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UM TEMPO QUE REFAZ O QUE DESFEZ – QUE RECOLHE TODO O

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 155-162)

SENTIMENTO, E BOTA NO CORPO UMA OUTRA VEZ34.

Ainda em 1914, é publicado um artigo de Freud intitulado Sobre o narcisismo:

uma introdução. Segundo Strachey (1974a), este texto teria sido escrito mais ou menos

ao mesmo tempo que A história do movimento psicanalítico, e uma das motivações de Freud para escrevê-lo seria (com o conceito de narcisismo) oferecer uma alternativa, tanto para a "libido não sexual" de Jung, quanto para o "protesto masculino" de Adler – ou seja, para as teses que levaram estes autores a distanciarem-se da teoria psicanalítica (p. 86).

Freud inicia seu texto informando que o termo narcisismo fora utilizado anteriormente (1899) por Paul Näcke, para descrever uma perversão na qual o indivíduo trataria seu próprio corpo como objeto sexual, contemplando-o, afagando-o e acariciando-o até atingir a satisfação sexual. Prossegue afirmando que alguns aspectos da atitude narcisista são encontrados também em outras perturbações, o que levaria à conclusão de que, no curso regular do desenvolvimento sexual humano, há um momento de investimento libidinal narcísico ou, em outras palavras, um narcisismo primário, um investimento original no próprio ego que, em parte, seria posteriormente transmitida a objetos (Freud, 1974b, pp. 89-92).

Haveria uma antítese entre "libido de ego" e "libido objetal", pois o maior uso de uma delas implicaria no esvaziamento da outra. No momento em que um indivíduo se encontra apaixonado, por exemplo, desiste de sua própria personalidade em favor do investimento objetal. Por outro lado, a pessoa que padece de um sofrimento físico retira sua libido dos objetos, passando a preocupar-se apenas consigo mesma, ou com seu órgão doente (Freud, 1974b, pp. 92/98).

Como se sabe, as zonas erógenas podem atuar como substitutas dos órgãos genitais. É possível considerar, contudo, que a erogeneidade é uma característica geral de todos os órgãos. Especialmente, se for chamado de erogeneidade o envio – que pode ser feito por qualquer parte do corpo – de mensagens sexualmente excitantes ao psiquismo. Assim, pode-se falar de aumento ou diminuição da erogeneidade em uma

parte específica do corpo. Cada modificação na erogeneidade dos órgãos corresponderia a uma modificação paralela do investimento libidinal no ego (Freud, 1974b, p. 100).

Reconhecemos nosso aparelho mental [sic] como sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos. Sua elaboração na mente [sic] auxilia de forma marcante um escoamento das excitações que são incapazes de descarga direta para fora, ou para as quais tal descarga é, no momento, indesejável. No primeiro caso, contudo, é indiferente que esse processo interno de elaboração seja efetuado em objetos reais ou imaginários. A diferença não surge senão depois – caso a transferência da libido para objetos irreais (introversão) tenha ocasionado seu represamento (Freud, 1974b, pp. 101-102).

Uma forma possível de se abordar o estudo do narcisismo é através da escolha de objeto feita na infância. A criança deriva seus objetos sexuais de suas experiências de satisfação. Sendo as primitivas satisfações auto-eróticas experimentadas em conjunto com as funções de autopreservação, as pulsões sexuais encontram-se, no início, ligadas às pulsões egóicas. Quando estas pulsões se tornam independentes, ainda assim a vinculação original é mantida, pois o primeiro objeto sexual da criança é a pessoa que se preocupa com sua alimentação, cuidados e proteção (a mãe ou alguém que a substitua). Contudo, em pessoas que tenham sofrido alguma perturbação em seu desenvolvimento libidinal (tal como os pervertidos ou os homossexuais), a escolha de objeto recai, não sobre a mãe, mas sobre eles mesmos, o que configura a escolha objetal narcisista (Freud, 1974b, p. 104).

Aqui, o termo "pulsão egóica", sinônimo de narcisismo, abrange o impulso de autopreservação. Segundo Schiller (2000):

Da existência do psiquismo decorre o fato de o ser humano não ter nenhum instinto. O instinto é uniforme, invariável, monótono, repetitivo, universal para cada espécie. Impõe necessidades naturais. O homem pode caminhar em sentido oposto: pode se deixar morrer de fome; a mãe pode maltratar um filho; existe o suicida, o perverso, o psicopata; e a sexualidade tem infinitas faces (p. 132).

É possível discordar de Schiller, no tocante ao instinto de autopreservação (ou de sobrevivência). Embora o ser humano seja capaz de suicidar das mais variadas formas (incluindo a anorexia), isto prova apenas o predomínio do psiquismo sobre o instinto de preservar a própria vida se o indivíduo dispuser de um intervalo mínimo de tempo para pensar. Há pessoas que, estando na fase de planejamento de seu suicídio, passam por alguma situação no trânsito que quase se transforma em acidente, e seu instinto de

autopreservação as leva a desviar o carro, a fazer o possível para evitar a colisão. Terão elas, assim, quem sabe, mais uma semana para elaborar o plano de sua própria morte. Da mesma forma, o lugar mais seguro para um passageiro, em um ônibus ou um carro, será sempre atrás do motorista. Não importa se no veículo há pessoas por cuja vida ele sacrificaria a sua própria. Na iminência de um desastre, na falta de tempo para pensar, fala mais alto o instinto, e o motorista tratará de salvar primeiramente a si próprio. Não é possível, portanto, considerar que o instinto de sobrevivência ou autopreservação (possivelmente o único que nos resta) esteja incluído na pulsão egóica (narcísica) visto ser o narcisismo, muitas vezes, responsável justamente pela autodestruição.

Segundo Freud (1974b), o indivíduo do tipo narcisista pode amar: ele mesmo; o que ele foi; o que ele gostaria de ser; alguém que foi uma vez parte dele mesmo. O indivíduo do tipo "de ligação" pode amar: a mulher que o alimenta; o homem que o protege (p. 107).

Visando a dois objetivos distintos, torna-se necessário recordar que Freud, em seus Três ensaios... (1989b, pp. 175-176), afirma que a sensibilização dos órgãos sexuais se faz pelos cuidados higiênicos exercidos sobre o corpo da criança pela mãe. Considerando, além disso, o enunciado acima (de que a escolha da criança pela mãe como objeto amoroso deve-se ao fato de que ela a alimenta), e o fato de, em ambas as asserções, não haver uma diferenciação entre o desenvolvimento de meninos e meninas, pode-se questionar a afirmação, feita por Roudinesco e Plon (1998), de que:

Em sua organização edipiana da sexualidade feminina, Freud (e esse foi seu principal erro) desconsiderou todo o campo das relações arcaicas com a mãe. Sob esse aspecto, o debate referente à sexualidade feminina foi da mesma natureza do que se desenvolveu sobre a psicanálise de crianças (p. 706).

Ora, parece que Freud leva, sim, a relação da criança com a mãe em consideração. E isto em ambos os sexos. Pode-se argumentar que, em comparação com outros (as) psicanalistas, ele não confere tanta importância à função materna no desenvolvimento infantil. Mas dizer que ele a desconsidera é um erro.

O outro objetivo do resgate da afirmação de Freud em seus Três ensaios... é fazer uma contraposição entre ela e a asserção feita neste artigo (de 1914). Em 1905, Freud fala da erogenização dos órgãos sexuais pela mãe. No texto atual, fala que a escolha da mãe como objeto amoroso ocorre em função de ser ela a alimentar

inicialmente a criança. A escolha do pai seria por seu papel protetor. A ser seguido o raciocínio do próprio Freud em Três ensaios..., a escolha da mãe como primeiro objeto sexual (tanto dos meninos quanto das meninas) se daria em função da sedução não intencional que ela exerce sobre a criança. A escolha do pai se daria também pela sedução exercida por ele sobre a criança, sendo, neste caso, sempre intencional, embora possa ser inconsciente e não necessariamente concreta, podendo ocorrer de forma muito mais sutil.

Segundo André (1996), se o abandono – por Freud – da teoria da sedução, deve- se a razões metapsicológicas, tais como a ausência de um "índice de realidade" no inconsciente capaz de distinguir entre a fantasia e a sedução real, este abandono deve-se também ao conhecimento que tinha do abuso sexual que seus irmãos sofreram por parte de seu próprio pai. Para esse autor, o pai sempre exercerá alguma forma de sedução, mesmo que seja de forma velada (p. 95).

Contudo, pode haver casos em que a sedução, por parte do pai, realmente não ocorre, sendo a menina então levada a esta escolha objetal devido à percepção da diferença sexual (anatômica ou não). No caso do pai não corresponder de forma alguma à escolha objetal feita pela filha, haveria, na maior parte das vezes, uma regressão para a escolha da mãe como objeto. Mas, ao afirmar que a escolha do pai como objeto amoroso se deve a seu papel protetor, Freud exclui (erroneamente) a possibilidade das meninas investirem sua libido em pais ausentes, agressivos, alcoólatras, fracos, e uma série de outros "tipos de pai" que não oferecem à criança a mínima sensação de segurança.

Freud prossegue seu artigo falando sobre a vida erótica dos adultos, em que é possível perceber diferenças fundamentais entre homens e mulheres quanto ao tipo de escolha objetal – embora não se possa afirmar que essas diferenças sejam universais. O amor objetal do "tipo de ligação" é característico do homem. Ele exibe, em sua escolha, a acentuada supervalorização sexual que tem origem no narcisismo original da criança. Em outras palavras, o homem faz uma transferência de seu narcisismo para o objeto sexual. Com o empobrecimento da libido de ego em favor do objeto amoroso, o homem atinge o estado peculiar da pessoa apaixonada, que chega a sugerir uma compulsão neurótica (Freud, 1974b, p. 105).

Já com o tipo feminino mais freqüentemente encontrado, provavelmente o mais puro e o mais verdadeiro, o mesmo não ocorre. Com o começo da puberdade, o amadurecimento dos órgãos sexuais femininos, até então em estado de latência, parece ocasionar a intensificação do narcisismo original, e isso é desfavorável para o desenvolvimento de uma verdadeira escolha objetal com a concomitante supervalorização sexual. As mulheres, especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua escolha objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças [...]. Tais mulheres exercem o maior fascínio sobre os homens, não apenas por motivos estéticos, visto que em geral são as mais belas, mas também por uma combinação de interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente que o narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal (Freud, 1974b, pp. 105-106).

No parágrafo acima, Freud parece se referir à mulher de caráter histérico. Ao atender em seu consultório principalmente vítimas de neuroses graves, Freud acaba por priorizar a descrição e diferenciação dos tipos de neurose, em detrimento dos tipos de caráter. Sabe-se, contudo, que caráter e neurose são a mesma coisa, pois não é mais possível falar em indivíduos "normais". Apenas há casos em que a neurose aparece de uma forma mais grave. Assim, ao considerar a mulher narcísica como o "tipo feminino mais verdadeiro", Freud na verdade aponta o fato de que o caráter histérico é o mais comum nas mulheres. Quando afirma que os homens sentem-se atraídos irresistivelmente por mulheres narcisistas, confirma sua idéia original, dos Três

ensaios... (Freud, 1989b, p. 208), de que a mulher que renega sua sexualidade é aquela

que leva a um aumento da libido e ao processo de supervalorização no homem. A mulher que "renega" sua sexualidade é justamente a mulher histérica.

Contudo, mais adiante, neste texto de 1914, Freud afirma que, em uma relação amorosa, o fato de não ser correspondido reduz a auto-estima, sendo o oposto também verdadeiro. O indivíduo que ama priva-se de uma parte de seu narcisismo, que só pode ser compensada pelo amor que receber da pessoa amada (Freud, 1974b, pp. 115-116).

A compreensão da [..] própria incapacidade de amar, em conseqüência de perturbação física ou mental, exerce um efeito extremamente diminuidor sobre a auto-estima. Aqui, em minha opinião, devemos procurar uma das fontes dos sentimentos de inferioridade experimentados por pacientes que sofrem de neuroses de transferência (Freud, 1974b, p. 116).

Estando a histeria entre as neuroses de transferência, possivelmente o que Freud chama de comportamento narcisista "típico da mulher" não passa de um disfarce para seu sentimento de inferioridade. Ao seduzir os homens, ao se sentir amada, ela aumentaria um pouco sua auto-estima. Porém, como se mantêm incapaz de amar, sua auto-estima logo se esvazia, e ela precisa sentir-se amada novamente (de preferência por outra pessoa que não a anterior) para recuperar o amor-próprio. A estar correto este raciocínio, a forma de amar "típica da mulher" esconderia uma auto-estima rebaixada, e não um excesso de amor por si mesma.

Freud afirma também que: "o amar em si, na medida em que envolva anelo e privação, reduz a auto estima, ao passo que ser amado, ser correspondido no amor, e possuir o objeto amado, eleva-a mais uma vez" (Freud, 1974b, p. 117).

É preciso retomar também a afirmativa de Freud (1970a) em Sobre a tendência

universal à depreciação na esfera do amor, de que o homem supervaloriza as mulheres

que identifica com sua mãe, e desvaloriza aquelas que não permitem esta transferência – com as quais irá realizar-se sexualmente (p. 169). Sendo correta a afirmativa de que há uma tendência maior de supervalorização do objeto amoroso nos homens, talvez isto se deva justamente ao fato de que ele busca, como objeto amoroso, a mulher que não lhe corresponde, a que renega a própria sexualidade – como sua mãe, na relação original. Quando conquista o objeto de seu desejo, o retorno que isto produz em sua auto-estima leva a uma conseqüente desvalorização do objeto. Assim, é possível questionar se o processo de supervalorização/depreciação que o homem realiza sobre seus objetos não demonstra justamente uma maior dose de narcisismo em seu psiquismo, em comparação com a mulher.

A pessoa realmente apta a amar seria aquela (não importando seu sexo) capaz de dirigir a um objeto externo parte de sua libido (sem supervalorização), mantendo a relação apenas na medida em que seu amor é correspondido. Pode-se questionar também a existência de "tipos narcisistas" verdadeiros para além da psicose (parafrenia – casos que também são descritos por Freud neste texto). O que parece haver, é uma transferência constante de libido entre a pulsão egóica e a pulsão objetal.

Segundo Freud (1974b), a atitude dos pais afetuosos para com os filhos, e sua compulsão de atribuir a eles todas as perfeições, ocultando e esquecendo todas as suas

deficiências (incluindo as manifestações da sexualidade infantil), seria uma forma de reviverem seu próprio narcisismo. Quanto ao narcisismo original da criança, o principal distúrbio a que se encontra exposto é o complexo de castração, que aparece nos meninos na forma de ansiedade com relação ao pênis e, nas meninas, na forma de inveja do pênis. No período em que ocorre o complexo de castração, tanto a pulsão sexual quanto a pulsão egóica atuam em uníssono, com um interesse narcisista (pp. 107-109).

No adulto, a parte da libido de ego que não é convertida em libido de objeto transforma-se em agente de recalcamento. O "amor-próprio" do ego é que irá evitar que o indivíduo se coloque em conflito com sua cultura e sua ética. Quando o indivíduo fixa em si mesmo um ideal, pelo qual mede seu ego real, o recalcamento passa a atuar. O "ideal de ego"35 torna-se o alvo do amor de si mesmo, vivido na infância pelo ego real. A idealização pode ser realizada, tanto na esfera da libido de ego, quanto na esfera da libido objetal (Freud, 1974b, pp. 110-11).

A formação de um ideal de ego não deve ser, contudo, confundida com a sublimação da pulsão, pois embora exija uma certa dose desta última, não pode fortalecê-la. Nos neuróticos, encontra-se a mais acentuada diferença entre o desenvolvimento do ideal de ego e a sublimação de suas pulsões primitivas. Se a formação de um ideal aumenta as exigências do ego, sendo o fator mais importante a favor do recalcamento, a sublimação seria uma maneira de atender estas exigências sem envolver o recalcamento. Há um "agente psíquico especial", que assegura a satisfação narcísica proveniente do ideal de ego, para isto observando constantemente o ego real, e medindo-o por aquele ideal. Este "agente psíquico" é nossa consciência. A formação do ideal de ego, em nome do qual a consciência atua como vigia, surge da influência crítica dos pais da criança e, posteriormente, do resto da sociedade (Freud, 1974b, pp. 111- 113).

O ideal de ego impõe severas condições à satisfação da libido por meio de objetos, pois ele faz com que alguns deles sejam rejeitados por seu censor, como sendo incompatíveis. Onde não se formou tal ideal, a tendência sexual em questão aparece inalterada na personalidade, sob a forma de uma perversão. Tornar a ser seu próprio ideal, como na infância, no que diz respeito às tendências sexuais não

35 Segundo Strachey (1974a), o termo "ideal de ego" é usado pela primeira vez neste texto, e constitui a

base do que posteriormente Freud irá chamar de superego (p. 86), como pode ser observado no parágrafo seguinte.

menos que às outras – isso é o que as pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade (Freud, 1974b, p. 118).

Nesta parte de seu texto, Freud iguala os termos "ideal de ego" e narcisismo ("ser seu próprio ideal"). Na página 111 deste texto, Freud utiliza o termo "ego ideal" (mais condizente com o narcisismo) no lugar de "ideal de ego". Trata-se, contudo, de coisas diferentes. Segundo Laplanche & Pontalis (2000), alguns autores diferenciam o "ego ideal" do "ideal de ego", definindo o primeiro como "um ideal narcísico de onipotência, forjado a partir do modelo do narcisismo infantil" (p. 139). Estando o "ideal de ego" ligado à noção de superego, a necessidade de diferenciação dos termos é perceptível.

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 155-162)