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2.3 O TRABALHO E AUTONOMIA DOCENTE

2.3.3 AUTONOMIA DOCENTE

2.3.3.1 CONCEPÇÕES DE AUTONOMIA

Uma das formas de se conceber a autonomia seria compreendê-la sob o paradigma da racionalidade técnica (lado esquerdo da figura 05). Essa perspectiva se basearia no fato de que, dentro de uma sala de aula, o professor seria “livre” para escolher a metodologia de ensino mais adequada à promoção da aprendizagem de seus alunos.

Apoiada no pensamento positivista, essa linha de raciocínio analisa o professor como um “perito”, ou seja, como um profissional que detém conhecimento de técnicas específicas para executar sua função. Dessa forma, quanto mais conhecimento técnico adquirisse um professor, mais capacitado este funcionário se encontraria para cumprir com efetividade as metas educacionais e curriculares que lhe fossem atribuídas. O “professor perito”

55 Ângela Maria Martins é graduada em Ciências Sociais, mestre em Educação pela USP (Universidade de São

teria então liberdade para escolher, durante a prática pedagógica, entre seu arsenal de técnicas (construídas e propostas por especialistas acadêmicos) as que melhor se adequam para executar currículos e políticas educacionais (também proposta por outros) da forma mais eficiente e eficaz (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Figura 05. Esquema dos diferentes conceitos de autonomia.

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos trabalhos de José Contreras Domingo (2003), David Schön (1992), Henry Giroux (1997), Paulo Freire (2011-a) e Ana Paula Petroni e Vera Lúcia Trevisan de Souza (2009).

Enquanto perito, suas práticas se manteriam inquestionáveis, pois se apoiariam na autoridade dos especialistas e em decisões unilaterais, que seriam aplicadas por meio da imposição. Mas isso acabaria por revelar uma prática reprodutora e não criativa, na qual os docentes teriam uma preocupação maior com o rigor de suas práticas do que com a relevância das mesmas, cabendo ao professor apenas cumprir o ensino e não questioná-lo ou avaliá-lo (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Um empecilho para esta visão é que, na maioria dos casos, “técnicas prontas” não se mostram suficientes para lidar com as situações complexas, urgentes e inesperadas que fazem parte da rotina do trabalho escolar. A autonomia baseada na racionalidade técnica mostra-se, então, como uma autonomia ilusória, marcada pela incapacitação política, pela insensibilidade dos profissionais do ensino aos dilemas e problemas que enfrentam, pela impossibilidade de construção de uma resposta criativa aos problemas existentes, e pela extrema alienação do profissional com relação a sua própria atividade de trabalho (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Há então outra forma de conceber autonomia docente, na qual por conta das limitações práticas do conhecimento técnico citadas anteriormente, o professor mobiliza seu conhecimento experiencial para atuar, possuindo uma “autonomia prática”.

Durante a prática pedagógica o educador concatena seus conhecimentos e experiências, apoiado nos seus valores e cosmovisões, construindo o que autor Donald Schön56 (1992) denomina “conhecimento-na-ação”. Quando o professor reflete sobre esse conhecimento para poder agir e criar novas formas de lidar com os problemas cotidianos, com os quais se defronta, ele realiza a “reflexão-na-ação”. Esse movimento dialógico, fundamental para o desenvolvimento profissional e para a transformação da prática educativa, confere ao professor a característica de “profissional reflexivo” (centro da figura 05) (SCHÖN, 1992; CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Segundo Schön (1992), a “reflexão-na-ação” faria com que o professor prestasse uma atenção maior em seus alunos, surpreendendo-se com eles e abrindo espaço para a “confusão” (negação das verdades absolutas). Com isso, o professor se tornaria um investigador por construir e testar hipóteses continuamente enquanto trabalha, desenvolvendo concomitantemente sua prática e a si mesmo. Rompendo com a dicotomia entre investigação e prática se desenvolveria, então, uma espécie de racionalidade prática (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Esse pensamento leva a outra forma de conceber a autonomia, na qual os professores deixam de ser percebidos como meros aplicadores de currículos, e passam a ter autoridade não somente pelo conhecimento que detém, mas por seu extremo contato com a prática (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Uma crítica para essa visão é que, quando se individualiza dessa forma a reflexão, os professores acabam sendo responsabilizados e culpados57 pelo fracasso escolar de seus alunos. Esse fenômeno resulta da limitação local e imediata da análise, que por não buscar as raízes sociais, econômicas e políticas dos problemas, acaba por impossibilitar sua efetiva transformação.

Nesse contexto, as escolhas e ações de cada professor seriam influenciadas pela concepção de mundo e valores próprios de cada profissional, o que o tornaria responsável pelo o processo de ensino que ele desenvolvesse. Essa autonomia profissional acabaria também por excluir a participação da comunidade das decisões educacionais por isolar o docente em sua prática. E, ao criar um ambiente de maior liberdade local para o ajuste às normas externas, esta

56 Donald Schön foi um pedagogo estadunidense que atuou como professor no Instituto de Tecnologia de

Massachusetts.

57 Os termos responsabilidade e culpa são analisados como distintos neste trabalho, pois o termo culpa se refere a

responsabilização pela omissão, falta voluntária e não cumprimento de um comportamento pré-determinado, desejado ou esperado. Segundo Oliveira e Tomazetti (2006), observa-se um crescente processo de culpabilização dos professores, em especial do ensino médio, pela alteração da função social do professor na atualidade.

concepção poderia ser analisada como uma forma de se obter a “colaboração” e “obediência” para determinada ordem oficial, impossibilitando o potencial do conhecimento docente de desencadear alterações na ordem vigente.

Soma-se a isso o fato de, apesar de não existirem limites para uma prática reflexiva, a reflexão per si não garantir uma atividade educativa mais igualitária e libertadora, podendo até ter o efeito reverso quando utilizada para aperfeiçoar e implantar exigências institucionais contraditórias e alienantes (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Segundo o educador Paulo Freire,

O pensar certo sabe, por exemplo, que não é a partir dele como um dado dado que se conforma a prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. (FREIRE, 2011-a, p.39)

Este trecho demonstra a ideia do autor de que não é a mera reflexão sobre a ação que leva a um posicionamento crítico, mas a práxis, ou seja, a reflexão crítica sobre a prática que leva a transformação das ações futuras por ação do conhecimento construído (GIROUX, 1997).

Para que se desenvolva um pensamento crítico é necessário que os sujeitos desenvolvam um distanciamento da realidade vivida, para que possam tomar consciência das contradições existentes e passem a se compreender não enquanto seres passivos apenas inseridos em uma dada realidade, mas como agentes de transformação (FREIRE, 2011-b). Essa problematização da realidade, sugerida nos textos de Paulo Freire, é que se faz necessária para a constituição de uma categoria profissional docente efetivamente autônoma.

O que o autor Paulo Freire denomina como autonomia, o pesquisador Vigotski aborda em seus trabalhos como autorregulação. Apesar de Paulo Freire e Vigotski dedicarem suas pesquisas a temáticas diferentes (educação e desenvolvimento psicológico, respectivamente), estes autores apresentam muitas semelhanças, como, por exemplo: a mesma base epistemológica marxista; a concepção de que o sujeito se constrói histórica e culturamente; a indissociação entre o sujeito e seu contexto; a perspectiva de que o homem se constrói através de suas relações e interações com o outro; a importância conferida a linguagem na formação do sujeito; e as críticas ao modelo de escola tradicional (PETRONI; SOUZA, 2009).

A autonomia a partir da interpretação dos trabalhos desses dois autores tem relação com o “autodomínio, à liberdade que o sujeito adquire para agir de acordo com suas próprias leis”, o que significaria incluir o contexto, a responsabilidade e um posicionamento crítico frente às próprias ações (PETRONI; SOUZA, 2009, p. 357-358).

Não se trata, portanto, de uma atividade individual, mas marcantemente coletiva. É no coletivo que as diferentes visões de mundo se colidem e se confrontam possibilitando o desvelamento e a análise de elementos macroestruturais determinantes, que antes se faziam invisíveis nas análises reflexivas individuais de cada docente (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Esse caráter coletivo da autonomia é problematizado também pelo autor Cornelius Castoriadis58 (1982), em seu livro “A instituição imaginária da sociedade”. No texto, apoiado nas teorias psicológicas de Freud, o autor defende que ser autônomo não é desconsiderar o discurso do outro, mas se relacionar com este conhecimento. Rompendo com a alienação produzida por um discurso de “anonimato coletivo”, a autonomia seria dotada de um caráter político e social, pois “(...) não podemos desejar autonomia sem desejá-la para todos e que na sua realização só pode conceber-se plenamente como empreitada coletiva” (CASTORIADIS, 1982, p. 129). Para tal, o discurso do outro seria fundamental para a construção de uma nova relação entre o consciente e o inconsciente, entre a atividade e passividade, objetivando a promoção de um sujeito autônomo (CASTORIADIS, 1982; PASSOS, 2006).

Tendo em mente estas reflexões e comungando-as com o compromisso social da educação, o professor pode ser analisado como um “intelectual crítico”. Esse termo se refere ao fato de que:

(...) os docentes têm por obrigação problematizar os pressupostos sob os quais se sustentam os discursos e valores que legitimam as práticas sociais e escolares, valendo-se, para tal, do conhecimento crítico de que são portadores, com o objetivo de construir um ensino dirigido para a formação de cidadãos críticos e ativos. (CONTRERAS DOMINGO, 2003, p. 110)

Nessa concepção, a reflexão a ser desenvolvida pelos professores englobaria as origens sociais e históricas dos problemas encontrados. Essa reflexão crítica, construída coletivamente, apresentaria um caráter progressivo e contínuo, em busca de alternativas de ação que visem à transformação da estrutura social e institucional vigente com um compromisso social de superação das distorções ideológicas e desigualdades (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Esse processo permanente de construção da autonomia tem um compromisso com a diversidade e não com a finalidade de buscar uma suposta universalidade. Rompendo com a ideia de direito profissional individual, esta vertente propõe um relacionamento entre a prática profissional e contexto social mais amplo. Desta forma,

(...) enquanto emancipação, a autonomia pressuporia um processo contínuo de descoberta e de transformação das diferenças entre a nossa prática quotidiana e as aspirações sociais e educativas de um ensino escolar norteado pelos valores de

igualdade, justiça e democracia. Mais ainda, um processo contínuo de compreensão dos fatores que dificultam não só a transformação das condições sociais e institucionais do ensino, como também as da nossa própria consciência. (CONTRERAS DOMINGO, 2003, p. 130)

Nessa concepção de autonomia (sentido emancipatório), busca-se coletivamente uma autoconsciência que liberte o profissional das diferentes formas de opressão de que é vítima e autor, dentro e fora da instituição escolar. A ação docente assume sua dimensão inerentemente política e comprometida com a transformação das condições sociais e institucionais (CONTRERAS DOMINGO, 2003).

Mas, para que a autonomia não se torne uma panaceia é necessário que se tenha em mente que “a autonomia será sempre o produto de uma conjuntura histórica e política em processo de construção permanente, e nunca a resposta definitiva para contradições e conflitos sociais, insondáveis e imprevisíveis” (MARTINS, 2002, p.32). E não basta que os sujeitos sejam incluídos no processo de tomada de decisões, é imprescindível que se garanta a liberdade de opinião (MARTINS, 2002).