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PEQUENOS REIS

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 174-177)

Outro artigo de Freud, publicado em 1917, foi intitulado As transformações do

instinto exemplificadas no erotismo anal. Neste texto, Freud afirma haver uma relação

simbólica entre bebê e pênis (Ferenczi?), perceptível tanto na linguagem dos sonhos, como na vida cotidiana, onde ambos são chamados "o pequeno". Como o discurso simbólico costuma ignorar a diferença de sexo, este termo pode estar relacionado, igualmente, aos "genitais femininos44". Freud retoma a idéia de que na mulher adulta neurótica encontra-se freqüentemente o desejo de possuir um pênis. Isto se daria devido a infortúnios casuais por ela vividos (que seriam, em si, resultados de uma "disposição" bastante masculina), que reativariam a inveja infantil (Freud, 1976f, pp. 160-161).

Em outras mulheres não encontramos esse desejo de um pênis; é substituído pelo desejo de um bebê, cuja frustração, na vida real, pode levar à eclosão de uma neurose. É como se tais mulheres houvessem compreendido (embora isso não possa [sic45] ter atuado como motivo) que a natureza dá bebês às mulheres como substitutos para o pênis que lhes negou. Com outras, ainda, aprendemos que ambos os desejos estavam presentes na infância e que um substituiu o outro. De início, haviam desejado um pênis, como os homens; depois, num estádio posterior, embora ainda infantil, surgiu, em lugar deste, o desejo de um bebê. A impressão que se nos impõe é a de que essa variedade em nossas descobertas é causada por fatores acidentais durante a infância (por exemplo, a presença ou ausência de irmãos, ou o nascimento de um novo bebê numa época favorável da vida), de tal modo que o desejo de um pênis e o desejo de um bebê seriam fundamentalmente idênticos (Freud, 1976f, pp. 161-162).

A possível percepção, por Freud, da inveja de alguns meninos da capacidade de gerar bebês que as mulheres possuem parece ser a única justificativa possível para esta idéia de que "a natureza dá bebês às mulheres como substitutos para o pênis que lhes negou". Vale ressaltar que esta teoria já aparece em Ferenczi (Thalassa). Seriam os mesmos homens que dão tanto valor ao pênis, os que dão tanto valor à capacidade procriativa. A própria idéia de substituição no simbolismo da criança pode ter sido passada pelos adultos. À menina que descobre muito cedo a diferença sexual anatômica, não é dito que não tem um pênis, mas tem um clitóris e uma vagina. É dito justamente que não tem um pênis, mas vai ter bebês. De resto, como bem explicita Schiller (2000):

44 Considerando o uso bastante comum – na pena de Freud – da palavra genital para designar o clitóris,

fica difícil, aqui, saber se ele está se referindo a este órgão ou à vagina.

45 Parece haver aqui uma inversão de palavras. O correto, provavelmente, seria "possa não ter atuado

Inscritas no terreno da cultura desde o nascimento, as crianças fazem observações que são conseqüências de uma montagem. Procuram elaborar a maneira curiosa pela qual nossa civilização representa os dois sexos. A teoria delas, fruto do que lhes foi transmitido, diz que há os que têm e há os que não têm. Elas não dizem que uns têm pênis e outros têm vagina – caso em que haveria dois sexos verdadeiramente distintos. O que aprendem é que há os homens, os que têm, e sua negativa, os que não têm. É como se houvesse os homens e os não-homens. O sexo feminino se constitui pela ausência, por alguma coisa que não se tem, por alguma coisa que falta (p. 61).

São os homens, e a sociedade que reproduz seus valores, que consideram a maternidade como uma compensação à ausência de pênis. Vale ressaltar a importância, no texto de Freud mais acima, de sua inclusão de fatores acidentais na configuração do desejo da menina, seja de ter um pênis, seja de ter bebês. Mas não há uma justificativa real para a relação pênis/bebê. É preciso, portanto, seguir seu texto:

No caso das mulheres que não se tornam neuróticas, a inveja do pênis infantil transforma-se em desejo por um homem. O homem seria, portanto, um suplemento do pênis, tornando um impulso hostil à "função sexual feminina", em outro que lhe é favorável. Desta forma, essas mulheres se tornariam capazes de uma vida erótica baseada no "tipo masculino" de amor objetal, o qual pode existir paralelamente ao "tipo feminino" – narcísico. Em outros casos, apenas um bebê torna possível a transição do narcisismo para o amor objetal – e também neste aspecto o bebê representa (ou é representado por) um pênis. Tendo ouvido sonhos ocorridos logo após a primeira relação sexual de algumas mulheres, Freud afirma que estes sonhos revelam o desejo da mulher de "guardar para si" o pênis que a penetrou. Haveria, no desejo dessas mulheres, portanto, uma regressão de "homem" para "pênis". O desejo racional por um homem pode ser atribuído ao desejo original de um bebê, tendo em vista que o primeiro representa a única maneira de chegar ao segundo (Freud, 1976f, p. 162).

Contudo, é mais provável que o desejo por um homem nasça independente do desejo por um bebê, e que quando esse desejo desperta – por motivos compreensíveis, que pertencem inteiramente à psicologia do ego – o desejo original de um pênis liga-se a ele, como um reforço libidinal inconsciente. A importância do processo descrito jaz no fato de que uma parte da masculinidade narcísica da jovem mulher transmuta-se, assim, em feminilidade, e desse modo não pode mais operar de maneira prejudicial à função sexual feminina (Freud, 1976f, p. 162). Então, para Freud, a mulher não neurótica é aquela que ama de forma masculina, aqui definida apenas como a forma objetal, sem considerar os problemas anteriormente

elencados por ele em outros textos, como a supervalorização/depreciação, por exemplo. Em outras palavras, os homens são o modelo não só sexual, mas também o modelo de

saúde. O desejo das mulheres adultas "normais" por um homem baseia-se na inveja do

pênis, ou então em motivos explicáveis pela psicologia do ego. Quais seriam esses motivos? Provavelmente, o fato de uma mulher não ter uma existência digna deste nome na ausência de um marido. E onde vai parar o complexo de Édipo? Onde o desejo pelo pai se transforma no desejo por um outro homem? A não ser que se considere que a menina só entra no complexo de Édipo através da inveja do pênis – e há vários artigos de Freud afirmando o contrário – há outros motivos sexuais para uma mulher desejar um homem, que não são baseados na inveja. E a "função sexual feminina" continua sendo, claro, a reprodução. Mas mesmo o desejo de ser mãe não é natural na mulher. É resultado da equação pênis/bebê, e portanto, em sua raiz, um desejo de ser homem.

Na seqüência de seu texto, Freud analisa a relação fezes/bebê (Ferenczi?). Considera que essa relação se explica por serem as fezes a primeira dádiva da criança para seu objeto amoroso, e também por serem algo que se separa do corpo (como o bebê). Haveria também uma relação pênis/fezes: "A massa fecal ou, como um paciente a chamou, o bastão fecal, representa como que o primeiro pênis, e a membrana mucosa do reto, estimulada, representa a da vagina" (Freud, 1976f, p. 164).

Segundo André (1991), neste texto, como se pode observar, Freud irá chegar muito perto de uma gênese precoce da vagina a partir da sexualidade cloacal (p. 12). Mas Freud (1976f) não utiliza a palavra cloaca. Cita, inclusive, parte do texto de Andreas-Salomé, mas afirma que ela observa que a vagina é "arrendada" ao reto – quando a palavra utilizada no texto desta autora é cloaca (p. 166). Vale ainda ressaltar que Freud oferece, como exemplo, as simbolizações feitas por um paciente do sexo

masculino. De qualquer maneira, essas observações de Freud levarão a que vários

psicanalistas, posteriormente, sintam-se autorizados a propalar uma sensibilidade precoce da vagina.

No documento Mulher, história, psicanálise (páginas 174-177)