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O MUNDO DOS HOMENS

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 34-40)

Como os regimes tirânicos não conseguem abalar a vontade dos cidadãos gregos de exercer seus direitos políticos, ainda ao final do século VI a.C. inicia-se, em Atenas (Grécia), a primeira tentativa de governo democrático10 em todo o mundo, vindo substituir os reinados da época anterior. Contudo, essa "democracia" é excludente das mulheres: elas não podem votar e seus filhos não são mais conhecidos pelo seu nome. Nome que, aliás, elas perderam – são reconhecidas apenas enquanto filhas ou como

9 Segundo Beauvoir (2000), as prostitutas deveriam conhecer, desde o início de suas atividades na história

humana, os segredos dos médicos com relação a métodos contraceptivos (p.153). Se estes métodos funcionavam ou não – considerando a medicina da época – é outra questão.

10 Este regime "democrático" atingiria apenas aqueles considerados com o direito de exercer a cidadania.

esposas de alguém. As deusas gregas são rebaixadas, ridicularizadas ou substituídas por deuses machos (Badinter, 1986, p. 76).

Os gregos não praticam a poligamia, talvez pelas dificuldades econômicas daí advindas. Mas a mulher casada, em Atenas, é encerrada em seus aposentos, limitada por leis severas e fiscalizada por magistrados especiais. É tratada como menor durante toda sua vida, dependente de um tutor (pai, marido, herdeiro do marido ou, em último caso, Estado). O pai dá a filha em adoção ou casamento, o marido pode ceder a outrem a esposa rejeitada, embora em caso de divórcio ela deva ser ressarcida de seu dote – divórcio este que, em circunstâncias raríssimas, ela própria poderá pedir. E seu dote será legado aos filhos, não sendo assim um bem adquirido por filiação, embora garanta que ela possa voltar para a tutela do pai – se ele for vivo no caso dela tornar-se viúva – ao invés de ter que se submeter aos herdeiros do marido (Beauvoir, 2000, pp. 108-109).

Há também, na Grécia desta época, a lei do epiclerato: no caso do pai morrer sem deixar filhos homens, sua "herdeira" é obrigada a casar-se com o mais idoso dos parentes paternos, para que passe a herança para os filhos. Mas, na Grécia, além das mulheres "livres" há as escravas, e há também as prostitutas, o que faz com que a poligamia não seja absolutamente necessária. O trabalho das prostitutas em templos, cuja renda reverte aos sacerdotes – primeiros cafetões da história – já é então bastante comum, não só na Grécia mas em vários países. Neste século, contudo, o lucro da prostituição passará ao Estado grego, que compra escravas asiáticas, instalando-as principalmente nas regiões portuárias. Há também cortesãs livres, algumas muito valorizadas, e que conseguem, de alguma maneira, enriquecer (Beauvoir, 2000, pp. 109- 111).

Na virada do século VI para o século V. a.C., Atenas atinge seu apogeu, tanto em termos bélicos quanto em termos culturais, conquistando a hegemonia sobre todo o território grego. Desenvolve-se o estudo da música, da gramática, da filosofia, da ciência, do culto do corpo. Surgem grandes escritores e grandes artistas. Os primeiros filósofos ("amigos da sabedoria") gregos – entre eles Heráclito, por exemplo – consideram que o ser humano pode ser explicado pelo mesmo substrato que esclareceria a existência de todos os seres. Se tudo é constituído de água, fogo, ou átomos, o ser humano também teria nestes elementos a base de sua realidade (física, psíquica e

moral). Em outras palavras: a ética se insere na cosmologia. A alma é vista como uma parte do todo: porção do ar infinito que habita o corpo, dando-lhe vida temporariamente até escapar na hora da morte, ou uma porção de fogo a aquecer e animar o corpo temporariamente, até juntar-se ao Fogo-Razão, ou ao Logos universal com a morte física (Pessanha, 1999, pp. 19/29-30).

Com a democracia, a importância da oratória torna-se fundamental, o que leva à necessidade de professores para preparar os indivíduos para a vida pública. Para atender a esta demanda, acorrem para Atenas os sofistas ("sábios"), que negam a possibilidade humana de desvendar a natureza, e fundamentam todo o conhecimento na convenção (sensação). Negam a verdade absoluta e ameaçam a moral tradicional e as normas de conduta vigentes. Os sofistas vão tentar desvincular o ser humano da natureza, conferindo-lhe autonomia – mas seu humanismo é ateu (Pessanha, 1999, pp. 20-21).

O filósofo Sócrates (470-399 a.C.) irá contrapor-se aos sofistas atenienses do século V a.C. com um humanismo de base religiosa, que não visa à definição de conceitos, mas à "elevação da alma" do interlocutor – ao despojar-se de suas "verdades", iniciando assim, um processo de autoconhecimento. Sócrates não considera o conhecimento humano como o resultado da criação, a partir das sensações, de significados para as palavras, mas pensa que este significado deve emanar da própria alma (psique) do indivíduo, que seria a sede da consciência e do caráter, a realidade interior que se manifestaria mediante palavras e ações, sede do bem e do mal, da sabedoria e da ignorância, devendo por isso ser o principal objeto de preocupação humana. Para Sócrates, virtude (aretê) é conhecimento, mas conhecimento enquanto ciência (episteme), não podendo portanto ser ensinado, mas apenas adquirido através do autoconhecimento, em cujo caminho se propõe a ser um facilitador, escolhendo seus "discípulos" não por sua situação sócio-econômica (como os sofistas), mas sim por suas "condições psíquicas" para submeter-se a seu método (maiêutica). Assim, além de criar uma nova concepção de alma, que passaria a dominar a tradição ocidental, Sócrates representa um perigo para a "democracia" ateniense, ao questionar os direitos da classe dominante (Pessanha, 1999, pp. 23-27).

Em 500 a.C., Pitágoras de Samos, filósofo e matemático grego, afirma que a reprodução depende de uma "mistura de sêmens" do macho e da fêmea. Esta é,

possivelmente, a primeira afirmação que irá conduzir, paulatinamente, ao modelo de sexo único. Posteriormente, o grego Hipócrates (460-377 a.C.) irá dar início ao desenvolvimento da medicina científica ocidental, ao privilegiar a razão e a observação da natureza em detrimento das explicações sobrenaturais comuns na época. A saúde, para Hipócrates, será a existência de um equilíbrio entre os fluídos orgânicos, ou humores – sangue, fleuma, bile amarela e bile negra – entre os quais estabelece uma série de relações, como por exemplo, com as quatro qualidades primárias: quente, frio, seco e úmido. A doença seria então resultado de um desequilíbrio humoral, mormente um excesso de bile negra (Schiller, 2000, pp. 21-22/92).

Quanto às diferenças ou semelhanças entre homens e mulheres, Hipócrates considera que o "esperma", tanto dos homens quanto das mulheres, pode ser "forte" ou "fraco". Quando os pais emitem "esperma fraco" na concepção, nasce uma menina, e quando o "esperma" é "forte", um menino. Ainda quanto aos fluídos sexuais, o esperma do homem é primeiramente refinado no sangue, passa para o cérebro, vai para os rins através da medula, dos rins vai para os testículos, de onde entra no pênis. O sangue menstrual é tido como o excesso ou resíduo de alimentos (como a urina e as fezes), por isso as mulheres grávidas e as que amamentam não menstruam: precisam do excesso de alimento para o feto ou o leite. Da mesma forma, o sangue das hemorróidas, ou o sangramento nasal, é considerado como a eliminação de "excedente de nutrientes", ocorra em homens ou mulheres. Em outras palavras, a fisiologia sexual, em Hipócrates, mistura-se aos outros processos fisiológicos, comuns a ambos os sexos. As bases para a idéia de um sexo único já estão, então, lançadas (Laqueur, 2001, pp. 51-54).

Se Hipócrates considera a mulher capaz de "emitir um esperma forte", considera-a, contudo, como constituída de um esperma fraco. A concepção de uma filha mulher seria, portanto, a conseqüência de uma espécie de "erro da natureza", ficando, com isso, claramente delimitada sua menor valia. O modelo de sexo único está baseado, necessariamente, em uma concepção hierárquica. O macho corresponde à perfeição, e a fêmea será um projeto "mal terminado".

Vale ressaltar que, por esta época, acredita-se que a histeria11 é o resultado do "deslocamento" do ventre (útero) para a cabeça, o que provocaria convulsões. Esse deslocamento seria provocado pelo desejo de ter um filho ou pela insatisfação sexual – tanto faz, se for considerada a idéia de que o orgasmo é necessário à reprodução (Birman, 2001, p. 85).

No mesmo período, acredita-se também que as contrações do orgasmo "fecham" o ventre da mulher. Assim, se ela "ejacula" precocemente, as sementes ainda não estarão misturadas e não haverá concepção (Laqueur, 2001, p. 64).

Paralelamente ao surgimento da filosofia ocidental e da medicina "científica", a Grécia também irá ser o espaço de nascimento das tragédias, fundadas na busca do entendimento da ligação entre as maldições que atingem as linhagens familiares. As tragédias denunciam que há paixões humanas que escapam ao domínio da razão. Sófocles (496-406 a.C.) é tido como um dos maiores dramaturgos trágicos, e sua obra mais célebre é Édipo rei (Schiller, 2000, pp. 21-22).

A tragédia de Sófocles, uma revisão daquela da época homérica, é conseqüência direta da chegada do direito em Atenas, da necessidade de distinguir o crime voluntário do crime escusável – característico do período anterior. É o momento do desenvolvimento da noção de responsabilidade. Com isso, o Édipo de Sófocles será proscrito de Tebas, e sentirá sobre si, acima de tudo, o peso da própria culpa (Rosa, 1996, p. 850).

A partir do século V. a.C., o patriarcado tomaria conta, paulatinamente, de todas as sociedades civilizadas:

[...] o triunfo do patriarcado não foi nem um acaso nem o resultado de uma revolução violenta. Desde a origem da humanidade, o privilégio biológico permitiu aos homens afirmarem-se sozinhos como sujeitos soberanos. Eles nunca abdicaram o privilégio; alienaram parcialmente sua existência na Natureza e na Mulher, mas reconquistaram-na a seguir. Condenada a desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precária: escrava ou ídolo, nunca é ela que escolhe seu destino (Beauvoir, 2000, p. 97).

11 Conforme o Dicionário Aurélio eletrônico – século XXI (1999), a palavra histérico (a) vem do grego

hysterikós, que significa "referente ao útero". Considerando o étimo da palavra, bem como a etiologia da doença defendida nos tempos de Hipócrates, esta doença esteve, desde sempre, relacionada às mulheres – embora, como será visto no capítulo seguinte, esta restrição da histeria ao sexo feminino não vá ocorrer na psicanálise, na qual a histeria é definida como uma classe de neuroses que apresentam sintomas diversos e atingem tanto homens como mulheres (Laplanche & Pontalis, 2000, p. 211).

No regime estritamente patriarcal, a mulher é considerada acima de tudo como um ventre, cuja função principal é trazer filhos legítimos para a "casa" do marido. A mulher é excluída da sucessão paterna e, vendida ao marido, não tem direito aos seus bens, nem aos próprios filhos, que não são considerados como seus. Somente razões de ordem econômica limitam a poligamia, mas da mulher se exige uma castidade rigorosa, que garanta o processo de sucessão. Se a fidelidade da mulher tem como primeira finalidade proteger a herança do homem, a possibilidade de sua desobediência torna-se uma obsessão. Surgirão, em épocas e lugares diversos, os haréns protegidos, o cinto de castidade, a clitoridectomia e, por todo lado, a repressão. O adultério das mulheres será severamente condenado, em algumas civilizações com a morte (Badinter, 1986, pp. 126-128 e Beauvoir, 2000, p. 103).

No século V a.C., em Atenas, ocorrem graves conflitos sociais, com o povo – privado de suas terras e tendo como concorrência de seu trabalho o dos escravos – opondo-se à minoria de grandes proprietários de terra, e aos ricos comerciantes e manufatureiros. Os filósofos questionam a lei cívica. Sócrates é condenado à morte em 399 a.C. Seu discípulo Platão, escreve em seguida uma série de obras, a maioria contestando a condenação de Sócrates. Em uma delas, A República, afirma não existirem diferenças sociais naturais entre homens e mulheres, minimiza as diferenças de suas capacidades reprodutivas, e defende uma igual educação, assim como uma igual participação para ambos, tanto no Governo quanto na ginástica e também na guerra (G. E. Larousse C., 1998, vol. 12, pp. 2814 e Laqueur, 2001, pp. 67-68).

Em 387 a.C., Platão funda uma "escola de filosofia" em Atenas: a Academia. Aristóteles de Estagira (Macedônia), chega a Atenas em 367 a.C., e ingressa na

Academia. Em 347 a.C., morre Platão, e Aristóteles deixa Atenas, vivendo em outras

cidades até que, em 343 a.C., é chamado por Filipe II (rei da Macedônia) para ser preceptor de seu filho Alexandre. Em 338 a.C. Filipe II torna-se senhor da Grécia. Morre em 336, sendo então sucedido por seu filho, Alexandre, o Grande. Em 335 a.C., Aristóteles retorna a Atenas, onde funda o Liceu (Autor desconhecido em Os

Em 332 a.C., Alexandre toma o poder no Egito. Os soberanos gregos e macedônios tornam-se os sucessores dos faraós, mantendo a titulação, o vestuário e o calendário tradicionais e, freqüentemente, o costume de casar com as irmãs, para evitar problemas de sucessão. Os nativos são afastados de todos os cargos importantes, e os gregos exploram as riquezas do país em seu benefício. Além disso, para evitar o favorecimento econômico dos nativos, as mulheres, então responsáveis pela transmissão de fortunas, são proibidas de alienar seus bens sem a autorização do marido. Assim, finalmente as mulheres egípcias são relegadas à condição de menores, como já vinha ocorrendo com as de outros países há muito tempo (Beauvoir, 2000, p. 108).

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 34-40)