• Nenhum resultado encontrado

3. O desenvolvimento do conceito de Justo Valor

3.3. Níveis hierárquicos do Justo Valor

3.3.1. Apresentação da hierarquia do Justo Valor

No tópico anterior, foi abordado de maneira muito ligeira o tema das técnicas de avaliação, bem como os inputs usados nessas técnicas, para efeitos de apuramento do justo valor de um ativo ou passivo. Assim, nesta secção, antes de apresentar os níveis hierárquicos

114 deste conceito, será também o objetivo precisar alguns conceitos mencionados tanto no normativo do IASB, via IFRS 13, como do FASB, via SFAS 157, que, regra geral, são apresentados de forma bastante similar172.

No que concerne às técnicas de avaliação do justo valor, estas podem ser baseadas no mercado, no rendimento ou no custo (FASB, 2006, §18). Sucintamente, a primeira abordagem envolve o uso de preços praticados em transações respetivas a ativos e passivos semelhantes àquele que está a ser avaliado; a segunda abordagem requer o uso de técnicas mais sofisticadas, com o intuito de descontar para o presente os cash-flows ou resultados que se esperam vir a ser gerados no futuro; por fim, a abordagem do custo tem em conta o montante que seria necessário despender para repor a capacidade operacional de um ativo (Reis & Stocken, 2007).

No que diz respeito aos inputs usados nessas técnicas de avaliação, em primeiro lugar, estes “referem-se, de forma geral, às suposições que os participantes do mercado usariam na atribuição de preços ao ativo ou passivo, incluindo suposições sobre risco” (FASB, 2006, §21). Em segundo lugar, estes podem ser de duas índoles, designadamente observáveis ou não observáveis. Inputs observáveis são “inputs que refletem as suposições que os participantes do mercado usariam na atribuição de preços ao ativo ou passivo, desenvolvidas com base em dados de mercado obtidos de fontes independentes face à entidade de reporte” (§21, a)). Inputs não observáveis são “inputs que refletem as suposições da própria entidade de reporte sobre as suposições que os participantes do mercado usariam na atribuição de preços ao ativo ou passivo, desenvolvidas com base nas melhores informações disponíveis nas circunstâncias” (§21, b)).

Dito isto, segundo Haswell e Evans (2018), a contabilidade ao justo valor é uma “constelação de técnicas que revisam periodicamente os valores financeiros” (p. 25), que se podem decompor, de maneira geral, em duas versões. Por um lado, uma versão mais rigorosa, denominada de contabilidade mark-to-market, que tem como referência dados de mercado observáveis e verificáveis, atualizados a cada momento, como, por exemplo, as cotações das ações, e, por outro lado, numa versão, nas palavras dos autores, “mais suave” (p.25), designada por contabilidade mark-to-model, onde são elaboradas estimativas e revisões dos preços dos ativos, por parte da gestão, usando para o efeito cálculos matemáticos e suposições sobre as perspetivas e condições futuras associadas a esses elementos.

172Dado a SFAS 157 e a IFRS 13 serem semelhantes a nível de conteúdo, será apenas referenciada a

115 Face a uma série de escândalos financeiros, nomeadamente o colapso da empresa Enron, nos EUA, no início do século XXI, as entidades de normalização, entre elas o FASB, aprenderam que a contabilidade mark-to-model podia suscitar problemas sérios, daí ter sido introduzida, em vários normativos, no caso, na SFAS 157, uma hierarquia para os inputs a serem utilizados nas técnicas de determinação do justo valor, sendo esta composta por três níveis (Haswell & Evans, 2018). Como é salientado na SFAS 157 (FASB, 2006, §22), com o objetivo de aumentar a consistência e a comparabilidade das mensurações e respetivas divulgações do justo valor, os três níveis estão ordenados em função da prioridade com que devem ser usados. Assim, temos que:

- Nível 1: “Inputs de nível 1 são preços cotados (não ajustados) em mercados ativos para ativos ou passivos idênticos que a entidade de reporte tenha a capacidade de ter acesso na data de mensuração” (§24). No mesmo parágrafo é acrescentado que um mercado ativo é “um mercado no qual as transações para o ativo ou passivo ocorrem com frequência e volume suficientes para fornecer informações sobre preços numa base contínua”, de que pode ser dado o exemplo do mercado de capitais. No caso de serem utilizados inputs de nível 1, a assimetria de informação entre gestores e investidores é relativamente baixa (Palea & Maino, 2013). Além disso, enquanto certas entidades, como académicos ligados à Contabilidade e reguladores bancários, suscitam preocupações em relação à capacidade dos valores de mercado de originar preços cada vez mais acima do seu valor normal e, por conseguinte, de criar expectativas de aumento contínuo dos preços (price bubbles) ou de despertar certos incentivos e feedbacks indesejáveis (Ryan, 2008), Ronen (2008) considera que, dado as mensurações que têm por base estes inputs terem como âncora preços de mercado correntes passíveis de serem verificados com rigor, o justo valor poderá ser determinado de forma objetiva, cumprindo assim com o critério da fiabilidade. Ryan (2008, p. 1626) chega mesmo a dizer que “mensurações puramente mark-to-market que usem tais inputs maximamente confiáveis são o equivalente aproximado à nirvana contabilística”, dando a entender que o uso destes inputs poderia libertar a profissão de vários problemas. Assim, como é concluído no parágrafo 24 da SFAS 157 (FASB, 2006), “um preço cotado num mercado ativo fornece a evidência mais fiável do justo valor e deve ser usado para mensurar o justo valor sempre que disponível”, a não ser que esteja disponível, mas o seu acesso seja difícil, ou nos casos em que não represente o justo valor na data de mensuração, situações em que não deve ser utilizado (Yuan & Liu, 2011).

116 - Nível 2: “Inputs de nível 2 são inputs que não os preços cotados incluídos no Nível 1 que são observáveis para o ativo ou passivo, tanto direta como indiretamente. Se o ativo ou passivo tiver um prazo particular (contratual), um input de Nível 2 deve ser observável durante substancialmente todo o prazo do ativo ou passivo” (FASB, 2006, §28). Neste parágrafo é esclarecido também que estes inputs podem representar diferentes aspetos, entre eles:

“a. Preços cotados para ativos ou passivos similares em mercados ativos

b. Preços cotados para ativos ou passivos idênticos ou similares em mercados que não estão ativos. (O parágrafo 29A inclui exemplos de fatores que podem indicar que um mercado não está ativo ou que houve uma redução significativa no volume e nível de atividade para o ativo ou passivo quando comparado à atividade normal de mercado para o ativo ou passivo (ou ativos ou passivos), dependendo do grau em que os fatores existem.)

c. Inputs além dos preços cotados que são observáveis para o ativo ou passivo (por exemplo, taxas de juro e curvas de rendibilidade observáveis em intervalos normalmente cotados, volatilidades, velocidade a que os pagamentos antecipados dos créditos hipotecários são feitos, dimensão das perdas nos ativos dados em garantia nos empréstimos, riscos de crédito e taxas de incumprimento)

d. Inputs que são derivados principalmente de ou corroborados por dados de mercado observáveis por correlação ou outros meios (inputs corroborados pelo mercado)”

A este respeito, pode-se dizer que também os inputs de nível 2 são fiáveis, dado se basearem em dados de mercado observáveis (Palea & Maino, 2013). Contudo, Riedl e Serafeim (2011), Ronen (2008, 2012) e Ryan (2008) são mais prudentes na sua análise. Os primeiros mencionam que apesar dos inputs serem fiáveis, uma estimativa apropriada do justo valor dependerá fundamentalmente da validade dos modelos usados. Já o segundo autor refere que a fiabilidade destas medidas depende essencialmente da “bondade do ajustamento entre os preços dos inputs observáveis e o valor estimado” (Ronen, 2012, p. 151). Este acrescenta ainda que erros de mensuração e modelos inapropriados podem servir de obstáculo para a obtenção de uma estimativa precisa. Por último, Ryan (2008) salienta que estes inputs de nível 2 podem ser decompostos em duas grandes classes. Por um lado, os preços cotados para ativos ou passivos similares em mercados ativos ou mercados inativos para elementos idênticos e, a este nível, é da opinião de Ronen, afirmando que, geralmente, os inputs serão substancialmente fiáveis, mas essa fiabilidade “dependerá da natureza e da magnitude dos ajustamentos necessários” (p. 1626). Por outro lado, em relação

117 aos inputs considerados na alínea c) e d) do parágrafo 28 da SFAS 157, o autor corrobora com as opiniões de Riedl e Serafeim, declarando que tais medidas só poderão ser fiáveis se os modelos utilizados também o forem.

- Nível 3: “Os inputs de nível 3 são inputs não observáveis para o ativo ou passivo. Dados não observáveis devem ser utilizados para mensurar o justo valor na medida em que inputs observáveis relevantes não estejam disponíveis, permitindo, assim, situações em que há pouca, ou nenhuma, atividade de mercado para o ativo ou passivo na data de mensuração” (FASB, 2006, §30). É adicionalmente referido que, mesmo fazendo uso de medidas não observáveis, “o objetivo de mensuração do justo valor permanece o mesmo, ou seja, um preço de saída na perspetiva de um participante de mercado que detém o ativo ou deve o passivo. Portanto, dados não observáveis devem refletir os próprios pressupostos da entidade de relato sobre os pressupostos que os participantes do mercado usariam na atribuição de preços ao ativo ou passivo (incluindo as suposições sobre risco)”. Como dizem Barker e Schulte (2017, p. 7), “no Nível 3, há uma forma de construção da realidade em que os justos valores são imaginados e relatados de uma forma que não corresponde a uma realidade institucional existente”. Por outras palavras, trata-se de simular o preço que seria aplicado se o mercado ativo existisse.

Neste âmbito, importa também precisar que estes inputs devem ser desenvolvidos com base na melhor informação disponível em cada contexto, podendo incluir os próprios dados elaborados pela entidade de relato (FASB, 2006, §30). No entanto, esta só deve recorrer a informação interna se for demasiado custoso e trabalhoso obter informação externa (Mala & Chand, 2012), devendo, assim, sempre que possível, ter em atenção as informações sobre as suposições dos participantes do mercado, quando tal estiver razoavelmente disponível sem custos e esforços indevidos (FASB, 2006, §30). Deste modo, constata-se que o nível 3 implica uma grande dose de subjetividade e incerteza no domínio da mensuração (Yuan & Liu, 2011), podendo ser igualmente complexa e dispendiosa, em relação aos benefícios, a tarefa de elaboração de estimativas (Palea & Maino, 2013; Ryan, 2008), o que faz com que estes inputs sejam caracterizados por uma elevada assimetria de informação entre preparadores e utilizadores da informação financeira (Palea & Maino, 2013). Por conseguinte, a margem para surgirem erros de estimativa e para haver manipulação de dados é significativa, tal como se pôde constatar no caso da Enron, onde esta discricionariedade foi usada a uma grande escala para gerir a obtenção de lucros (Yuan & Liu, 2011). Como indica Ronen (2012), ao ser um processo demasiado dependente das assunções pessoais da

118 gestão e sujeito a erros aleatórios, bem como ao risco moral, o uso de inputs de nível 3 pode originar distorções consideráveis nas demonstrações financeiras.

Em matéria de divulgação, para que haja uma maior transparência e possibilidade de averiguação da qualidade dos dados associados aos inputs de nível 3 por parte dos utentes da informação financeira, a norma exige que as empresas divulguem informação, isoladamente, para cada categoria principal de ativos e passivos, tanto quantitativa, através da qual os utilizadores possam vislumbrar o modo como as mensurações ao justo valor são divididas com base nos inputs de avaliação, como qualitativa, responsável por especificar as técnicas de avaliação usadas para esse propósito (Yuan & Liu, 2011).

Por fim, note-se que, num contexto geral, a literatura se refere ao nível 1 como uma contabilidade mark-to-market, caracterizada pelo uso de valores de mercado, enquanto que o nível 3 se encontra associado a uma contabilidade mark-to-model, assente na utilização de estimativas obtidas através de modelos (Haswell & Evans, 2018). Segundo os autores, o nível 2 pode ser considerado, juntamente com o nível 1, como uma contabilidade mark-to-market, embora possa assumir distinções mais pomposas. Neste sentido, por exemplo, Jarolim e Öppinger (2012173, mencionados em Haswell & Evans, 2018, p. 40) associam o nível 2 a

uma contabilidade mark-to-model com parâmetros de mercado e o nível 3 a uma contabilidade

mark-to-model sem esses parâmetros.