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MUNDO DELIRANTE, SOU SEU HABITANTE

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 130-135)

Também em 1908, são publicados três importantes textos de Freud. No primeiro deles, intitulado Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, Freud afirma que todo ataque histérico nada mais é que a irrupção involuntária de fantasias de natureza erótica, tornadas inconscientes pelo recalcamento, ou que já foram formadas no inconsciente, ou seja: sempre foram inconscientes (Freud, 1976a, pp. 163-164).

Essas fantasias seriam idênticas às que teriam servido, em um momento anterior, para a obtenção de satisfação durante o ato masturbatório. Se a masturbação pode ser considerada, em seu início, como puramente auto-erótica, visando obter prazer de uma determinada parte do corpo, mais tarde, com o desenvolvimento do amor objetal, é criada uma fantasia ligada à realização do desejo, que será associada ao ato masturbatório. Vale ressaltar que, nos homens adultos, estas fantasias podem assumir a forma da satisfação de uma ambição, mas como esta estaria ligada à conquista de um objeto amoroso, então o substrato da fantasia seria o mesmo (Freud, 1976a, pp. 163- 165).

Afirma que se o sujeito renuncia à satisfação masturbatória, a fantasia passa de consciente para inconsciente e, em não havendo uma satisfação sexual compensatória, a libido não sublimada irá reativar a fantasia, que se manifesta na forma de um sintoma patológico. Quando, como na histeria de conversão, os sintomas são somáticos, com freqüência estão relacionados aos mesmos grupos neuromusculares utilizados na prática masturbatória à qual a fantasia se encontrava associada, permitindo, por aproximação, a satisfação primária original (Freud, 1976a, p. 165).

A técnica psicanalítica possibilitaria, então, a partir dos sintomas, inferir quais são as fantasias inconscientes, tornando-as conscientes para o paciente. Por essa via, teria Freud descoberto que as fantasias inconscientes da pessoa histérica correspondem, em sua totalidade, às situações reais nas quais os pervertidos obtêm satisfação. Contudo, aqui a diferença entre perversão e neurose é ainda difusa, pois Freud afirma que há casos de pessoas histéricas que não expressam suas fantasias através de sintomas, mas tramam e atuam situações de agressão sexual (Freud, 1976a, p. 166).

Nos casos onde a exposição ao paciente de uma fantasia sexual não é suficiente para efetuar a resolução dos sintomas, Freud percebe a existência de duas fantasias sexuais, uma de caráter "feminino" e outra de caráter "masculino". Em outras palavras, uma das fantasias terá um caráter homossexual – mostrando a validade da teoria da disposição bissexual humana. Assim, o sintoma histérico pode representar uma tentativa de conciliação entre a pulsão libidinal e o recalcamento, como pode representar a tentativa de conciliação entre duas fantasias de caráter sexual oposto. Não é raro as pulsões pertencentes a sexos opostos encontrarem expressão sintomática independente (Freud, 1976a, pp. 168-169).

Encontraremos outros correlatos em certos ataques histéricos nos quais o paciente desempenha simultaneamente ambos os papéis na fantasia sexual subjacente. Em um caso que observei, por exemplo, a paciente pressionava o vestido contra o corpo com uma das mãos (como mulher), enquanto tentava arrancá-lo com a outra (como homem) (Freud, 1976a, p. 169).

Neste caso, Freud chamará de ato "masculino" aquele que visa a consumação do ato sexual, e de "feminino" aquele que visa seu impedimento. Pode-se questionar se não há, neste exemplo, apenas a manifestação de uma divisão interna na paciente, entre o desejo e o recalcamento.

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O segundo texto de Freud de 1908, que será aqui explorado, intitula-se Moral

sexual "civilizada" e doença nervosa moderna. Definindo, com base em um livro de

Von Ehrenfels (publicado no ano anterior), a moral civilizada como aquela onde é exigida dos indivíduos a obediência a uma moral sexual que os estimula a uma intensa atividade cultural produtiva, Freud inicia seu texto opondo a esta moral civilizada a possibilidade destes indivíduos manterem a saúde e a eficiência. Ou seja: a mesma moral que visa a produtividade, pode levar a tais prejuízos os sujeitos envolvidos, que viria a colocar em perigo seus próprios interesses (Freud, 1976b, p. 187).

Voltando a citar Von Ehrenfels, Freud dirá que, para este autor, o problema da moral sexual civilizada seria o fato das restrições impostas às mulheres serem estendidas também aos homens – como a restrição da atividade sexual ao casamento

monogâmico – levando inexoravelmente a admissão de uma moral dupla (pois as "diferenças naturais" entre os sexos "impõem" sanções menos severas às transgressões masculinas), e esta hipocrisia induziria os membros da comunidade à ocultação da verdade. Outro problema da moral sexual civilizada, ainda para Von Ehrenfels, seria, pela imposição da monogamia, a impossibilidade da seleção natural pela virilidade. Freud afirma então que, às criticas de Von Ehrenfels à moral sexual civilizada, faltaria justamente a que ele irá expressar em seu artigo, e que seria o aumento da "doença nervosa" (Freud, 1976b, pp. 187-188).

Freud cita então uma série de neurologistas que, capazes de perceber a relação entre o aumento das "doenças nervosas" e a civilização da época, não serão capazes, contudo, de perceber o motivo, que é a repressão nociva da vida sexual. Retoma a diferenciação entre as neuroses atuais – onde a influência da moral coerciva é mais evidente – e as psiconeuroses, afirmando que, muito embora, nas últimas, haja uma grande influência da hereditariedade, há também a atuação de complexos inconscientes, de cunho sexual. Afirma que a civilização repousa sobre a supressão das pulsões, sendo que cada indivíduo deve renunciar a uma parte, tanto de seu sentimento de onipotência quanto de suas inclinações agressivas (Freud, 1976b, pp. 188-192).

Embora a sexualidade seja mais poderosa nos seres humanos, devido à libertação do cio, entre eles encontra-se a vantagem da existência da capacidade de trocar seu alvo sexual original por outro, não mais sexual, mas ligado ao primeiro, o que é chamado de sublimação. Contudo, a libido pode também fixar-se, o que leva a que seja inutilizada. Freud considera como inatos ao indivíduo, tanto o vigor de sua libido, quanto a maior ou menor capacidade de sublimação. Mas alerta que a sublimação de toda a libido é impossível para a maioria das pessoas, o que implica em que alguma parcela da libido deva atingir a satisfação sexual direta. Definirá a sociedade sob a qual vive como tendo uma moral sexual voltada, exclusivamente, para a reprodução legítima – ou seja, dentro do casamento legal e monogâmico (Freud, 1976b, pp. 193-194).

Freud afirma então que a libido, no ser humano, não visa unicamente aos fins de reprodução, mas à obtenção de prazer, o que, no bebê, irá aparecer na forma de auto- erotismo, pela manipulação das partes do corpo chamadas de zonas erógenas. Defende a necessidade da educação restringir a satisfação auto-erótica, evitando a permanência da

libido nesta fase, o que a inutilizaria posteriormente. A libido passa então ao amor objetal, e as zonas erógenas são subordinadas aos genitais, a serviço da reprodução. Nos casos favoráveis, a parte da excitação sexual fornecida pelo próprio corpo do sujeito que não é útil à função reprodutora – os elementos pervertidos da excitação sexual – será sublimada. Nos casos em que isto não ocorre, o indivíduo torna-se pervertido, com a fixação infantil a um alvo sexual preliminar impedindo o estabelecimento da primazia da função reprodutora (Freud, 1976b, p. 194).

Freud diferencia aqui os pervertidos dos homossexuais, mas afirma que, em ambos os casos, as formas mais acentuadas (especialmente quando exclusivas), tornam o indivíduo socialmente inútil e infeliz. Se sua libido é fraca, conseguem suprimir totalmente as inclinações que os colocam em conflito com as exigências morais de sua comunidade, mas esta seria sua única realização, pois assim esgotam as forças a serem utilizadas em atividades culturais. Se a libido é muito forte, ou o indivíduo permanece pervertido, ou, na tentativa de suprimir as pulsões perversas, acaba por transformá-las em sintomas (que muitas vezes o tornam tão inútil socialmente quanto o seria se permanecesse na perversão), constituindo o grupo dos chamados neuróticos (Freud, 1976b, pp. 195-196).

Freud afirma, por várias vezes neste texto, que a força da pulsão, ou da libido, é constitucional, sendo mais fraca nas mulheres. Questiona a possibilidade das relações sexuais permitidas pela "moral sexual civilizada" de sua época serem de fato satisfatórias. Para ele, a resposta é negativa, considerando que esta moral prega a abstinência até o casamento, e que, depois deste, o medo da gravidez advindo da impropriedade dos contraceptivos disponíveis levaria paulatinamente ao termino da atração física e depois da afeição psíquica entre o casal, o que terminaria por degenerar na volta à abstenção, desta vez aliada à desilusão. Enquanto os homens, fiados na dupla moral social, irão recorrer às prostitutas, as mulheres, que encontram um substituto do objeto sexual no filho que amamentam, mas não nas crianças maiores, irão desenvolver com freqüência, após o crescimento do último filho, uma grave neurose. A neurose atuaria então como proteção de sua virtude, pois ela trocará a infidelidade pelos sintomas neuróticos (Freud, 1976b, pp. 197-200).

Considerando o número de mulheres que então lotam os consultórios psicanalíticos, e o fato do próprio Freud afirmar que a neurose é conseqüência da descarga indevida da pulsão sexual, fica difícil aceitar sua tese de que as mulheres teriam, constitucionalmente, uma "libido mais fraca". Quanto à afirmativa de que as mulheres encontram um substituto do objeto sexual apenas no filho que amamentam, isto estaria relacionado ao fato de que não apenas a criança sente prazer com a amamentação: as mulheres psiquicamente saudáveis também.

Freud questiona então se os lucros que a sociedade obtêm da moral coerciva são compensadores, e considera que as perdas são maiores que os ganhos, mesmo considerando a "necessidade" da repressão da sexualidade nos jovens até que eles se tornem capazes de ganhar seu sustento, podendo assim constituir família. Afirma que, em alguns casos, as energias necessárias à conquista de uma carreira são todas gastas na contenção da libido. Além disso, quando a autorização para as relações sexuais acontece – após o casamento – muitas pessoas, em especial as mulheres, não conseguem livrar-se tão facilmente da proibição, mostrando uma acentuada frigidez (Freud, 1976b, pp. 201- 203).

Sendo o objetivo da "moral sexual civilizada" que o sexo leve à concepção legítima, as mulheres que concebem sem prazer não se mostram dispostas a enfrentar as dores de partos freqüentes, ficando então a sociedade responsável por solapar seus próprios intentos. Freud afirma ainda que, mais tarde, a mulher supera seu "atraso" no desenvolvimento, sendo despertada sua "capacidade de amar", mas então há muito sua relação com o marido estaria deteriorada, restando-lhe a escolha entre a insatisfação, a infidelidade ou a neurose. Além disso, Freud irá equiparar o comportamento sexual do indivíduo com seu comportamento em todas as demais circunstâncias, afirmando que o homem que renuncia a sua satisfação sexual terá, em outras esferas, um comportamento conciliatório e resignado (Freud, 1976b, p. 203).

Com respeito às mulheres, em sua constatação de que o comportamento geral acompanha o sexual, afirmará que:

A educação das mulheres impede que se ocupem intelectualmente dos problemas sexuais, embora o assunto lhes desperte uma extrema curiosidade, e as intimida condenando tal curiosidade como pouco feminina e como indício de disposição pecaminosa. Assim a educação as afasta de qualquer forma de pensar, e

o conhecimento perde para elas o valor. Essa interdição do pensamento estende-se além do setor sexual, em parte através de associações inevitáveis, em parte automaticamente [...] Acredito que a inegável inferioridade intelectual de muitas mulheres pode [...] ser atribuída à inibição do pensamento necessária à supressão sexual (Freud, 1976b, pp. 205-206).

Freud (1976b) termina seu artigo afirmando que, embora não seja atribuição do médico propor reformas sociais, pensa que poderia sugerir a necessidade de tais reformas (p. 208). Contudo, Freud não deixa de defender, de alguma forma, a coerção da sexualidade, especialmente por não fornecer nenhuma saída para o problema.

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 130-135)