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QUANDO CASAR, SARA?

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 113-116)

Em 1905, Freud publica Fragmento da análise de um caso de histeria, onde descreve o tratamento de uma paciente que denomina "Dora". Neste texto, esclarece que sua técnica de tratamento sofrera grandes modificações desde a publicação de Estudos

sobre a histeria, sendo que a principal consiste no fato de que, anteriormente, ele partia

dos sintomas, buscando esclarecê-los um a um, e no momento ele percebe ser mais eficaz deixar que o próprio paciente defina o tema a ser trabalhado naquele dia. Como o discurso neurótico apresenta algumas características – a saber, especialmente o fato de ser truncado, com confusão quanto às datas dos acontecimentos, com encobrimento de informações, etc. – isto evidentemente dificulta a elucidação dos sintomas. Porém, Freud considera sua nova técnica não só superior à antiga, como também a única a levar aos resultados esperados (Freud, 1989a, pp. 20-21/24-25/28/52).

Freud, neste texto, mostra-se mais maleável à aceitação de caracteres hereditários na etiologia das neuroses. Inclusive, aponta a filiação de pais sifilíticos como sendo uma predisposição à neurose. Defende-se da possível (e provável) acusação de que usa os termos corretos para referir-se aos órgãos sexuais, e de que fala abertamente sobre sexo e atividades sexuais com pacientes do sexo feminino, algumas virgens, inclusive, com a explicação de que, ao acreditar na preponderância do fator sexual na etiologia das neuroses, não há como se furtar à menção de tais assuntos ou palavras (Freud, 1989a, pp. 24-25/28/52).

Freud parece não visualizar a possibilidade de o grande número de pacientes neuróticos filhos de pais sifilíticos ter relação, não com questões orgânicas, mas sim com as possíveis características psicológicas destes pais. Sem forçar demais um retorno à "teoria da sedução", há que se pensar que, sendo a sífilis uma doença sexualmente transmitida, parece existir aí um certo grau de promiscuidade, que poderia aparecer não só nas relações dos pais (do pai, mais freqüentemente, considerando a época) com pessoas adultas, mas possivelmente na própria relação do pai com o paciente quando criança.

Ainda no texto em questão, Freud inicia uma discussão, sempre recorrente, sobre a diferença entre perversão e neurose, na qual afirma que a perversão não passa do desenvolvimento de tendências que aparecem na vida infantil em estado rudimentar. A sublimação das perversões destina-se ao fornecimento de energia para as realizações culturais humanas. Nos neuróticos, as inclinações perversas não são nem manifestadas em ato nem sublimadas, mas tornadas inconscientes (Freud, 1989a, pp. 53-54).

Explora ainda um pouco mais sua teoria sobre o complexo de Édipo, já trabalhada em A interpretação dos sonhos, na qual defende a existência de relações amorosas inconscientes entre pai e filha ou mãe e filho. Afirma presumir que esta relação acontece de forma mais intensa em pessoas "constitucionalmente" destinadas à neurose. Aquelas em que as sensações "genitais genuínas" aparecem de forma prematura, como resultado da sedução, da masturbação, ou mesmo de "forma espontânea". Discute também a "normalidade" do aparecimento de inclinações homossexuais na puberdade, em ambos os sexos. Sob circunstâncias favoráveis, esta inclinação desaparece, em caso contrário, torna a ser despertada mais tarde, aumentando

de intensidade. Como Freud vê nos neuróticos uma tendência maior para a perversão, considera que, neles, há uma tendência também maior para a homossexualidade. No caso da histeria, especialmente, os sentimentos ginecofílicos devem ser considerados típicos da vida amorosa inconsciente (Freud, 1989a, pp. 58-59/62/65).

Como se pode ver, após abandonar sua "teoria da sedução", Freud terá uma certa dificuldade em definir quais os fatores que levariam a uma maior ligação edípica na infância. Ao mesmo tempo que afirma haver um fator "constitucional" a determinar esta ligação, fala também de sedução, masturbação (mas o que levaria à esta?), e mesmo de sensações "genitais genuínas" espontâneas. Ora, como se trata de uma paciente do sexo feminino que ele analisa neste texto, pode-se pensar que Freud aventa a possibilidade de "sensações vaginais espontâneas". Mas isso não pode ser afirmado, tendo em vista seu constante uso do termo "genital" para o clitóris.

Ainda em Fragmento..., Freud (1989a) retoma sua condenação da masturbação, relacionando-a a dores gástricas, leucorréia, enurese noturna, etc. Considera também os sintomas histéricos como resultado da abstinência da masturbação praticada na infância, ou seja, como substitutos da satisfação masturbatória. A masturbação continuaria a ser desejada pelo inconsciente, até o surgimento de uma satisfação "mais normal" – possibilitada pelo casamento – e, se ainda for possível, a "cura" da histeria (pp. 76/79).

Freud (1989a) fornece também uma definição do que seja histeria: "Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos" (p. 35). E afirma, pela primeira vez em um texto a ser publicado12, que o clitóris é o "órgão feminino correspondente" ao pênis – inclusive na vida adulta (p. 36).

Na descrição que Freud faz da mãe de "Dora", percebe-se uma crítica severa ao comportamento típico da dona-de-casa:

[...] fui levado a imaginá-la como uma mulher inculta e acima de tudo fútil, que, a partir da doença e do conseqüente distanciamento do marido, concentrara todos os seus interesses nos assuntos domésticos, e assim apresentava o quadro do que se poderia chamar de "psicose da dona-de-casa". Sem nenhuma compreensão pelos

12 Anteriormente, Freud havia desenvolvido esta idéia em uma carta (n ° 75) a Fliess, de novembro de

interesses mais ativos dos filhos, ocupava o dia todo em limpar e manter limpos a casa, os móveis e os utensílios, a tal ponto que se tornava quase impossível usá-los ou desfrutar deles (Freud, 1989a, p. 27).

Contudo, a filha mais velha de Freud, Mathilde – que já sofrera na infância com uma difteria que quase a levara à morte – passa, em 1905, por uma cirurgia complicada de apêndice, tornando-se estéril. Essas dificuldades de saúde e suas feições pesadas e pálidas prejudicam bastante sua auto-estima. Freud, ao saber disso, trata de motivá-la, dizendo a ela que suas feições não são comuns nem desagradáveis e, além do mais, que os rapazes razoáveis sabem o que devem realmente procurar numa mulher: "temperamento meigo, jovialidade e a capacidade de tornar a vida mais agradável e fácil para eles" (Freud, conforme citado por Gay, 1999, p. 288).

A partir da descrição que os vários biógrafos de Freud fornecem de Martha – inclusive baseada na opinião de seus próprios familiares – pode-se presumir uma semelhança entre sua personalidade e a da mãe de "Dora", que Freud critica tão duramente. Ele parece oscilar, freqüentemente, entre o desejo de ter como companheira uma mulher instruída, até mesmo profissionalmente ativa, e o desejo de uma mulher submissa, que facilite sua vida profissional cuidando de sua casa e de seus filhos, como Martha sempre fez.

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 113-116)