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UM SÁBIO DE ESTAGIRA, CUJA CABEÇA SUSTENTA AINDA HOJE O

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 40-44)

OCIDENTE12

Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) não seria apenas preceptor de Alexandre, o Grande, mas o criador de um tipo de lógica que até hoje influencia grandemente o pensamento ocidental, e o autor do primeiro tratado de anatomia e fisiologia animal comparada, definindo claramente, no século IV a.C., os argumentos para o modelo de sexo único e para a hierarquia notória entre o homem e a mulher. Após desenvolver a teoria das quatro causas – material, formal, eficiente e final – Aristóteles afirma que, na geração, caberia à mulher a causa material e, ao homem, a causa formal. A causa final aristotélica da perfeição é o calor. O homem é superior à mulher devido à maior quantidade de calor que possui em relação a ela. A mulher menstrua porque é mais fria que o homem, tendo mais oportunidade de produzir um "excesso de nutrientes" (Birman, 2001, p. 37 e Laqueur, 2001, p. 44).

O homem seria o responsável, na concepção, pela transmissão da humanidade propriamente dita: a forma, a causa formal, seria o ato, o portador da marca ou do princípio divino. A mulher, enquanto matéria, esperaria passivamente para ser engendrada. Daí se faz a relação entre homem/atividade/superioridade e entre mulher/passividade/inferioridade. Há uma só "semente", com uma diferença radical entre o material gerador do homem e o da mulher: os homens produzem sperma, causa eficiente da geração, e as mulheres não. Os homens, e os machos "sangüíneos" em

geral, emitem uma substância branca (por ser uma espuma composta de bolhas invisíveis) e espessa (por ser um composto de água e respiração – pneuma). A ejaculação é apenas o veículo da causa eficiente, o esperma, que atua como um relâmpago invisível. O esperma some ou evapora-se na mulher, entrando no que tornar- se-ia o corpo do embrião, da mesma forma que qualquer agente ativo entra numa matéria passiva. Além disso, se a concepção é resultado exclusivo da "semente" masculina, o orgasmo da mulher é totalmente irrelevante para a geração (Birman, 2001, pp. 37-38, Laqueur, 2001, pp. 44).

Ao afirmar que cabe ao homem a transmissão da humanidade na concepção, Aristóteles na verdade afirma que a manutenção da espécie humana depende exclusivamente dos homens. À mulher resta a transmissão da matéria, desprovida de forma e de razão, pois ela só ofereceria o lugar para a geração e uma matéria bruta (na concepção da época a menstruação), desprovida do calor necessário para a formação da vida. Já que dispõe do lugar para a geração (o útero), se a mulher possuísse a mesma alma que o homem ela engendraria sozinha (Badinter, 1986, pp. 109-110).

Com estas afirmativas, os homens desvencilham-se definitivamente do "império da feminilidade", que sempre esteve atrelado à fertilidade. Relegada a um papel menor na procriação e às tarefas domésticas, desde sempre tidas como menos importantes, ao perder seu valor prático e seu prestígio místico, a mulher passa a ser vista desde então como uma serva (Beauvoir, 2000, p. 100).

[...] deve haver união entre os elementos que não podem subsistir uns sem os outros; por exemplo, homem e mulher, uma vez que a espécie precisa continuar (e esta é uma união formada não pela escolha, mas pelo desejo, implantado pela natureza, porque, em comum com outros animais e plantas, a humanidade tem o impulso natural de propagar-se) e ambos precisam ser preservados de acordo com um mecanismo e um motivo naturais (Aristóteles, 1999, p. 144).

Aqui, Aristóteles afirma que o desejo sexual entre homem e mulher – ou, mais especificamente, o desejo do homem pela mulher – é fruto exclusivamente do instinto de perpetuação da espécie. Pudessem os homens escolher, com certeza não encontrariam nas mulheres as parceiras ideais para o coito.

Ao ser destituída de toda sua valia, a mulher transmitirá doravante (mais do que já ocorria anteriormente) esta desvalorização às filhas que vier a ter. Assim, ainda que para Aristóteles o homem engendre o homem e também a mulher, esta última é

considerada um desvio genético, um monstro. A responsável por tal monstruosidade será, sem dúvida, a mãe. A fêmea não passa de um macho mutilado, uma falha no princípio masculino (Badinter, 1986, pp. 110-111).

Esta apropriação pelo pai do poder de procriação estender-se-á para muitos lugares e continuará afetando a mentalidade das sociedades primitivas de tipo patriarcal do século XX13. Em algumas destas sociedades, o ventre da mãe é assimilado a um barco, a um lugar de passagem para o feto; em outras, acredita-se que o pai coloca um ovo no interior da mulher; outras sociedades serão ainda mais radicais, negando todo o parentesco entre a mãe e o filho14 (Badinter, 1986, pp. 112-113).

Nas criaturas vivas [...] é que primeiro observamos o preceito despótico e o preceito constitucional: a alma rege o corpo com regras despóticas enquanto o intelecto rege os apetites com regras estabelecidas e reais. E é claro que o domínio da alma sobre o corpo, assim como o da mente e do racional sobre as paixões, é natural e conveniente, ao passo que a eqüidade entre ambos, ou o domínio do inferior é sempre doloroso. O mesmo aplica-se aos animais em relação ao homem; os animais domésticos têm melhor natureza do que os selvagens e todos os animais domésticos são melhores quando dirigidos pelo homem; por isso são preservados. Do mesmo modo, o homem é superior e a mulher inferior, o primeiro manda e a segunda obedece; este princípio, necessariamente, estende-se a toda a humanidade (Aristóteles, 1999, pp. 150-151).

13 E com certeza ainda no século XXI. Vale lembrar que, no Brasil, que não pode ser chamado de "tribo

primitiva", ainda no século XXI, é com extrema naturalidade que os livros e os médicos aconselham aos pais, ao responder às crianças quando perguntam "de onde vêm os bebês", dizer que o "papai coloca uma sementinha dentro da mamãe". Não costuma ocorrer sequer às mulheres questionar esta falácia, e acrescentar que, para germinar, esta "sementinha" deverá encontrar-se com uma "outra sementinha", que já se encontra dentro da mamãe. O óvulo parece fazer parte apenas de explicações mais científicas, mas no imaginário, a mulher ainda não passa de um receptáculo para o poder criador do homem.

14 Em vários lugares e em variadas épocas, os homens vão mais longe em sua tentativa de substituir as

mulheres na procriação, ao praticar o couvade, ritual no qual o pai recebe uma série de cuidados ao nascimento de um filho, enquanto a mãe levanta imediatamente para tratar de suas tarefas, sendo ignorada pelo resto da comunidade. O pai simula uma ou várias etapas da maternidade. Em outras tribos, há rituais de iniciação para os meninos, em que é simulado um renascimento, desta vez através dos homens. No Pacífico, em algumas tribos, os rapazes são "raptados" por seus parentes mais velhos, e levados para uma casa onde se finge que foram mortos e levados pelo demônio, e depois foram devolvidos, mediante a intercessão dos sacerdotes. Os homens mantêm o segredo da pantomima para as mulheres, repetindo assim os segredos que cercam o parto. Em tribos da Nova Guiné, em que a mulher enfraquecida pela menstruação ou pelo parto é "alimentada" com esperma, este "tratamento" também será dado aos rapazes, em um ritual iniciático. Assim, os rapazes deverão praticar sexo oral (e engolir o esperma) em outros rapazes mais velhos, ainda virgens – de forma que não se leve para sua boca a "poluição" da vagina, presente nos pênis dos homens que mantêm relações habituais com mulheres. Se as mulheres são capazes de parir tanto meninas quanto meninos, os últimos só tornar-se-ão homens ao serem "renascidos" por outros homens (Badinter, 1986, pp. 113-119).

Aristóteles critica duramente a "dominação espartana pelas mulheres". Se não é possível chegar a tanto, no sentido de imaginar uma dominação, sabe-se que as mulheres de Esparta, por esta época, onde prevalece um regime comunitário, sem propriedade privada, são tratadas em condições de igualdade com os homens. As meninas são educadas como os meninos, a esposa permanece em sua própria casa, onde recebe "visitas noturnas" esporádicas do marido, podendo inclusive, em nome da eugenia, ter filhos com outros homens, sem sofrer admoestações, pois todos os filhos pertencem à cidade (Beauvoir, 2000, p. 109).

Embora Aristóteles (como filósofo) insista em dois sexos, ao afirmar que a característica distinguível da masculinidade é imaterial, e ao acabar com as distinções orgânicas entre os sexos (como naturalista), termina por definir a carne como algo que pode ser classificado, diferenciado e ordenado conforme exigido pelas circunstâncias. Para Aristóteles, a idéia de que o macho é ativo, e contribui com a forma para a geração, e que a fêmea é passiva, e contribui com a matéria para a geração, são fatos inquestionáveis, verdades "naturais". Já as diferenças básicas sexuais – ter pênis ou "vagina"15, ter testículos ou "ovários", ter ou não ter "útero", são vistas por Aristóteles como dados contingentes à espécie (Laqueur, 2001, p. 44).

É claro que Aristóteles é capaz de diferenciar o homem da mulher a partir de seus corpos, e não considera acidental que cada um desempenhe um conjunto de papéis diferente do outro. Mas considera tanto a divisão de trabalho quanto a atribuição específica de papéis como "naturais", como ordenados pela "vontade divina", ou seja, os papéis não estão relacionados ao corpo, a forma não segue a função – basta ver a idéia, por ele defendida, de que o tamanho do pênis é inversamente proporcional à capacidade de reprodução, porque o sêmen, em um homem de pênis grande, leva mais tempo para atingir o objetivo, com isso esfria, e o sêmen frio não gera16. Quanto aos testículos, sua função não é a produção de sêmen, mas a de "inclinar" (como uma espécie de peso) os

15 As palavras vagina, ovário, etc., demoraram muito para aparecer. Por um longo tempo, eram utilizados

para estas partes do corpo da mulher os mesmos termos que os utilizados para as partes do corpo do homem. Ou seja, a denominação usada para os ovários por exemplo, era a mesma utilizada para os testículos, sendo necessário deduzir, pelo contexto, a qual deles se fazia referência (Laqueur, 2001, p. 120).

16 Vale lembrar que, na época, os pênis grandes eram considerados cômicos e próprios dos sátiros

canais ejaculatórios, evitando assim que fiquem emaranhados (Laqueur, 2001, pp. 44- 47).

Além disso, Aristóteles afirma que os órgãos masculinos são semelhantes aos femininos, com a diferença da mulher possuir um ventre (útero), que os homens aparentemente não têm (embora ele compare o ventre à bolsa escrotal). A mulher possui um tubo como o pênis do homem, localizado porém dentro do corpo, com um orifício, colocado acima do lugar por onde urina, pelo qual aspira o sêmen. Por último, é preciso considerar que Aristóteles, apesar de perceber os corpos do homem e da mulher como adaptados a seus papéis particulares, não vê nesta adaptação um sinal de oposição sexual: a oposição era vista apenas na biologia reprodutiva (Laqueur, 2001, pp. 47-48).

Com base nos ensinamentos de Aristóteles, o anatomista Herófilo da Alexandria, encontra-se tão preso ao modelo de sexo único que conclui, no século III a.C., através do seu estudo de cadáveres dissecados, que as trompas de Falópio (chamadas de "canais ejaculatórios femininos"), ligam-se à bexiga, como nos homens. Se homens e mulheres pertencem a um único sexo, com graus hierárquicos diferentes apenas, Herófilo tentará levar esta percepção às últimas conseqüências (Laqueur, 2001, pp. 16/42).

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