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2. Estrutura concetual

2.3. Mensuração contabilística

2.3.6. Características qualitativas da informação financeira

2.3.6.3. Relação entre relevância e fiabilidade

Neste tópico, será dada ênfase à ligação existente entre as características qualitativa de relevância e de fiabilidade. Como já tinha sido dito atrás, “nem uma representação fidedigna de um fenómeno irrelevante, nem uma representação não fidedigna de um fenómeno relevante, ajuda os utilizadores a tomar boas decisões” (FASB, 2010, §QC17; IASB, 2010, §QC17). Assim, pode-se deduzir que ambas as características qualitativas são fulcrais para que a informação financeira se afigure útil. Mas como aponta McEnally (2007a), por vezes, informação que é de extrema relevância para os utilizadores, em concreto, os investidores, na sua tomada de decisão, é simplesmente ocultada das demonstrações financeiras por não

40 se poder mensurar os itens correspondentes de forma tão precisa quanto se gostaria. A autora também acrescenta que alguns acontecimentos que se espera que aconteçam na empresa no futuro podem ter uma panóplia de resultados diferentes e, em alguns casos, estes podem mesmo afetar a sua viabilidade num horizonte temporal mais alargado. Deste modo, seria fundamental comunicar este tipo de informação aos investidores, nem que fosse em notas anexas às demonstrações financeiras, mesmo sendo menos fiável.

Além disso, nas ECs do IASB (2010, §QC18) e do FASB (2010, §QC18), é indicada uma sequência na qual os preparadores da informação devem aplicar as características qualitativas da informação financeira, aquando da tomada de uma decisão particular. Em primeiro lugar, após se ter identificado o fenómeno económico a ser representado e cuja presença nas demonstrações financeiras seja útil aos utilizadores, estes devem procurar informação que seja o mais relevante possível para essa decisão e, posteriormente, analisar se a forma como essa informação é medida é fiável. Caso esteja aquém no que concerne a este atributo, ou, no limite, a informação não se encontre disponível (não é passível de ser quantificada, por exemplo), então o preparador deve selecionar a próxima informação mais relevante e, novamente, avaliar a sua fiabilidade. Por conseguinte, se ainda não tiver sido obtido um equilíbrio razoável entre as duas características, o processo deve continuar a ser repetido até que tal aconteça.

Embora alguns autores declarem que as ECs indiciam a independência da relevância face à fiabilidade (como, no caso do FASB, Maines & Wahlen, 200641; Li, Shevlin & Shores,

201042, ambos mencionados em Kadous et al., 2012, p. 1338), não existem declarações

explícitas por parte das entidades normalizadoras de que estas efetivamente o sejam, isto é, de que um certo nível numa não implique um certo nível noutra. Contudo, olhando para as várias perspetivas adotadas fora do contexto da Contabilidade, tudo leva a crer que estas devam ser vistas de forma independente. No marketing, por exemplo, a informação é útil em função da forma como esta pode ser usada para revelar o estado de um dado fenómeno, discriminando os eventuais problemas subjacentes (isto é, relevância) e, de maneira isolada,

41 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Maines, L. A., and J. M. Wahlen. 2006. The nature of accounting information reliability: Inferences from archival and experimental research. Accounting Horizons 20 (4): 399–425.

42 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte: Li, V.,

T. Shevlin, and D. Shores. 2010. Revisiting Earnings and Accrual Quality. Working paper, University of Washington.

41 da sua fiabilidade (Dick, Chakravarti & Biehal, 199043, mencionado em Kadous et al., 2012,

p. 1338). No contexto legal, a informação é útil se for passível de estabelecer ou reforçar um ponto apresentado por uma parte no processo jurídico (isto é, se for relevante) e se tiver valor probatório (isto é, se for fiável) (Mueller & Kirkpatrick, 199544, mencionado em

Kadous et al., 2012, p. 1338). Num âmbito de uma pesquisa científica, uma hipótese ou conceito em construção é útil se tiver um contributo relevante para uma entidade e o seu efeito possa ser mensurado com fiabilidade (Herzog, 199645, mencionado em Kadous et al.,

2012, p. 1338).

A este respeito, Kadous et al. (2012, pp. 1338-1339) dão um exemplo ilustrativo da independência entre a relevância e a fiabilidade da informação. Passando a citar:

“Considere um indivíduo que está a passar o dia em Chicago. Para aquele indivíduo, a temperatura do ar em Honolulu não é altamente relevante para a sua decisão sobre se deve usar um sobretudo quando vai para fora. No entanto, a temperatura em Honolulu pode ser medida por um processo ou instrumento pouco fiável, ou por um muito fiável. A temperatura do ar em Chicago, por outro lado, é altamente relevante para o indivíduo decidir se deve usar um sobretudo. Da mesma forma, a temperatura em Chicago pode ser medida por um processo ou instrumento pouco fiável, ou por um muito fiável. De facto, a construção da "temperatura do ar de Chicago" é relevante para a pessoa em Chicago; a fiabilidade da medição atual da temperatura de Chicago é um fator separado e independente que o tomador de decisão deve considerar”.

43 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte: Dick,

A., D. Chakravarti, and G. Biehal. 1990. Memory-based inferences during consumer choice. Journal of Consumer

Research (17): 82–93.

44 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Mueller, C., and L. Kirkpatrick. 1995. Federal Rules of Evidence. Boston, MA: Little, Brown and Company.

45 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

42 Tabela 1: Relevância e Fiabilidade como dois conceitos independentes.

Todavia, vários estudos relatam que os utilizadores estabelecem um elo de ligação entre a relevância e a fiabilidade. Por exemplo, Schipper (200346) e Dye e Sridhar47 (2004), ambos

mencionados em Kadous et al. (2012, p. 1336), verificam no seu estudo que os utentes da informação financeira vêem estes dois atributos como inversamente relacionados. Já

46 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Schipper, K. 2003. Principles-based accounting standards. Accounting Horizons 17 (1): 61–72.

47 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte: Dye,

R. A., and S. S. Sridhar. 2004. Reliability-relevance trade-offs and the efficiency of aggregation. Journal of

Accounting Research 42 (1): 51–88.

Painel A: Relevância e Fiabilidade para a decisão sobre “Qual valor atribuir a um Ativo?”

Menor Fiabilidade Maior Fiabilidade

Menor Relevância Estimativa proveniente de um modelo sem comparações possíveis; Valor independente do ativo em uso.

Valor de venda passível de ser comparado; Valor independente do ativo em uso. Maior Relevância Estimativa proveniente de um modelo sem comparações possíveis; Valor independente do ativo detido para venda.

Valor de venda passível de ser comparado; Valor independente do ativo detido para venda. Painel B: Relevância e Fiabilidade para a decisão sobre “Usar ou não usar um

sobretudo em Chicago?”

Menor Fiabilidade Maior Fiabilidade

Menor Relevância Termómetro partido; Temperatura de hoje de Honolulu. Termómetro preciso; Temperatura de hoje de Honolulu. Maior Relevância Termómetro partido; Temperatura de hoje de Chicago. Termómetro preciso; Temperatura de hoje de Chicago. Fonte: Adaptado de Kadous et al., 2012, p.1339.

43 McCaslin e Stanga (198348) e Duncan e Moores (198849), também mencionados em Kadous

et al. (2012, p. 1336), afirmam o contrário, isto é, de que os utilizadores assumem uma relação

positiva entre estas duas variáveis.

Debruçando mais atenção sobre o estudo feito por Kadous et al. (2012), este demonstra que os utilizadores da informação financeira confundem estas duas características, no contexto especial do uso do justo valor, não as visualizando como dois atributos independentes. Em concreto, o estudo indica que variações nas propriedades inerentes à fiabilidade da mensuração condicionam a avaliação que os utilizadores da informação fazem sobre a relevância do justo valor. De forma específica, a escolha das fontes de mensuração e dos métodos de derivação (transações de mercado ou modelos) tem um impacto significativo nos juízos dos utilizadores sobre a relevância. Porém, é de salientar que este efeito é unidirecional, ou seja, fatores ligados à fiabilidade interferem com as opiniões sobre a relevância da informação, mas fatores subjacente à relevância não têm qualquer tipo de repercussão nos julgamentos acerca da sua fiabilidade. Esta conclusão é relevante para aquilo que foi dito ainda dentro deste tópico, isto é, que, por vezes, dado haver uma mistura, na mente dos utilizadores, entre fiabilidade e relevância, informação relevante pode acabar por não ser relevante por não ser fiável, não surgindo nas demonstrações financeiras.

Procurando descortinar melhor esta incompreensão, Kadous et al. (2012) mostram evidência de que a fiabilidade é um conceito que é bem entendido pelos indivíduos. Além do estudo feito por estes autores, outros estudos ligados à Contabilidade, bem como à Psicologia, também apresentam evidência de que os indivíduos compreendem as componentes que constroem o atributo de fiabilidade, como a objetividade da fonte de mensuração e da sua propensão para erros, e que esta é importante para tornar a informação útil para o contexto de tomada de decisão (ver, por exemplo, Hirst, 199450; Hirst, Koonce

48 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

McCaslin, T. E., and K. G. Stanga. 1983. Related qualities of useful accounting information. Accounting and

Business Research 14: 35–41.

49 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Duncan, K., and K. Moores. 1988. Usefulness of CCA information for investor decision making: A laboratory experiment. Accounting and Business Research 18 (70): 121–132.

50A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte: Hirst,

44 & Miller, 199951; Jennings, 198752; Kadous, Mercer & Thayer, 200953; Mercer, 200454;

Williams, 199655, todos mencionados em Kadous et al., 2012, p. 1340).

De forma inversa, a relevância depende muito do contexto específico da decisão e, como tal, requer uma análise mais cuidadosa e, por conseguinte, trabalhosa, de cada caso (Kadous et al., 2012). Nas palavras dos autores, “como cada situação é única, é menos provável que os utilizadores tenham um esquema pronto para avaliar a relevância. Ou seja, em vez de depender de relacionamentos bem estabelecidos (por exemplo, fontes mais competentes tendem a produzir medições mais fiáveis), os utilizadores precisam avaliar cuidadosamente a sua tarefa de decisão e contexto de decisão para avaliar a relevância” (p. 1340). Como também é salientado pelos autores, é raro conseguir avaliar tão facilmente a relevância como no caso ilustrado acima, isto é, a relevância da temperatura do ar em Chicago para a decisão de usar ou não um sobretudo. Deste modo, com base também nos estudos feitos por Koonce, Nelson e Shakespeare (201156), no contexto do justo valor, e de

Joyce, Libby e Sunder (198257) e Jurney (200858), sobre o relato financeiro, em geral, todos

eles mencionados em Kadous et al. (2012, p. 1340) é possível afirmar que a relevância é um atributo menos acessível de entender que a fiabilidade.

Assim sendo, dado ser difícil para os utilizadores da informação avaliar a relevância do justo valor de um ativo ou passivo, ocorrerá uma substituição de atributos (Kahneman &

51 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte: Hirst,

E., L. Koonce, and J. Miller. 1999. The joint effect of management’s prior forecast accuracy and the form of its financial forecasts of investor judgment. Journal of Accounting Research 37 (Supplement): 101–124.

52 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Jennings, R. 1987. Unsystematic security price movements, management earnings forecasts, and revisions in consensus analyst earnings forecasts. Journal of Accounting Research 25 (1): 90–110.

53 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Kadous, K., M. Mercer, and J. Thayer. 2009. Is there safety in numbers? The effects of forecast accuracy and forecast boldness on financial analysts’ credibility with investors. Contemporary Accounting Research 26 (3): 933– 968.

54 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Mercer, M. 2004. How do investors assess the credibility of management disclosures? Accounting Horizons 18 (3): 185–196.

55 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Williams, P. 1996. The relation between a prior earnings forecast by management and analyst response to a current management forecast. The Accounting Review 71 (1): 103–113.

56 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte:

Koonce, L., K. K. Nelson, and C. Shakespeare. 2011. How do investors assess the relevance of fair value for financial instruments? The Accounting Review 86 (6): 2075–2098.

57 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte: Joyce,

E. J., R. Libby, and S. Sunder. 1982. Using the FASB’s qualitative characteristics in accounting policy choices.

Journal of Accounting Research 20 (2): 654–675.

58 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Kadous et al. (2012) é a seguinte: Jurney,

S. 2008. How Do Nonprofessional Investors Understand and Use Relevance and Reliability of Financial Information? Dissertation: The University of Oklahoma.

45 Frederick, 200259, mencionados em Kadous et al., 2012, p. 1340). Como explicam Kadous et

al. (2012, p. 1340), inspirados no trabalho de Kahneman (200260), globalmente, quando um

indivíduo necessita de responder a uma questão que envolve um atributo fácil de entender, isto é, que seja rápida a inclusão do seu conhecimento na resposta, este irá responder pronta e diretamente. Por outro lado, se a pergunta for mais difícil, no sentido em que não é tão acessível incutir na resposta o conhecimento que o indivíduo tem, este seguirá um processo distinto. O indivíduo, não sendo capaz de avaliar a informação sobre o atributo em análise, irá, em contrapartida, desviar a questão para uma pergunta mais fácil sobre um atributo mais acessível da mesma entidade ou objeto. No caso concreto do justo valor, os utilizadores, por esta via, vão desviar a sua atenção para a característica de fiabilidade quando inquiridos sobre a avaliação da relevância da mensuração de um dado elemento. Por outras palavras, quando é feita a questão difícil sobre “Qual a relevância do justo valor?”, os utilizadores substituem esta pergunta, na sua mente, por uma mais acessível, como por exemplo, “Quão fiável é essa mensuração ao justo valor?”.

Este tema da (in)dependência da relevância face à fiabilidade é importante, pois, por um lado, avaliações pouco apropriadas da relevância podem conduzir a avaliações distintas de uma mesma entidade e, por outro lado, é um assunto que está diretamente ligado ao conflito que existe entre o custo histórico e o justo valor, onde, neste último, os níveis de fiabilidade podem variar bastante, o que, por tudo o que já foi dito anteriormente, pode causar uma ideia errada acerca da sua relevância se esta não for vista de forma independente (Kadous et

al., 2012).