• Nenhum resultado encontrado

3. O desenvolvimento do conceito de Justo Valor

3.5. Rivalidade entre Custo Histórico e Justo Valor

3.5.3. Outras considerações sobre o Custo Histórico e o Justo Valor

3.5.3.4. Prociclicidade e efeito contágio

Outra crítica apontada ao justo valor encontra-se relacionada com a sua contribuição para a prociclicidade do sistema financeiro, ou seja, pode não só tornar as oscilações no sistema financeiro mais exageradas, como, no limite, causar uma espiral descendente nos mercados financeiros (Allen & Carletti, 2008; André et al., 2009; Blankespoor et al., 2013; Brousseau et al., 2013; Cifuentes, Ferrucci & Shin, 2005; Eboli, 2010; Laux & Leuz, 2009; Magnan, 2009; Mala & Chand, 2012; Novoa, Scarlata & Solé, 2009; Plantin et al., 2008; Ronen, 2012; Yuan & Liu, 2011). Para Laux e Leuz (2009), existem duas possíveis explicações para este efeito, uma para fases de crescimento da economia e outra para períodos de abrandamento.

Em relação à primeira explicação, é dito que a contabilidade ao justo valor, dado permitir a realização de avaliações positivas nos ativos, em momentos de boom económico, pode levar a que o seu valor seja bastante elevado, possibilitando ao setor bancário aumentar a sua alavancagem financeira durante essa fase de crescimento da economia, o que, na situação inversa, isto é, quando a economia arrefece, torna a queda subsequente nos ganhos relatados ainda mais dramática, resultando na redução da capacidade dos bancos de enfrentar riscos, o que, por sua vez, torna o sistema financeiro mais frágil e conduz ao

249 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Rashad Abdel-Khalik (2011) é a

seguinte: Katz, D. 2008a. Fair-value revolution. CFO Magazine (September 1).

250O S&P 500 é um índice ponderado de capitalização de mercado das 500 maiores empresas de capital

174 agravamento das crises financeiras (Laux & Leuz, 2009; Magnan, 2009; Persaud, 2008; Plantin et al., 2008; Yuan & Liu, 2011).

O segundo argumento, que acaba por se relacionar com a consequência anterior, prende-se com a possibilidade do justo valor ter um efeito de contágio nos mercados financeiros. Neste sentido, este argumento é consistente com vários modelos teóricos existentes na literatura. Cifuentes et al. (2005) relata que os bancos, para colmatar as perdas resultantes da redução no justo valor dos seus ativos, que, por sua vez, se traduzem no afastamento entre o valor de capital possuído e o necessário para cumprir com as condições exigidas para efeitos de regulação, vendem ativos com um certo risco para que os rácios de capital se tornem mais elevados, por via do decréscimo do denominador (ativos ponderados pelo risco), o que fomenta ainda mais a redução dos preços devido à inexistência de uma liquidez totalmente perfeita. Allen e Carletti (2008) e Magnan (2009) argumentam o mesmo, sugerindo que, se houver uma tendência de queda do mercado, as perdas derivadas da redução no justo valor podem levar a que os bancos se encontrem em situação de insolvência por parte dos reguladores, o que pode conduzir a procedimentos forçados de redução da alavancagem, implicando a venda adicional de ativos a preços que não correspondem ao seu verdadeiro valor, o que acentua ainda mais o decréscimo dos preços de mercado, face à existência de uma liquidez não exatamente perfeita.

Enquanto Cifuentes et al. (2005) e Allen e Carletti (2008) se baseiam em modelos teóricos que indicam que, face a perdas no justo valor, a venda de todos os ativos de risco, genericamente, aumenta, Plantin et al. (2008), prevêem que os bancos, na ocorrência desse fenómeno, apenas vendem os ativos que diminuíram de valor. Os autores explicam que a venda forçada de ativos ocorre não para combater a escassez de capital, mas pelo facto de os gestores mostrarem preocupação com os efeitos das perdas no justo valor nos lucros da organização. Assim, como sugerem os autores, choques exógenos no preço de um ativo poderão levar a que os gestores se apressem e queiram ser os primeiros a vender o ativo no início da sua face de decréscimo de preço, isto é, antes que o seu preço desça ainda mais, criando uma oferta excessiva que tem como consequência a redução dos preços abaixo do seu valor real.

Por outras palavras, na perspetiva de Plantin et al. (2008), este efeito de contágio do justo valor advém de externalidades negativas geradas por outras empresas vendedoras. Quando se assiste a um aumento do volume de vendas, os preços de transação observados no mercado tornam-se mais inferiores em relação àquilo que deveriam ser, exercendo um

175 efeito negativo sobre todas as outras organizações que possuem um ativo semelhante, mas especialmente para quem decide manter o ativo, em detrimento da venda. Ora, procurando antecipar esse efeito negativo de redução do preço desse ativo, as organizações com uma mentalidade voltada para o curto prazo terão incentivo em vendê-lo antes que o seu preço desça ainda mais. Porém, como explicam os autores, essa ação preventiva contribui apenas para a amplificação da queda do preço. Assim, os críticos acusam o justo valor de “derramar combustível no fogo”, em vez de simplesmente “medir a chama” (Washington Post, 2008251,

citado em Mala & Chand, 2012, p. 32).

Contudo, apesar das críticas, existem autores a defender o justo valor neste aspeto, muitas vezes apelando para a perspetiva de mensuração ao custo histórico. Em relação ao primeiro argumento, Laux e Leuz (2009) referem que apesar do custo histórico ser mais prudente, ao não permitir reavaliações positivas durante períodos de elevado crescimento económico e ao possibilitar a criação de reservas ocultas passíveis de serem aproveitadas em momentos de crise, também é possível que, neste modelo, os bancos aumentem a sua alavancagem financeira durante fases de boom através da venda de um ativo e retenção de apenas um parte da reivindicação (ou garantia do seu desempenho). Deste modo, o incremento da alavancagem dos bancos em momentos de boom não é algo típico do justo valor, podendo também acontecer com outros regimes de mensuração. Além disso, os autores salientam que o justo valor pode ser essencial na prevenção de crises, ao fornecer antecipadamente sinais de fragilidades financeiras iminentes, forçando os bancos a tomar as devidas providências de forma atempada.

Em relação ao segundo argumento, Ronen (2012) refere que as situações de insolvência poderiam ser evitadas se o justo valor fosse determinado com base no valor atual dos fluxos de caixa a serem recuperados na maturidade. No entanto, embora reconhecendo o problema do efeito contágio do justo valor, o autor refere que o custo histórico também contribui para o mesmo dilema, uma vez que esconde mudanças nos fundamentos. Neste sentido, Allen e Carletti (2008) mencionam o exemplo da queda do preço do petróleo que desencadeou a “Crise das Poupanças e dos Empréstimos” nos EUA, nos anos 1980s. Nesse caso particular, a redução no preço do petróleo originou a redução dos fluxos de caixa esperados de muitas propriedades no Texas e noutros estados norte-americanos produtores de petróleo, que não

251 A referência bibliográfica completa apresentada no trabalho de Mala e Chand (2012) é a seguinte:

Washington Post, 2008, Lots of money and uncertainty. Available at: http://cesartiburcio. wordpress.com/page/4/.

176 se deviam a fatores temporários de liquidez. Ronen (2012) refere que este efeito poderia ter sido antecipado se as instituições financeiras tivessem utilizado o justo valor sob a forma de valor presente dos fluxos de caixa dos empréstimos que tinham como garantia essas propriedades.

Ainda dentro deste domínio, Magnan (2009) afirma que o problema do efeito contágio do justo valor não advém propriamente da Contabilidade, mas antes da forma como os reguladores financeiros usam a informação proporcionada por este critério. Como o autor sugere, “o relato financeiro baseado na contabilidade ao justo valor é apenas o mensageiro de que a solvência de uma empresa está minada pelas suas estratégias financeiras ou práticas de empréstimo” (p. 199).

Por fim, Lauz e Leux (2009) indicam que apesar do uso do custo histórico por parte dos bancos se afastar, por regra, dos preços de mercado, assim como dos preços estabelecidos pelas atividades de negociação de outros bancos, evitando os potenciais efeitos de contágio indiretos negativos, este método pode estimular os bancos a incorrerem em vendas de ativos ineficientes de maneira a obter resultados de maneira antecipada (Plantin et

al., 2008). Como é esclarecido por Lauz e Leux (2009), foi em grande parte devido à

preocupação de que os bancos pudessem negociar os ganhos, ou seja, vender seletivamente instrumentos financeiros com ganhos não realizados e deter aqueles que se encontravam com perdas, que o justo valor foi introduzido nos instrumentos financeiros. Assim, os autores salientam que embora o justo valor apresente deficiências nesta matéria, não é evidente que o custo histórico consiga dar uma boa resposta a estes problemas.