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Mesmo com as mudanças de partido político na esfera nacional em relação às décadas de 80 e 90, foi possível observar o predomínio de um “hibridismo político”, onde políticas de valorização do discurso meritocrático e de estímulo a participação da sociedade coexistem. A visão gerencialista (proposição de metas e avaliação dos resultados), o estímulo à meritocracia e a descentralização das formas de financiamento da educação são indícios desta constatação. Porém, nesse cenário, alguns avanços merecem ser destacados, como a criação de fundos para o financiamento da educação, a ampliação do acesso ao ensino superior e de um piso salarial para os docentes.

No Estado de São Paulo, a SEE-SP acabou apostando em políticas mais neoconservadoras. Segundo David153 (2012), algumas reformas implantadas tomaram o sentido inverso ao da descentralização estimulada pela esfera nacional, e, com um discurso de promover a equidade na educação, têm exercido um controle mais específico sobre todas as etapas da prática pedagógica (antes da ação docente por meio da proposição do currículo e de metas, durante através do programa SPFE e da bonificação por resultados, e depois por meio do SARESP e do IDESP). Mas, deve-se atentar que essas ações não concentraram poder nas mãos da SEE-SP e sim para Fundações e Institutos, responsáveis não somente pela implementação da reforma, mas por sua idealização. Isto reforça a ideia de que essas instituições têm ganhado cada vez mais poder frente a arena política educacional – conceito de “Governança filantrópica” (OLMEDO, 2013).

Conforme discutido no tópico 2, os professores, seja pela natureza de seu trabalho ou pela própria estrutura burocrática, possuem um grau considerável de discricionariedade. Mas, as práticas governamentais e os inúmeros programas da SEE-SP têm reduzido consideravelmente este espaço. Admitindo-se que as políticas estão inseridas em um contexto e que interagem entre si, dar aos professores um material de pronto uso, quando eles não têm tempo para planejar, é mais do que oferecer uma sugestão, é dar uma cartilha a ser seguida.

Nas reformas educacionais paulistas instituídas de 2007 a 2015, que deram origem aos Cadernos e ao Programa de Ensino Integral observam-se algumas características peculiares, como, por exemplo, a união da experiência ao aprendizado através da proposição de mais experiências a serem realizadas em sala e da priorização da individualidade nas sugestões de atividades a serem desenvolvidas (interação entre o aluno e o objeto do conhecimento).

153 Célia Maria David é mestre em História pela UNESP e doutora em Artes pela USP. Ela trabalha como

professora livre-docente na UNESP de Franca e realizou estudos sobre a implementação do material do programa SPFE em 2012.

Foi possível observar também que:

 A maioria dos professores se considera um mediador entre o conhecimento e os alunos, mas, por falta de recursos, muitas vezes acabam se limitando a práticas tradicionais (exposições de conteúdo). Os professores que experimentam práticas mais diversificadas, acabam por utilizar recursos próprios e comprometem o tempo com a família ou de descanso com trabalhos escolares;

 Os planos escolares, com exceção da escola do PEI, foram constatados como ferramentas de organização e controle, e não de aprendizagem e desenvolvimento do professor perante sua própria prática;

 E, em relação especificamente à autonomia docente predominante nas escolas analisadas foi constatado uma liberdade na escolha de métodos e não na participação ativa e comprometida com a emancipação (autonomia no sentido emancipatório).

Outro fator que deve ser destacado é que o programa SPFE e o próprio currículo estadual oficial foram criados sem uma participação real dos professores da rede. Separando o pensamento da ação, a SEE-SP impôs o seu currículo através de um material de “apoio” (Cadernos), criado com a intencionalidade de padronizar o trabalho dos docentes da rede.

A implantação dos Cadernos pode ter reflexos profundos sobre a autonomia docente, pois quando se interpreta a ordem das Situações de Aprendizagem como um “continuum experiencial”, elas podem tomar o peso de um único caminho a ser percorrido para que os alunos possam desenvolver as habilidades e competências previamente selecionadas (seja através dos métodos citados no material ou através de outros métodos escolhidos pelo profissional – autonomia técnica). A quebra desta sequência ideal ou a não realização de uma dessas etapas poderia representar uma fissura que comprometeria o desenvolvimento, e, desta forma, inviabilizaria a aprendizagem. Quando se analisa sob esta óptica, o material oferecido pelo SPFE deixaria uma limitada margem para o exercício da profissão docente, tornando-os meros aplicadores da proposta.

O discurso que sustenta o Currículo Oficial do Estado de São Paulo é baseado no pensamento meritocrático, para o qual o sucesso do indivíduo dependeria de seu próprio esforço. Ou seja, o material propõe que se todos os alunos tivessem acesso aos mesmos conhecimentos, dependeria apenas de seu esforço pessoal a obtenção de melhorias na qualidade de vida. Contudo, analisando o currículo enquanto imposição da cultura e exercício do poder do Estado, quando o Estado determina sozinho o que deve ser ensinado nas escolas, os critérios de avaliação, as metas e o processo (material do SPFE), ele vai na contramão do processo de gestão democrática e de descentralização da educação. Passando a determinar qual

conhecimento é importante, o Estado especificaria qual cultura deve ser valorizada e qual deve ser excluída. Além disso, ele acabaria por desqualificar e alienar seus profissionais da educação ao desvinculá-los completamente do poder de decisão.

(...) ameaça vem na forma de uma série de reformas educacionais que mostram pouca capacidade dos profissionais de escola pública de oferecerem uma liderança intelectual e moral para a juventude de nosso país. (GIROUX, 1997, p. 157)

(...) proletarização do trabalho docente, isto é, a tendência de reduzir os professores ao status de técnicos especializados dentro da burocracia escolar, cuja função, então, torna-se administrar e implementar programas curriculares, mais do que desenvolver ou apropriar-se criticamente de currículos que satisfaçam objetivos pedagógicos específicos. (GIROUX, 1997, p. 158)

Neste sentido, vários trabalhos têm sido publicados, em anais de congressos e revistas especializadas, sobre o uso do material oferecido pela SEE-SP. Apesar de, na maioria dos casos, esses trabalhos analisarem o uso do material especificamente relacionado a uma disciplina (Geografia, História, Matemática, Educação física, entre outras), eles citam que o uso dos Cadernos tem comprometido a autonomia dos professores.

Um exemplo é o trabalho de Célia M. David publicado em 2012 na Revista Ibero- Americana de Estudos em Educação. Nesse trabalho a autora analisa a implantação da proposta curricular estadual paulista na disciplina de História no município de Franca, concluindo que o fato de o Caderno do Professor possuir descrições detalhadas de como o docente deve proceder desde a etapa de sondagem até a recuperação de aprendizagem e o fato de os conteúdos estarem divididos pelo número de aulas, limitam as mudanças que o professor pode realizar “sem comprometer” a proposta da SEE-SP. Dessa forma, a autora apresenta a conjuntura paulista como uma estrutura administrativa centralizada, burocrática e tecnicista, pois os professores, sob o lema do “direito a aprender”, possuiriam uma “autonomia regulada” através do uso de um material imposto de cima para baixo. Ainda segundo a autora, esse uso “inconteste” seria fruto de um acomodamento do professor a uma política de “prêmio e castigo”, onde os professores se renderiam aos bônus atrativos.

Contudo, observamos nesta pesquisa que, na maioria dos casos, os professores não fazem um uso totalmente acrítico do material. Apesar do amplo uso dos Cadernos, eles elaboram julgamentos sobre o conteúdo do material e realizam adaptações, ultrapassando a liberdade de escolha técnica e, em alguns casos, chegando a desenvolver suas práticas criticamente, ainda que de forma isolada. Foi constatado então, que os professores entrevistados constroem suas práticas em cima do currículo questionando suas metodologias e até conteúdos, mas, no entanto, sem realizar contestações coletivas de suas raízes.

Infelizmente este nível superficial de reflexão não tem se mostrado suficiente, nem para melhorar a qualidade do ensino, quiçá do trabalho docente. Materiais didáticos, como os

propostos pelo programa SPFE, acabam controlando as decisões dos docentes e prejudicando o exercício do julgamento lógico. Conhecidos como “materiais didáticos à prova de professor”, eles têm sido amplamente criticados por muitos autores. De acordo com Henry A. Giroux154 (1997, p.35),

(...) [materiais didáticos à prova de professor] Estes materiais promovem uma incapacitação dos professores ao separar concepção de execução e ao reduzir o papel que os professores desempenham na real criação e ensino destes materiais. (...) Assim, os professores são reduzidos ao papel de técnicos obedientes, executando preceitos do programa curricular.

Esta conjuntura também acaba por influenciar no sentido que os índices educacionais e avaliações em larga escala, como o SARESP, têm dentro da unidade escolar. Eles estipulam metas que levam ao questionamento do que foi feito na unidade e não das próprias metas. Se muitos professores não conhecem como os índices são calculados, ou admitem que há pouca correspondência entre os resultados e o trabalho realizado, qual é o significado de se utilizar estes índices? Seriam mais uma forma de discriminar as escolas, de criar atritos entre os professores que receberam e os que não receberam bônus (sendo que ambos possuem salários baixos), ou de culpabilizar os implementadores do currículo?

Foi observado também que não seria o bônus que teria influenciado na ação e adesão dos professores ao material, sendo este sistema até bastante criticado por eles. Esta pesquisa constatou que o principal fator que tem comprometido a reflexão, o planejamento e o desenvolvimento profissional dos docentes tem sido as condições estruturais de trabalho (baixos salários, falta de tempo remunerado de trabalho individual e coletivo de planejamento e reflexão, sobrecarga de trabalho, entre outros) e não a política de bonificação salarial em si.

De acordo com Henry A. Giroux (1997, p. 29), “As condições materiais sob as quais os professores trabalham constituem a base para delimitarem ou fortalecerem suas práticas como intelectuais”. Ao se considerar este autor, os professores só poderiam exercer sua autonomia no sentido emancipatório, se melhores condições salariais e de trabalho fossem garantidas.

Apesar da falta de estímulo ao trabalho coletivo e de tempo para a reflexão sistematizada, os professores apresentam posicionamentos críticos à respeito da estrutura de funcionamento da rede, da estruturação por categorias, da má gestão das verbas referentes a educação e da falta de recursos. Mas essas falas foram acompanhadas de um descrédito na função do Sindicato (APEOESP) e na desarticulação dos docentes para a mudança deste cenário.

154 Henry A. Giroux é um professor e pesquisador universitário na área de Educação, desenvolvendo pesquisas

O que se deve ter em mente é que estas falas não estão desconectadas de seu contexto. No Brasil, nota-se uma ausência de uma cultura de participação, que é fruto tanto de seu passado colonial e de submissão a políticas e interesses internacionais, quanto dos longos períodos ditatoriais pelos quais passou. A busca por participação política é algo relativamente recente (processos de redemocratização em 1940 e 1980) e a forma de participação é algo que também deve ser questionado.

O modelo de gestão flexível, importada do setor empresarial para a área educacional, tem afetado o sentido da participação. Participar da construção de uma proposta apenas enviando “práticas exitosas” pela internet, e esperar que, em menos de 2 meses, elas sejam analisadas e inseridas em um material, além de fora da realidade, não condiz com uma concepção ativa de participação. Nesse modelo é comum que os funcionários, ditos “colaboradores” enviem suas sugestões de forma individual ou coletiva, mas que muitas vezes só servem como forma de incrementar a produção e não como mecanismo de defesa dos interesses dos trabalhadores (BERNARDO, 2009).

Resquícios desta gestão flexível têm sido observados no ambiente escolar. No transcorrer das entrevistas dos professores, foi observado que muitos consideram responder a questionários, enviar sugestões à SEE-SP ou estar presente fisicamente em um ATPC ou planejamento como forma de participação. Entretanto, essas formas de participação não garantem que as reivindicações da categoria sejam contempladas e que uma proposta democrática possa ser construída.

É obvio que um modelo empresarial não pode ser simplesmente transposto para a área pedagógica, pelas inúmeras peculiaridades do trabalho docente citadas no capitulo 2, mas as marcas são visíveis. E o PEI, que aparentemente tem condições de trabalho mais favoráveis ao trabalho docente (melhores estruturas físicas e trabalhistas), parece ser a mais marcada pela tal “gerência flexível”.

Conforme foi observado na estrutura do currículo do PEI, a noção fabril de tempo não é superada. Embora haja um discurso de formação integral e de estímulos a práticas diferenciadas, a presença de disciplinas específicas para o desenvolvimento de determinadas competências como, Projeto de Vida e Protagonismo Juvenil, e a rígida estrutura de horários demonstram que falta uma visão interdisciplinar e que os tempos para cada atividade continuam sendo controlados.

Contrariando a perspectiva de classes heterogêneas presentes na perspectiva da Escola Nova, o PEI possui, logo no começo do ano, o processo de nivelamento. No qual os alunos com maior defasagem são agrupados para receberem um tratamento diferencial. O que

se questiona aqui, não é a maior assistência dada a esses alunos, mas o fato de eles serem segregados por suas habilidades já desenvolvidas, sendo que turmas heterogêneas poderiam favorecer a flexibilidade e cooperação entre os alunos, na qual um poderia auxiliar melhor o trabalho do outro.

Apesar deste cenário um tanto desanimador da educação, o que se observou no contato com os professores, é que mesmo depois de horas de trabalho, de passar por situações degradantes, de usar do próprio salário para dar uma aula “de qualidade”, os docentes continuam se articulando e construindo atividades com a finalidade de promover o aprendizado e desenvolvimento de seus alunos. Muitos deles, a pouco tempo para se aposentar, continuam inventando projetos, desenvolvendo aulas e atendendo seus alunos da melhor forma que podem. Durante as entrevistas foram encontrados, nas três escolas, profissionais motivados, que acreditam em sua profissão e que demonstram ter uma boa formação e bagagem teórica, mas que muitas vezes estão isolados em seus problemas profissionais. Não pela falta de apoio da coordenação, mas porque são tantos problemas sociais que repercutem dentro dos muros das escolas, que sozinhos eles nunca conseguirão enfrentar e solucionar os desafios diários presentes dentro das salas de aulas. Falta a coletividade. Falta o agir em conjunto. Faltam políticas de incentivo e recursos estruturais e financeiros. A relação entre a verba recebida pela APM e o número de alunos da UE pode ser analisado na Figura 24 a seguir.

Figura 24. Gráfico da evolução da verba anual por aluno recebida pelas instituições de ensino analisadas.

Fonte: Gráfico construído pela autora a partir dos dados disponibilizados pelo Portal da Transparência da Fundação para o Desenvolvimento da Educação. Disponível em: <http://www.fde.sp.gov.br/PagesPublic/Home.aspx> Acesso em 27 mai. 2016.

Pelo montante de verba que foi destinado à FCAV para a construção dos Cadernos e pela falta de recursos pelo qual passam as escolas, não seria mais interessante, mais econômico e até mais viável, que estes recursos fossem destinados diretamente às escolas? Que, por exemplo, as máquinas copiadoras fossem patrimônio e não fruto de aluguéis, passíveis de

terem seus contratos extintos, e deixando mais uma vez seus professores desamparados? Como de fato ocorreu no início de 2016. Será que com recursos disponíveis, os professores não poderiam ter a oportunidade de criar, eles mesmos, seus próprios materiais didáticos atualizados, contextualizados e articulados? Processo este que poderia muito ser enriquecido, não só com a assessoria de especialistas da SEE-SP, mas com socializações reais de experiências, dentro e fora das DEs.

Isso não é uma ideia fora da realidade. Com os avanços dos sistemas de comunicação, esses encontros não representariam custos a mais. Mas para tal é preciso tempo! Tempo que esses profissionais não têm disponível, nem para o simples preparo das aulas. Essa necessidade é latente na fala dos próprios profissionais da rede, que recebem um apoio técnico sem verbas, quase como se fossem chamados de “incompetentes” ou “incapazes”. Como nas escolas prioritárias, onde sem verba nenhuma a mais, em escolas sucateadas, os profissionais têm que fazer projetos diferenciados para “recuperar” determinada comunidade socialmente excluída.

O que se quer destacar aqui, é que a escola tem sim seu poder de transformar a realidade, mas que é uma falácia acreditar que ela, exclusiva e isoladamente, vai sanar todos os males da sociedade. Um trabalho de qualidade demanda recursos, demanda uma participação efetiva dos profissionais que estão todos os dias nas mais de 5.000 escolas da rede estadual travando batalhas individuais, que por sua natureza solitária estão fadadas ao fracasso.

É preciso que todos, independentemente da categoria, sejam valorizados. Que deixem de existir essas fissuras entre profissionais, que no final das contas fazem as mesmas atividades, sofrem com os mesmos desafios, e lutam por um ensino de maior qualidade!

Como intelectuais transformadores, os educadores podem servir para revelar e desenterrar aquelas formas de conhecimento histórico e subjulgado que apontam para experiências de sofrimento, conflito e luta coletiva (GIROUX, 1997, p. 257)

Quando neste texto nos referimos à necessidade de que os professores reflitam sobre sua própria prática, e para isso retomem seus planos de ensino e propostas pedagógicas, não objetivamos que eles aprimorem suas aulas com o objetivo de melhorar os índices educacionais, mas como forma de buscar as raízes estruturais dos problemas por eles enfrentados diariamente, para que possam tratá-los e efetivamente transformar a realidade educacional. Trata-se de uma tarefa coletiva, não só entre professores de uma disciplina, ou de uma área do conhecimento, de uma categoria, ou escola, mas do debate de uma classe profissional.

Se existe realmente a necessidade dos professores da rede de se organizarem a partir de um currículo mínimo comum, que eles tenham oportunidade de construí-lo através de um

debate da cultura e necessidades de seus alunos com e para a comunidade. A introdução de reformas políticas top down, que alienam e transformam os profissionais da educação em meros técnicos ou reprodutores de materiais “à prova de professor”, não tem se mostrado um caminho condizente com o discurso de promoção de equidade e de valorização profissional promovido pela SEE-SP.