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3. O desenvolvimento do conceito de Justo Valor

3.3. Níveis hierárquicos do Justo Valor

3.4.1. Casos onde o Justo Valor é aplicado

Globalmente, o justo valor encontra-se inserido em diversas normas, podendo ser a sua utilização de caráter obrigatório ou opcional (Cairns, 2006). Como salienta o autor, este pode ser essencialmente aplicado nas demonstrações financeiras em quatro momentos diferentes da fase de mensuração, designadamente:

– Na mensuração de transações e, consequentemente, dos ativos, passivos e capitais próprios resultantes, no reconhecimento inicial;

– Na atribuição dos montantes iniciais de uma transação, nos casos em que esta seja reconhecida pelos elementos que a compõem;

– Na mensuração subsequente de ativos e de passivos; e, por fim, – Na determinação da quantia recuperável de ativos.

Antes de começar com as aplicações propriamente ditas do justo valor, é importante fazer uma precisão sobre o que é a contabilidade baseada neste critério. Segundo Barth e Taylor (2010), a expressão “contabilidade a justo valor” deve ser usada quando este método é aplicado tanto na mensuração inicial, como na mensuração subsequente de ativos e passivos, acrescentando-se ainda a necessidade das mudanças no justo valor serem refletidas na demonstração de resultados. Dito de outro modo, este termo deve ser utilizado quando, em cada data de apresentação de contas por parte das empresas, os ativos ou passivos em causa são reavaliados ao justo valor dessa data. Assim, como esclarecem os autores, se esta base de mensuração for apenas aplicada na mensuração inicial, tal não representa verdadeiramente uma contabilidade a justo valor, uma vez que quando se procede ao

192 Vale apena realçar, a este respeito, que a análise dos casos de aplicação do justo valor, apresentada de

seguida, foi feita à da data de elaboração do artigo de Cairns (2006), pelo que esta pode não ser exaustiva, bem como estar condicionada por alterações que foram feitas subsequentemente a essa data.

126 reconhecimento inicial de um elemento e, posteriormente, à sua mensuração, este tem implícita uma transação na qual o seu justo valor coincide com o seu custo, isto é, o preço da transação. Efetivamente, pode muito bem ser usado o justo valor na mensuração inicial, mas, posteriormente, alterar-se para uma mensuração com base no custo histórico, podendo acontecer, naturalmente, a situação inversa, como se verá mais para a frente, por exemplo, no caso de alguns ativos intangíveis (de Iudícibus & Martins, 2007; Barth & Taylor, 2010). É, portanto, necessário que o justo valor seja utilizado em ambas as fases de mensuração, inicial e subsequente, para que seja possível afirmar que se está perante uma contabilidade a justo valor.

Iniciando com o primeiro caso, apresentam-se de seguida normas onde o justo valor é previsto como critério a ser usado na mensuração inicial das transações.

Tabela 2: Uso do justo valor na mensuração inicial de transações.

IAS 16

Custo de um item de um ativo fixo tangível adquirido em troca de um ativo ou ativos não monetários, ou uma combinação de ativos monetários e não monetários (desde que a transação tenha substância comercial) (IAS 16, §24)

IAS 17

Mensuração de ativos e passivos decorrentes de uma locação financeira nas demonstrações financeiras do locatário (a menos que o justo valor seja superior ao valor presente e aos pagamentos mínimos da locação) (IAS 17, §20)

IAS 18

Mensuração do montante recebido ou a receber pelo rédito (a menos que os bens ou serviços sejam trocados por bens ou serviços de natureza e valor similar) (IAS 18, §9)

IAS 20

Mensuração da transferência de ativos não monetários do governo para a entidade (opção) (IAS 20, §23)

IAS 38

Mensuração de um ativo intangível adquirido em troca de um ativo ou ativos não monetários ou uma combinação de ativos monetários e não monetários (desde que a transação tenha substância comercial) (IAS 38, §45)

IAS 39 Mensuração de um ativo ou passivo financeiro (IAS 38, §43)

IAS 41

Mensuração de um ativo biológico e de produtos agrícolas colhidos a partir de ativos biológicos da entidade (IAS 41, §12 e §13)

127 Resumindo a tabela exposta acima, conclui-se que, em todas estas circunstâncias, o justo valor é essencialmente utilizado para que transações que não tenham por base dinheiro possam ser refletidas nas demonstrações financeiras (Cairns, 2006). De facto, o registo destas transações nas contas das empresas pode ser relevante para a tomada de decisão dos utentes da informação financeira, no sentido em que a omissão do seu montante pode alterar o rumo das suas decisões económicas. No caso, o IASB acreditou que o critério mais adequado para refletir esse montante deveria ser o justo valor da contrapartida dada ou recebida. Como explica Cairns (2006, p. 11), o raciocínio por detrás da escolha deste critério prende-se com a exigência de que “essas transações sejam mensuradas ao mesmo valor ao qual teriam sido mensuradas se a contrapartida assumisse a forma de caixa ou equivalentes de caixa em vez de outro ativo ou passivo ou instrumento de capital próprio” e, nesse caso, o justo valor assenta em preços de entrada.

Outra nota importante relaciona-se com a possibilidade de, tal como já referido, após se ter escolhido o critério do justo valor para a mensuração inicial das transações, ser utilizada outra base alternativa na sua mensuração subsequente. No caso da mensuração inicial, o justo valor é fundamentalmente usado como o custo ou custo atribuído (deemed cost) (Cairns, 2006). Como denota o autor, o seu uso nesta fase inicial é especialmente relevante para transações dotadas de alguma complexidade, como, por exemplo, a troca de instrumentos financeiros por refinanciamento ou reestruturação de dívida ou uma transação de venda e leaseback, sendo as quantias daí resultantes, novamente, usadas como custo.

193Adaptado de Bastos, 2009, p. 76.

IFRS 2

Mensuração de bens e serviços recebidos e instrumentos de capital concedidos em transações cujo pagamento seja baseado na entrega de uma quantidade fixa de ações da sociedade (IFRS 2, §10), assim como na mensuração do passivo incorrido pelos bens e serviços recebidos numa transação cujo pagamento seja baseado em ações que perfaçam um valor fixo em dinheiro (IFRS 2, §30)

IFRS 3

Mensuração dos ativos dados, dos passivos incorridos ou assumidos e do instrumento de capital emitido pelo adquirente (IFRS 3, §24)

IFRS 5

Mensuração inicial dos ativos não correntes (ou grupos para alienação) classificados como detidos para venda, que devem ser escriturados pelo menor valor entre a quantia escriturada e o justo valor deduzido dos custos associados à venda (IFRS 5, § 15).193

128 O segundo caso da aplicação do justo valor está ligado a situações em que uma entidade necessita alocar o custo integral de uma transação pelos diferentes elementos que a constituem (Cairns, 2006). Tal implica tratar uma parte como residual, isto é, pela diferença entre o custo total e as quantias alocadas pelos diversos constituintes da transação. O exemplo mais notório desta aplicação é o das concentrações empresariais. Neste caso, a entidade de relato, após a aquisição de uma determinada empresa, é obrigada não só a mensurar a transação pelo justo valor da contrapartida efetuada, mas também a reconhecer os ativos e passivos respetivos ao justo valor na data de aquisição, sendo, contudo, livre de escolher outro critério na mensuração subsequente. O objetivo de tal instituição é o de que os elementos envolvidos na transação sejam mensurados, o mais próximo possível, aos mesmos montantes que seriam atribuídos caso fossem adquiridos de forma separada. Mais uma vez, o justo valor nestes casos é adotado numa ótica de custo.

Tabela 3: Uso do justo valor na atribuição dos montantes iniciais de uma transação, nos casos em que esta seja reconhecida pelos elementos que a compõem.

No que diz respeito à terceira aplicação do justo valor, como aponta Cairns (2006), o IASC/IASB fomentou continuamente o uso do justo valor na mensuração inicial de transações, mas o processo de exigência ou permissão deste critério na mensuração subsequente foi sobejamente mais moroso.

Neste âmbito, o IASC introduziu explicitamente este conceito pela primeira vez na mensuração subsequente em 1986, na IAS 25, “Accounting for Investments”. Por exemplo, no caso dos ativos e passivos financeiros, a proposta da mensuração subsequente dos mesmos pelo justo valor ocorreu em 1992, com a emissão do exposure draft 40, “Financial Instruments”. Numa fase mais recente, no que concerne a ativos não financeiros, o justo valor foi aplicado, a título de exemplo, em 2000, no setor agrícola, com a IAS 41, “Agriculture”.

Atente-se de seguida para casos em que o justo valor é aplicado na mensuração subsequente:

IAS 32

Mensuração da componente do passivo de um instrumento financeiro composto (a componente do capital próprio é o residual) (IAS 32, §31)

IFRS 3

Mensuração dos ativos, passivos e passivos contingentes identificáveis da adquirida na data da aquisição numa concentração de atividades empresariais (o goodwill é o residual) (IFRS 3, §36) Fonte: Adaptado de Cairns, 2006, p.14.

129 Tabela 4: Uso do justo valor na mensuração subsequente.

Como se pode constatar, o uso obrigatório do critério do justo valor na mensuração subsequente ainda é bastante limitado, estando circunscrito, por exemplo, aos casos dos derivados, outros ativos e passivos financeiros detidos para negociação, ativos financeiros disponíveis para venda e produtos agrícolas no ponto de colheita (Cairns, 2006). Assim, na maior parte dos casos, o seu uso é apenas opcional ou sujeito à observação de determinados requisitos. De entre todas as IAS, a utilização do justo valor é vivamente encorajada pelas entidades de relato, de maneira uniforme, nas IAS 40 e 41, nas propriedades de investimento e ativos biológicos, respetivamente. Para outras categorias de ativos e passivos, a base de mensuração preferencial continua a ser o custo histórico.

Por fim, a última aplicação do justo valor sucede-se na elaboração de testes de imparidade. Tal conceito tem subjacente um princípio que já existe há muito tempo na Contabilidade, o de que os ativos não devem ser escriturados por um valor superior àquele IAS 16 Mensuração de um item de um ativo fixo tangível (opção) (IAS 16, §31)

IAS 19

Mensuração dos ativos afetos a planos de benefícios pós-emprego nas demonstrações financeiras da entidade empregadora (IAS 19, §54, d))

IAS 26

Mensuração dos investimentos do plano de benefícios de reforma nas demonstrações financeiras das sociedades gestoras de fundos de pensões (IAS 26, §32)

IAS 27

Mensuração de investimentos em subsidiárias, entidades conjuntamente controladas e associadas em demonstrações financeiras separadas (opção) (IAS 27, §37; IAS 28, §35 e IAS 31, §46)

IAS 38

Mensuração de ativos intangíveis (desde que inicialmente reconhecidos pelo custo e o justo valor seja determinado por referência a um mercado ativo) (opção) (IAS 38, §75)

IAS 39

Mensuração de ativos e passivos financeiros detidos para negociação, incluindo todos os instrumentos derivados (IAS 39, §9 e §46), assim como na mensuração de outros ativos e passivos financeiros (sujeito a condições) (opção) (IAS 39, §9 e §46)

IAS 40

Mensuração das propriedade de investimento (opção, embora altamente recomendável) (IAS 40, §33)

IAS 41

Mensuração de ativos biológicos (opção) (IAS 41, §12), bem como de produtos agrícolas colhidos dos ativos biológicos da entidade (IAS 41, §13)

130 que se espera vir a recuperar mediante o seu uso ou venda, a que nas normas atuais é designado por quantia recuperável, e que é usado em todas as IFRS que lidem com ativos (Cairns, 2006).

Neste contexto, o IASB chegou mesmo a desenvolver uma norma, a IAS 36, “Impairment

of Assets”, emitida em 1998, objeto de revisão ao longo dos anos, a debruçar-se sobre o

tratamento contabilístico das imparidades de ativos (ativos fixos tangíveis, ativos intangíveis e goodwill), pese embora tal também seja feito em outras normas, atendendo a características específicas de ativos nelas envolvidos (por exemplo, os instrumentos financeiros na IAS 39). O justo valor possui um papel decisivo na aplicação deste princípio nos ativos supracitados, uma vez que a entidade de relato “pode recuperar esses ativos através da sua venda, em particular, trocando-os com outra parte conhecedora e disposta a isso numa transação em que não exista relacionamento entre elas” (Cairns, 2006, p. 18). Deste modo, o justo valor, deduzido dos custos associados à venda, é um forte candidato a representar a tal quantia recuperável do ativo em causa, sendo que, nessas circunstâncias, deve constituir um preço de saída.

Assim, encontram-se sintetizadas na tabela seguinte aplicações do justo valor aquando da realização de testes de imparidade. É de salientar que, em vários casos, a quantia recuperável nem sempre se refere a um justo valor genuíno, definido tal como ele é.

Tabela 5: Uso do justo valor na determinação de imparidades de ativos.

Quantia recuperável

IFRS que lida com as imparidades

Ativos não correntes

Ativos fixos tangíveis

Valor mais elevado entre o valor em uso e o justo valor menos os custos de

venda

IAS 36

Propriedades de investimento (modelo

do justo valor) Justo Valor IAS 40

Propriedades de investimento (modelo do custo)

Valor mais elevado entre o valor em uso e o justo valor menos os custos de

venda

131 Ativos biológicos (modelo do justo

valor)

Justo valor menos os custos estimados

no ponto de venda IAS 41

Ativos biológicos (modelo do custo)

Valor mais elevado entre o valor em uso e o justo valor menos os custos de

venda

IAS 36

Goodwill

Valor mais elevado entre o valor em uso e o justo valor menos os custos de

venda

IAS 36

Outros ativos intangíveis

Valor mais elevado entre o valor em uso e o justo valor menos os custos de

venda

IAS 36

Associadas

Valor mais elevado entre o valor em uso e o justo valor menos os custos de

venda

IAS 36

Entidades conjuntamente controladas (método do capital próprio)

Valor mais elevado entre o valor em uso e o justo valor menos os custos de

venda

IAS 36

Ativos financeiros disponíveis para

venda Justo valor IAS 39

Empréstimos concedidos e contas a receber

Valor presente dos fluxos de caixa futuros descontados à taxa de juro

efetiva original

IAS 39

Ativos correntes

Inventários

Valor mais elevado entre o valor em uso e o justo valor menos os custos de

venda

IAS 2

Ativos derivados de contratos de construção

Excesso do rédito do contrato sobre os

custos do contrato IAS 11

Produtos agrícolas colhidos dos ativos biológicos

Justo valor menos os custos estimados

132 Concluindo, com base na análise de todos estes casos onde o justo valor é aplicado, é possível observar que o normativo do IASB está muito longe de exigir que todos os ativos e passivos sejam mensurados por esta base de mensuração e, mesmo no caso dos ativos e passivos financeiros, tais exigências ainda são pontuais (Cairns, 2006; Martín & Osma, 2009). Como declara o autor, a “realidade é que o uso do justo valor nas IFRS para a mensuração subsequente de ativos e passivos é muito limitado - tanto na teoria quanto na prática” (p. 19). Contudo, vislumbra-se que este conceito tem sido cada vez mais adotado nas normas internacionais, sobretudo para contabilizar as transações no momento inicial e avaliar as suas partes constituintes, resultante parcialmente da crescente complexidade das transações comerciais, assim como do desejo do IASB (paralelamente aos interesses das entidades de relato e dos seus auditores) em garantir que o seu normativo aborde uma parcela elevada dessas transações.