Freud escreve a Fliess sobre a "teoria da sedução", segundo a qual a causa principal das neuroses seria

5 Associacionismo: teoria que reduz todas as manifestações da vida mental a um jogo de associações entre

a sedução sexual cometida por adultos contra crianças pequenas (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 275/800).

Em 1895, Fliess opera o nariz de Emma Eckstein, então paciente de Freud, que se mostra receptivo, por esta época, às teses fliessianas da relação entre a mucosa nasal e os genitais. Contudo, posteriormente, a paciente apresenta sangramentos. Freud acaba por descobrir que Fliess esquecera dentro do nariz de Eckstein uma tira de gaze de mais ou menos 50 centímetros, que seria retirada em outra cirurgia, na qual a paciente, então com trinta anos de idade, quase chega a sucumbir. Eckstein é uma figura de grande relevância para a psicanálise. Sua história é parte fundamental do primeiro sonho de Freud que ele irá interpretar, em julho deste ano, sonho a que chama "A injeção de Irma". Será a primeira paciente a lhe fornecer material que o fará refletir sobre a "teoria da sedução". E também será a primeira mulher a atender pacientes como psicanalista, sob supervisão de Freud, ou seja: embora não tenha se filiado a nenhuma Sociedade, Eckstein foi a primeira psicanalista mulher da história (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 163/800).

Também em 1895, Freud publica, com Breuer, os Estudos sobre a histeria, em que são relatados alguns casos clínicos. Entre eles, o caso de Katharina, uma moça que Freud conhece por acaso em uma viagem de férias, mas que veio pedir-lhe ajuda para seus sintomas de "falta de ar". Freud considera Katharina um caso típico de histeria, baseado em traumas sexuais, onde impressões que não produzem efeito na criança aparecem com poder traumático numa data posterior, quando a pessoa adquire compreensão da vida sexual. Sendo todo o "trabalho" de Freud com esta moça realizado em uma única conversa, não se pode ter certeza da extinção dos sintomas. Contudo, o que configura a história de Katharina como um caso digno de ter sido narrado neste livro é o fato de que sua história, suas "lembranças patogênicas", para usar o termo de Freud, tenham vindo todas à tona nesta ocasião. Freud chega mesmo a agradecer a esta moça por "haver tornado muito mais fácil conversar com ela do que com as senhoras pudicas da minha clínica na cidade, que consideram tudo que é natural como vergonhoso" (Freud, 1988a, p. 180).

Segundo Roudinesco e Plon (1998), a relação de Freud com Breuer já vinha sofrendo revezes desde 1891, com discordâncias em suas concepções de ciência,

histeria e sexualidade. Freud estaria se orientando para a elaboração de uma nova teoria, enquanto Breuer mantinha uma postura de erudito clássico – mais ligado, portanto, à fisiologia da época (p. 94). Vale lembrar que, embora Breuer demonstrasse então uma resistência quanto à importância dada por Freud à sexualidade na etiologia das neuroses, ele próprio teria feito o comentário de que certas "doenças nervosas" que acometem as mulheres eram sempre provocadas por "segredos de alcova" (Freud, 1974a, p. 23).

Assim, no livro que publica em parceria com Breuer, Freud insere um capítulo, chamado A psicoterapia da histeria (Freud, 1988b), onde explica que, ao tentar aplicar a um número maior de pacientes o método catártico sob hipnose (de Breuer) para o tratamento de pacientes histéricos, acaba por deparar-se com algumas dificuldades, que o levam a alterações tanto na técnica quanto na teoria que iria seguir doravante. Estas dificuldades seriam as seguintes:

1. O processo exige do médico grande investimento de tempo, bem como um interesse pessoal pelo paciente (absolutamente dispensável em outras formas de tratamentos médicos para sintomas unicamente físicos).

2. O método não funciona para pacientes com qualquer traço de debilidade mental, ou seja, exige do paciente um grau mínimo de inteligência.

3. A concordância, atenção, e confiança do paciente são indispensáveis, visto que a análise leva à revelação de eventos psíquicos íntimos. Os pacientes que não conseguem estabelecer esta relação de confiança com o médico acabam por abandonar o tratamento. Os que conseguem colocam, ao menos por um tempo, sua relação pessoal com o médico em primeiro plano6 (p. 261).

Contudo, as dificuldades ligadas ao método de Breuer são consideradas por Freud como inerentes a qualquer tratamento das neuroses. Aparecem, porém, duas dificuldades que Freud considera específicas do tratamento pela hipnose: a distinção entre histeria e outras neuroses, e o fato de que nem todos os pacientes histéricos podem ser hipnotizados. Considerando ser muito difícil diagnosticar o tipo de neurose antes de proceder a uma análise minuciosa (feita nesta época pelo método da hipnose), passa a utilizar a etiologia das neuroses como forma de diagnóstico:

[...] fui obrigado a reconhecer que, na medida em que se possa falar em causas determinantes que levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em fatores sexuais. Seguiu-se a descoberta de que diferentes fatores sexuais, no sentido mais geral, produzem diferentes quadros de distúrbios neuróticos. Tornou- se então possível, na medida em que essa relação era confirmada, correr o risco de utilizar a etiologia com o objetivo de caracterizar as neuroses e de fazer uma distinção nítida entre os quadros clínicos das várias neuroses. Quando as características etiológicas coincidiam sistematicamente com as clínicas, isso era naturalmente justificável (Freud, 1988b, p. 255).

Com relação à outra dificuldade, qual seja, a de pacientes não hipnotizáveis ainda que seu diagnóstico fosse de histeria, Freud percebe haver uma resistência, que pode ser verbalizada ou não, ao método de tratamento. Precisando da hipnose para ampliar-lhes a memória, teria duas opções: ou desistir de tratar tais pacientes, ou esforçar-se por promover esta ampliação de outra forma. Relata que alguns pacientes, ao serem questionados sobre a origem do sintoma em questão, dizem não saber nada sobre isto, enquanto outros contam alguma lembrança obscura e não conseguem prosseguir. Torna-se então insistente, assegurando-lhes que eles efetivamente sabem, que aquilo que haviam aparentemente esquecido lhes viria à mente – e, de fato, aparece algum conteúdo. Então ele manda o paciente deitar e fechar os olhos, concentrando-se. Com isso, as lembranças recuam ainda mais no tempo (Freud, 1988b, pp. 263-264).

Experiências como essas fizeram-me pensar que seria de fato possível trazer à luz, por mera insistência, os grupos patogênicos de representações que, afinal de contas, por certo estavam presentes. E visto que esta insistência exigia esforços de minha parte, e assim sugeria a idéia de que eu tinha que superar uma resistência, a situação conduziu-me de imediato à teoria de que, por meio de meu trabalho psíquico, eu tinha que superar uma força psíquica nos pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem conscientes (fossem lembradas). Uma nova compreensão pareceu abrir-se ante meus olhos quando me ocorreu que esta sem dúvida deveria ser a mesma força psíquica que desempenhava um papel na geração do sintoma histérico e que, na época, impedira que a representação patogênica se tornasse consciente. [...] reconheci uma característica universal de tais representações: eram todas de natureza aflitiva, capazes de despertar afetos de vergonha, de autocensura e de dor psíquica, além do sentimento de estar sendo prejudicado: eram todas de uma espécie que a pessoa preferiria não ter experimentado, que preferiria esquecer. De tudo isso emergiu, como de forma automática, a idéia de defesa (Freud, 1988b, p. 264).

Como a insistência pura e simples parece ter efeito limitado, Freud então passa, em determinado momento da sessão, a utilizar o que ele chama de "artifício técnico": diz ao paciente que vai pressionar sua testa e que, neste momento, virão à tona as lembranças necessárias para a compreensão dos sintomas. Faz essa afirmação

veementemente e orienta o paciente no sentido de relatar tudo que lhe vier à cabeça, independentemente de considerar que não é importante, ou achar que é desagradável falar deste assunto (Freud, 1988b, p. 266).

Surge assim, neste contexto, embora associada à sugestão, a "regra fundamental" da psicanálise. Segundo essa regra o paciente deve "dizer o que pensa e sente sem nada escolher e sem nada omitir do que lhe vem ao espírito, ainda que lhe pareça desagradável de comunicar, ridículo, desprovido de interesse ou despropositado" (Laplanche & Pontalis, 2000, p. 438).

Abandonando paulatinamente a sugestão (o que ocorre definitivamente em torno de 1898), Freud acaba por delimitar, através da "regra fundamental", o método da "associação livre", utilizado também por ele próprio em sua auto-análise (especialmente na análise de seus sonhos). Embora a palavra associação faça parte do termo, esta técnica pode ser aplicada a partir de um elemento dado (como um sonho ou uma palavra do analista) ou ocorrer de forma espontânea (Laplanche & Pontalis, 2000, p. 38).

Pode-se concluir, portanto, que o uso crítico da técnica hipnótica por Freud levou ao desenvolvimento da técnica psicanalítica em si. Além disso, é neste período que, ao abandonar a hipnose, Freud percebe que sua nova técnica poderia ser usada com sucesso em qualquer tipo de neurose, e não apenas no tratamento da histeria. De qualquer forma, com ou sem a utilização da sugestão, Freud começa a notar a importância da resistência no processo analítico. Afirma (ainda em seu texto de 1895), que é possível reconhecer uma lembrança patogênica, entre outras coisas, pelo fato do paciente descrevê-la como algo sem importância, ao mesmo tempo que só fala dela sob resistência. Seria também usual o paciente culpar o analista por ter "colocado coisas em sua cabeça", ou também acreditar que provocou uma lembrança de propósito. Diante de qualquer forma de resistência, o analista deverá mostrar ao paciente que ele (analista) é quem tem razão, afirmando que qualquer distinção apresentada pelo paciente não passa de resistência, e que a lembrança deverá ser narrada a despeito de qualquer coisa (Freud, 1988b, pp. 273-274).

A alavanca mais poderosa para vencer a resistência seria despojá-la de seu valor ou substituí-lo por outro mais poderoso. Não há fórmulas para isso: trabalha-se com o melhor da própria capacidade, tentando dar ao paciente "assistência humana", o que

depende em grande parte da empatia que se possa sentir por cada paciente e da capacidade de "adivinhar" a natureza do caso. Para livrar-se dos sintomas, o paciente precisa verbalizar (com o afeto correspondente), as impressões patogênicas que os causaram – a tarefa terapêutica consistiria unicamente em levar o paciente a fazê-lo (Freud, 1988b, pp. 275-276).

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 98-103)