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3. O desenvolvimento do conceito de Justo Valor

3.5. Rivalidade entre Custo Histórico e Justo Valor

3.5.2. Justo Valor e Custo Histórico e o critério da fiabilidade

Segundo Barth (2006), a fiabilidade pode ser decomposta em três dimensões diferentes. A verificabilidade, que se traduz na eventualidade de diferentes elementos chegarem a um

211 Mencionado em Cheng (2012, p. 532). A referência bibliográfica completa apresentada no seu trabalho

é a seguinte: Beaver, W. and M. Venkatachalam (2003), ‘Differential Pricing of Components of Bank Loan Fair Values’, Journal of Accounting, Auditing & Finance, Vol. 18, No. 1, pp. 41–67.

212 Mencionado em Bastos (2009, p. 48). A referência bibliográfica completa apresentada no seu trabalho

é a seguinte: CFA INSTITUTE CENTRE FOR FINANCIAL MARKET INTEGRITY. (2007). A

Comprehensive Business Reporting Model: Financial Reporting for Investors. Disponível em: http://www.cfapubs.org/doi/pdf/10.2469/ccb.v2007.n6.4818, 11-12-2008.

213 Mencionado em Cheng (2012, p. 532). A referência bibliográfica completa apresentada no seu trabalho

é a seguinte: Schipper, K. (1989), ‘Commentary on Earnings Management’, Accounting Horizons, Vol. 3, pp. 91– 102.

214 Mencionado em Cheng (2012, p. 532). A referência bibliográfica completa apresentada no seu trabalho

é a seguinte: Uhde, A., C. Farruggio and T. C. Michalak (2011), ‘Wealth Effects of Credit Risk Securitization in European Banking’, Journal of Business Finance & Accounting (Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1634565).

215 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Mala e Chand (2012) é a seguinte:

Johnson, L. T., 2005, Relevance and reliability. The FASB’s goal in setting accounting standards. Available at:

152 consenso na avaliação de um determinado ativo ou passivo. A neutralidade, que corresponde à isenção de vieses ou julgamentos parciais na avaliação de um determinado objeto. E, por fim, a representação fidedigna, que significa em que medida o valor obtido na avaliação de um objeto representa, efetivamente, o que pretende representar. Como foi dito na parte introdutória, esta última característica veio substituir o conceito de fiabilidade, vigorando atualmente nas ECs do IASB e FASB como uma das características qualitativas primordiais na prossecução do objetivo de divulgação de informação útil aos vários utilizadores, juntamente com a da relevância. Como aponta Linsmeier (2013), a escolha entre o justo valor e o custo histórico, no que concerne à fiabilidade ou representação fidedigna, residirá, parcialmente, na natureza e na quantidade de julgamentos e estimativas necessárias para efetuar a mensuração de um determinado item, que poderão ocorrer tanto na mensuração inicial como na mensuração subsequente.

Com efeito, apesar da literatura, em termos gerais, reconhecer no justo valor a capacidade de reportar informação mais relevante aos utilizadores que o custo histórico, o contrário verifica-se em matéria de fiabilidade, onde este último aparenta ser superior (Abreu

et al., 2009; Barth, 1994; Bastos, 2009; Bignon et al., 2009; Cullinan & Zheng, 2014; Guthrie et al., 2011; Haswell & Evans, 2018; Jarva, 2009; Khurana & Kim, 2003; Magnan, 2009;

Magnan et al., 2015; Mala & Chand, 2012; Milburn, 2008; Pinto, 2013; Richard, 2004). A literatura considera o custo histórico fiável, pois a informação que retrata normalmente advém de documentos juridicamente relevantes, comprovativos do valor de uma transação, sendo fácil de dá-la a conhecer publicamente, o que leva a que os utentes das demonstrações financeiras sintam uma maior segurança no uso desses valores para a tomada de decisões (Bastos, 2009; Pinto, 2013). Como declara Ferreira (2003216, citado em Bastos,

2009, p. 44), “sempre nos ancorámos na ideia de que é de usar na contabilidade valores controláveis e objetivos, preferindo para o efeito o recurso ao custo histórico”, opinião também partilhada por Pinto (2013), que sugere que a utilização acentuada deste método residia no facto deste ser, ou parecer, a forma mais fiável de satisfazer o requisito da objetividade, essencial na Contabilidade. Assim, na visão do autor, o uso do custo histórico permite garantir esta virtude, ao assegurar quer a independência da informação em relação a

216 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Bastos (2009) é a seguinte:

FERREIRA, R. F. (2003a). Contabilidade e Questões Actuais. XV Encontro Nacional da ADCES - Contabilidade

153 quem a prepara, quer a eventualidade de prova quantificada dessa informação, o que, por conseguinte, acrescenta credibilidade à mesma.

Contudo, Barth (2007) e Barlev e Haddad (2003) não são da mesma opinião. De acordo com Barth (2007), embora o custo histórico permita, genericamente, representar fidedignamente o que pretende representar, pode, em certas circunstâncias, ficar aquém nos requisitos de verificabilidade e neutralidade. Como explica a autora, o custo pode não ser perfeitamente identificável nos casos, por exemplo, de ativos construídos pela própria entidade ou ativos adquiridos num cabaz de compra (juntamente com outros), o que poderá ter implicações no primeiro atributo. No que toca à neutralidade, a autora acrescenta que este princípio pode ser colocado em causa no modelo do custo histórico, pois este apenas permite o reconhecimento de perdas no valor dos ativos, isto é, imparidades, mas não engloba as situações em que ocorram incrementos nesse valor. Além disso, mesmo no requisito da representação fidedigna, este método não é isento de críticas, pois, por exemplo, como vimos, no casos dos instrumentos derivados, a escolha desse critério implica que muitas vezes estes estejam reconhecidos nas demonstrações financeiras por um valor nulo, que, naturalmente, não corresponde ao seu valor económico real. A este respeito, Barlev e Haddad (2003) são mais críticos, aferindo que o custo histórico não só permite o enviesamento das decisões sobre a mensuração de determinados ativos, como, por exemplo, através da alteração das estimativas referentes aos créditos de cobrança duvidosa ou aos métodos de depreciação/amortização e vidas úteis, tornando-o, por esta via, menos neutro, como também possibilita obscurecer a verdadeira posição financeira e os resultados operacionais da entidade de relato, ao não considerar, por exemplo, mudanças nos níveis e estruturas de preços e taxas de juro, o que pode levar, a título de exemplo, a más decisões dos credores, dado vários rácios que utilizam para averiguar a saúde financeira de uma empresa poderem traduzir informação bastante distorcida.

Do lado inverso, os proponentes do justo valor defendem que o seu uso é atrativo, dado ir de encontro a várias características qualitativas da informação presentes nas ECs com o intuito de melhorar a sua utilidade, nomeadamente a fiabilidade (André et al., 2009; Barth, 2006). Como introduz Macedo (2008, citado em Abreu et al., 2009, p. 37), “o justo valor baseia-se no mercado e (…) é o mercado que permite valorar um bem ou direito da forma mais fiável, pelo que em relação ao custo histórico, o justo valor incorpora qualidades que lhe advêm do mercado que aquele não incorpora”.

154 Segundo Barth (2007), do ponto de vista da neutralidade, o justo valor representa uma quantia originada de maneira imparcial e, por esse motivo, cumpre com essa condição.

No que diz respeito à representação fidedigna, Barth (2007) refere que o justo valor pode representar fielmente os fenómenos económicos que pretende representar, uma vez que traduz uma avaliação que reflete não só o risco associado aos ativos e passivos, mas também a probabilidade de ocorrência da entrada ou saída de fluxos de caixa subjacentes na empresa, no futuro. Barlev e Haddad (2003) defendem o mesmo, afirmando que, no caso de ser usado o justo valor, as medidas de risco e de retorno associadas revelam rentabilidades reais. De acordo com os autores, este modelo permite que o balanço e a demonstração de resultados reflitam o valor económico verdadeiro das atividades e dos ativos, passivos e capital próprio da empresa, respetivamente, garantindo uma maior transparência relativamente ao custo histórico. Também as entidades de normalização, designadamente o FASB, via SFAC Nº7, “Fair Value”, publicada em 2000, refere que “para mensurações no reconhecimento inicial ou mensurações fresh-start, o justo valor fornece a mensuração mais completa e que mais fidedignamente representa as características económicas de um ativo ou passivo” (§36).

Contudo, Barth (2007) salienta que mesmo se todos os ativos e passivos estiverem reconhecidos nas demonstrações financeiras ao justo valor, é pouco provável que o valor de mercado do capital próprio coincida com o seu valor contabilístico, isto porque há a possibilidade de certos fenómenos não cumprirem com as condições de reconhecimento de ativo e passivo da EC, como, por exemplo, as avaliações dos investidores e as aptidões da gestão, que, por este motivo, não surgem representados no capital próprio da contabilidade da empresa em causa. Tal também pode derivar do facto do mercado usado como referência para apurar o justo valor não ser o mercado utilizado pela entidade de relato. Porém, genericamente, este argumento, na opinião da autora, não deve invalidar a escolha do justo valor, que continua a ser mais completo, em termos de características qualitativas, que o custo histórico. Neste sentido, apesar de não garantir propriamente uma ligação exata entre valor de mercado e contabilístico do capital próprio, Hitz (2007) refere que, de forma inversa a uma contabilidade baseada no custo histórico, a mensuração ao justo valor permite eliminar reservas ocultas para ativos não reconhecidos, o que contribui para uma maior aproximação entre esses valores.

No entanto, nem sempre existe concordância relativamente ao facto do justo valor constituir uma representação fidedigna da realidade (Guthrie et al., 2011; Magnan, 2009;

155 Milburn, 2008; Richard, 2004). Guthrie et al. (2011) salientam que os críticos contemporâneos do justo valor, nomeadamente executivos de empresas pertencentes à indústria financeira, argumentam que os ganhos e perdas não realizados não deviam constar no relato financeiro, visto não refletirem adequadamente o verdadeiro desempenho operacional da entidade de relato, opinião de certa forma partilhada por Richard (2004), que alerta que potenciais ganhos não se traduzem necessariamente em resultados, o que pode causar dificuldades na sua interpretação por parte dos utilizadores das demonstrações financeiras. Magnan (2009) indica que o paradigma do justo valor pode abalar a relação entre o mercado e o relato financeiro, contribuindo para que haja um desvio ainda maior entre o que é apresentado nas contas da empresa e o que realmente se sucedeu nos negócios da mesma. Por fim, para Milburn (2008), é importante previamente esclarecer o que realmente o justo valor pretende representar. Nas suas palavras, “os fenómenos económicos do mundo real que o justo valor deve representar são os preços que se espera que ocorram em mercados razoavelmente eficientes” (p. 308). Sendo assim, na sua perspetiva, pelo facto do justo valor se basear na assunção de uma transação hipotética, onde é necessário incluir premissas pessoais da própria entidade de relato acerca de como os participantes de mercado avaliariam determinado objeto, e não em informação observável sobre essas hipóteses, este critério não pode ser assumido como uma representação fidedigna dos verdadeiros preços de mercado. Adicionalmente, o autor esclarece que o justo valor é isento de verificabilidade, por ser difícil haver consenso entre avaliadores distintos, assim como de neutralidade, dado as assunções da entidade de relato baseadas em algo inobservável estarem, por natureza, associadas a certos vieses e julgamentos pessoais.

Neste sentido, Zijl e Whittington (2006) afirmam que se o justo valor for apurado a partir de um preço inscrito num mercado ativo, bem informado e competitivo (o nível 1 da hierarquia do justo valor), a mensuração inerente será objetiva e, portanto, verificável e neutra, ideia consentida também por Kothari, Ramanna e Skinner, 2010, que apontam que, sendo objetivamente determinado, como se sucede na aplicação do nível 1, o justo valor será claramente superior ao custo histórico no fornecimento de informação sobre o potencial valor económico dos ativos, desde que estes possam ser identificados separadamente, indo de encontro ao objetivo de alocação eficiente de capital dos GAAP.

Assim, o principal problema coloca-se nas circunstâncias em que tal mercado ativo não existe, algo que é frequente para muitos ativos e passivos, sobretudo nos não financeiros, o que leva a que seja necessário recorrer a determinadas técnicas e modelos para efetuar a

156 avaliação desses elementos, através de projeções e estimativas (níveis 2 e 3), processo esse que pode ser significativamente subjetivo, incerto e complexo, pois é caracterizado por atribuir aos avaliadores um elevado poder discricionário, o que conduz a uma forte assimetria de informação, que pode desencadear comportamentos oportunistas por parte dos gestores, no sentido de manipular essas estimativas para fins pessoais (André et al., 2009; Ball, 2006; Barth, 2007; Barth & Landsman, 2010; Bastos, 2009; Blankespoor et al., 2013; Gouveia, 2009; Guthrie et al., 2011; Ijiri, 2005217; Kothari et al., 2010; Landsman, 2007; Mala

& Chand, 2012; Pinto, 2013; Singleton-Green, 2007218; Watts, 2003219). Como afirma

Gouveia (2009, p. 30), o “problema põe-se de forma gritante nos casos em que o mercado não tem liquidez, é pouco transparente e ineficiente (…) Nestes casos, o critério mark-to- market é um autêntico desafio à ética e à capacidade técnica, dado que as respectivas avaliações são efectuadas através de projecções e estimativas sempre incertas”.

Para Landsman (2007), a assimetria de informação origina duas consequências importantes, a seleção adversa e o risco moral. Em relação ao primeiro, o autor refere que, sendo utilizado o justo valor, na ausência de informação verificável e credível, o mercado poderá avaliar ativos distintos de uma forma mais ou menos similar. Quanto ao risco moral, o autor descreve que, numa contabilidade a justo valor, os gestores poderão tirar partido de informação que só eles têm para manipular a informação divulgada para propósitos meramente pessoais. Wayne Landsman menciona o caso das reavaliações de ativos (para cima), com o intuito de incrementar os resultados da empresa e, por esta via, aumentar os bónus financeiros auferidos pelos gestores, como também as situações em que os gestores têm incentivo em registar imparidades ou reverter reavaliações positivas em momentos em que a empresa não teve uma boa prestação, ou seja, em períodos em que o gestor já não iria receber nenhuma compensação de qualquer maneira, tendo em vista a apresentação de resultados mais floridos no futuro, operação denominada de “big bath”.

Segundo Mala e Chand (2012, pp. 31-32), “esses modelos de justo valor, como definidos anteriormente, incorporam numerosas suposições, e mudanças triviais podem levar a

217 Mencionado em Mala e Chand (2012, p. 22). A referência bibliográfica completa apresentada no seu

trabalho é a seguinte: Ijiri, Y., 2005, US accounting standards and their environment: a dualistic study of their 75-years of transition. Journal of Accounting and Public Policy 24, 255–279.

218 Mencionado em So e Smith (2009, p. 105). A referência bibliográfica completa apresentada no seu

trabalho é a seguinte: Singleton-Green, B. (2007). ‘Fair Value Accounting’. Practice Society Alert, (January): Institute of Chartered Accountants in English and Wales (ICAEW).

219 Mencionado em Magnan (2009, p. 196). A referência bibliográfica completa apresentada no seu

trabalho é a seguinte: Watts, R. 2003. Conservatism in accounting part I: Explanations and implications.

157 alterações substanciais no resultado”, visão também seguida por Bignon et al. (2009). Mala e Chand (2012, p. 32) continuam o seu raciocínio, comentando que “tal introduz ‘ruído de modelo’, devido a modelos de precificação imperfeitos e estimativas imperfeitas dos parâmetros do modelo. Por exemplo, estimativas de fluxos de caixa futuros fornecem espaço para julgamentos subjetivos ou manipulação dos valores”. Assim, para os autores, assim como para Kothari et al. (2010), o justo valor pode ficar aquém no requisito da fiabilidade devido a erros intrínsecos quer aos instrumentos de mensuração usados (os modelos de avaliação), no sentido de estes não serem adequados para analisar o ativo/passivo em causa, quer aos inputs utilizados nesses modelos, problema esse frequentemente apontado pelos críticos a esta base de mensuração e que surge como principal entrave à sua viabilidade na Contabilidade, pois está associado, normalmente, à manipulação de estimativas e projeções. De notar que estes últimos erros podem ser tanto intencionais, e aí existe manipulação direta dos dados, como naturais, pois uma estimativa é, por si só, incerta, o que acarreta uma maior margem para erros humanos (Barth, 2006; Yuan & Liu, 2011).

Resumindo um pouco o tema da manipulação, como vimos, é nos níveis hierárquicos 2 e 3 do justo valor que reside o principal problema, onde a discricionariedade da gestão é consideravelmente facilitada (Benston, 2008; Ronen, 2008; Ronen, 2012; Watts, 2003). Como já recomendava Jacques Savary, em 1675220 (citado em Richard, 2004, p. 95), “estime

o valor dos bens e, ao fazê-lo, tome cuidado para não os valorizar a mais do que o que realmente valem, pois isso seria tornar-se a si próprio rico na imaginação”.

A este respeito, Yuan e Liu (2011) comentam que as falências relativamente recentes mostraram como a apropriação de lucros potenciais e de ocultação de perdas através do modelo do justo valor permitiram a transferência de valor dos stakeholders para os gestores, contribuindo para a fomentação de que este critério é subjetivo e torna possível a manipulação. Pinto (2013) é mais crítico em relação a este assunto, definindo o justo valor como o “valor que justamente serve para enganar o próximo” (p. 15), acreditando que, sendo a sua objetividade uma utopia, este critério implicará sempre “um risco pela facilitação que dele decorre da manipulação da informação contabilística em função dos interesses particulares e porventura inconfessáveis de certos destinatários” (p. 15). Gouveia (2009, p. 29) acaba por sumariar bem os aspetos pertinentes associados à manipulação, declarando

220 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Richard (2004) é a seguinte: Savary, J.

(1675) Le parfait négociant ou instruction générale pour ce qui regarde le commerce… chez Louis Billaire.. avec le privilège duo

158 que “a aplicação do justo valor, em detrimento do custo histórico, deu azo a inúmeras “falcatruas” como, por exemplo, espelhar nas demonstrações financeiras das empresas mais- valias potenciais de instrumentos financeiros, antecipação de lucros futuros e, através disso, obter resultados ainda não realizados, distribuir dividendos aos accionistas, salários e bónus chorudos aos administradores e pagar impostos sobre lucros perfeitamente artificiais, com os consequentes problemas de tesouraria”.

Um exemplo que espelha bem esta questão é o caso da Enron221, uma empresa de

energia dos EUA, que decretou falência no início dos anos 2000, por várias razões, sendo uma das mais plausíveis e emergentes na literatura a utilização do nível 3 do justo valor para avaliar os seus ativos (Benston, 2006; Magnan, 2009; Palea, 2015). Muito resumidamente, como explica Magnan (2009), a Enron ilustra bem as adversidades associadas ao uso da contabilidade mark-to-market ou mark-to-model, pois os gestores dessa empresa conseguiram selecionar estrategicamente os preços de entrada e de saída na avaliação dos contratos de energia e usar modelos de estimação em casos em que as transações subjacentes aos ativos eram reais. Além disso, o autor acrescenta que, na altura, a Enron era um market-maker222

importante e, por vezes, único, em certos mercados, o que instigava ainda mais comportamentos oportunistas e fraudulentos.

Do lado inverso, os proponentes do custo histórico defendem que a manipulação é menos evidente nos casos em que este seja usado, pois evita os processos imprudentes de estimação usados no justo valor, indo por caminhos mais seguros, designadamente a determinação de uma ligação entre o balanço e as operações e transações que a empresa estabelece e concretiza ao longo do tempo, tudo em prol da independência das fontes de informação e regulação financeiras a serem utilizadas pelos vários stakeholders com interesse na análise do desempenho e da posição financeira da entidade de relato (Bignon et al., 2009).

Contudo, como aponta Barth (2007), apesar do tema da manipulação ser uma questão realmente importante no debate da fiabilidade do justo valor, este não é um aspeto exclusivo deste modelo. Existe evidência de que os gestores encontram formas de manipular os

221 Para aprofundar o conhecimento sobre a forma como o uso do justo valor determinou a falência da

Enron, aconselha-se vivamente a leitura do trabalho de Benston (2006).

222Market-maker corresponde a uma empresa que está pronta para comprar e vender uma determinada

159 resultados seja qual for o regime de mensuração utilizado (Healy & Wahlen, 1999223,

mencionados em Barth, 2007, p. 11, em nota de rodapé).

Assim, mesmo para o custo histórico, existe a possibilidade de haver manipulação da informação financeira. Os opositores desta base de mensuração indicam que, excetuando os casos de desgaste ou obsolescência, é o gestor que avalia a perda potencial de um ativo. Assim, defendem que as empresas podem ajustar intencionalmente o valor dos seus ativos através de reestruturações ou alterações nos métodos de depreciação (Bignon et al., 2009). Além disso, argumentam que a subjetividade inerente às avaliações convidam ao mascaramento dos resultados contabilísticos, abrindo portas para uma margem de manobra considerável na sua construção. Na opinião de Barlev e Haddad (2003), os gestores têm um poder discricionário elevado quando as demonstrações financeiras são preparadas segundo o critério do custo histórico, ao permitir que estes gerenciem o resultado e aprimorem a posição financeira da empresa à sua maneira. Nas suas palavras, “a “voz do gestor” é claramente ouvida e altamente refletida” (Barlev & Haddad, 2003, p. 384). Consequentemente, para estes, tal conduz a um grave problema de assimetria de informação, mais evidente ainda no caso dos funcionários da empresa, que não têm o direito legal de