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2.1 PLANEJAMENTO

2.1.1 HISTÓRICO DO PLANEJAMENTO FORMAL NO ÂMBITO SOCIAL

Embora planejar seja próprio do homem, o termo “planejamento” é relativamente recente. Conforme as relações humanas foram se tornando mais complexas, a forma de se pensar o planejamento, sua função e estrutura sofreram transformações. No continente europeu, por exemplo, o planejamento só passou a ter caráter científico a partir do século XVIII, com as grandes transformações provocadas pelo Movimento Iluminista (FRIEDMANN, 1987).

A ideia de utilizar conhecimento científico como base para a construção dos planejamentos surgiu a partir dos trabalhos de grandes teóricos como Jeremy Bentham, John Stuart Mill e Saint-Simon. Estes e outros autores difundiram os ideais do “planejamento científico” como uma “ferramenta” dotada de poder para a promoção da prosperidade universal, na qual a pobreza seria erradicada e a felicidade se tornaria o destino da humanidade. Com o decorrer do tempo, este paradigma foi sendo questionado e várias correntes filosóficas e ramos

de planejamento foram surgindo, influenciadas tanto pelo desenvolvimento de novas teorias administrativas, quanto pelas diferentes concepções de Estado (FRIEDMANN, 1987).

O primeiro país a utilizar o planejamento de forma sistemática foi a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que, em 1929, instituiu o primeiro Plano Quinquenal. Com a função de regular os preços (economia planificada) no sistema socialista, foi possível observar o planejamento enquanto “ferramenta” de planificação20 do setor social, implicando em uma estrutura com uma maior burocratização (SCHIEFELBEIN, 1974; LAFER, 1975).

Posteriormente, sob os desastrosos efeitos econômicos da Quebra da Bolsa de Nova York (1929), as técnicas de planejamento estatal também foram inseridas dentro dos países capitalistas. Apesar de em uma economia competitiva (concepção liberal) o planejamento governamental ser considerado desnecessário (“Estado mínimo”), seu uso surgiu impulsionado pela necessidade de alcançar determinados fins econômicos e sociais. Naquele contexto de crise, as intervenções estatais se fizeram necessárias para a reconstrução das economias e para a própria manutenção do sistema capitalista. Isso representou um papel chave para o desenvolvimento e diversificação do planejamento (LAFER, 1975; FRIEDMANN, 1987).

Segundo Mário Testa21 (1992), o fato de tanto países socialistas quanto países

capitalistas utilizarem o planejamento para organizar suas atividades resultou em uma visão de que se tratasse de um “instrumento” politicamente neutro, e que levasse ao desenvolvimento pleno e à paz por si mesmo.

A lógica de planejamento que perdurou nesse período foi fortemente influenciada pelo pensamento de gerência dos trabalhos de Frederick Taylor22 (1856-1915), que buscava elevar a produtividade através de métodos únicos, padronizados e controlados dos empregados, exigindo uma maior divisão de trabalho e maior especialização. O trabalho entre diferentes pessoas deveria ser integrado e articulado por relações hierárquicas e o planejamento seria construído de forma centralizada (PADILHA, 2001; CHIAVENATO, 2007).

No período entre as duas Grandes Guerras Mundiais (1914-1945), a busca pela racionalidade foi apoiada pela Teoria Clássica de Henri Fayol23, na qual quanto maior o nível hierárquico ocupado em uma empresa maior seriam as funções administrativas do funcionário.

20 O termo planificação remete a um controle absoluto por parte do governo, diferindo substancialmente do termo

planejamento (organização da ação) (FERREIRA, 1979).

21 Mario Testa é um médico sanitarista argentino, mundialmente conhecido por suas obras na área de planejamento

e saúde coletiva.

22 Frederick Winslow Taylor foi um engenheiro mecânico norte-americano, que desenvolveu o conceito de

Gerência Científica ao estudar e aprimorar as formas de controle sobre a produção das fábricas.

23 Jules Henri Fayol foi um engenheiro francês, que se dedicou ao estudo das divisões de funções e de poder dentro

Isso provocou uma centralização, cada vez maior, do processo de tomada de decisões e conferiu um caráter prescritivo e normativo ao processo de trabalho (CHIAVENATO, 2007).

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a reconstrução dos países afetados pela guerra, o crescimento econômico e a instalação do Estado de Bem-Estar Social na Europa Ocidental levaram ao triunfo do planejamento científico. Como resultado houve uma grande expansão da literatura e estudos sobre planejamento após 1945 (FRIEDMANN, 1987).

Emergiu então a ideia de que o Estado deveria planejar para induzir o desenvolvimento econômico. Esse modelo de planejamento difundido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi muito debatido pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e serviu de base para a escola de planejadores nos governos latino-americanos das décadas de 50 e 60 (GENTILINI, 2014). Conhecido como planejamento normativo (Tabela 01), esse modelo teve seu auge entre os anos 50 e 70, e entrou em crise na década de 80 (AGUERRONDO, 2014).

No final da década de 60 surgem planejamentos pautados em uma visão mais global e no trabalho em equipe (SCHIEFELBEIN, 1974). Com o surgimento da Teoria das Relações Humanas e da Teoria Comportamental, diferentes conhecimentos das áreas de Sociologia e Psicologia começaram a ser inseridos no mundo administrativo, propondo o aumento de motivação, dos incentivos e da “autonomia”24 dos funcionários para se atingir melhores

resultados (PADILHA, 2001; CHIAVENATO, 2007). Essas teorias comportamentais tiveram pouco sucesso em sua aplicação prática, pois, no meio da luta entre patrões e funcionários, foram empregadas como um discurso demagogo e de fachada (CHIAVENATO, 2007).

Surge então, a Teoria Neoclássica (Administração por Objetivos) com ênfase nos processos práticos e busca por resultados e alcance de objetivos. Nessa perspectiva, o planejamento é contínuo, voltado para o futuro, no qual as decisões são racionais, sistêmicas e interativas, baseadas em técnicas cíclicas e de coordenação (PADILHA, 2001). Esse modelo de planejamento, chamado de planejamento estratégico (Tabela 01), foi importado do setor empresarial para o social, e surgiu como uma proposta de superação do modelo normativo (AGUERRONDO, 2014).

Com o advento de técnicas computacionais ocorreu um novo impulso ao planejamento através de propostas de mecanização e automação. A simulação computacional emergiu como forma de buscar maior eficiência na manipulação e tratamento de dados. E, após

a década de 80, foi proposta a adoção de uma visão sistêmica para os fenômenos, própria de um contexto de mundo globalizado (SCHIEFELBEIN, 1974).

Tabela 01. Principais modelos de planejamento. Fonte: Construído pela autora com base nos trabalhos de Carlos Matus (1991; 1993) e Inés Aguerrondo (2007; 2014).

Modelo Concepção Teórica

Planejamento tradicional ou normativo

O planejamento se destinaria ao que deveria se tornar a realidade através do estabelecimento de normas, sem a preocupação com o que poderia ocorrer ou com o que seria efetivamente feito na realidade. Baseada na lógica positivista, essa forma de planejamento pressupõe: uma alta governabilidade do sistema por um só ator social; que as ações dos diferentes agentes econômicos sejam conhecidas e previsíveis; e que não existam fatores desconhecidos interferindo no processo. Concebida a partir de uma visão linear da dinâmica social, a perspectiva normativa prevê o planejamento como uma realização de etapas sucessivas, com uma separação clara entre teoria e prática. A principal crítica para essa vertente teórica consiste no fato de que em um sistema social nada pode ser completamente previsível (MATUS, 1991; 1993; AGUERRONDO, 2007; 2014).

Planejamento Estratégico

Pressupondo um processo de discussão e análise entre os diferentes atores sociais, esse modelo propõe que a governabilidade de um depende de seu poder frente ao outro (MATUS, 1991; 1993). Baseado no enfoque dialético, essa proposta surgiu da crise do modelo normativo de planejamento, o qual é incapaz de se adaptar às contínuas mudanças sociais. O planejamento estratégico, com claros objetivos políticos, presume a ação integrada de técnicos, políticos e administradores na elaboração de cálculos e na criação de meios para a resolução dos problemas encontrados. Contudo essa metodologia não questiona a lógica de planejamento tradicional (tomar uma decisão já afetaria a realidade), pois está baseada no pensamento de causa e efeito (AGUERRONDO, 2007; 2014).

Planejamento Estratégico Situacional

(PES)

O PES introduz o conceito de situação25, alertando para a natureza complexa e contextualizada

dos acontecimentos e fenômenos sociais. Ele se baseia em um diagnóstico interativo e contínuo da realidade e possui um compromisso político de promover a transformação social. O PES tem como um de seus fundamentos o conceito de práxis, o que acabaria por englobar a implementação no processo de planejamento (AGUERRONDO, 2007; 2014). Essa forma de planejamento é composta de quatro elementos principais: o “Momento Explicativo”; o “Momento Normativo”; o “Momento Estratégico”; e o “Momento Tático-Operacional”. Esses elementos se desenvolvem de forma contínua, não ordenada, onde cada momento depende e interage com os demais. Nessa compreensão, o conceito de momento não pode ser analisado como uma etapa (MATUS, 1991).

Mas no final da década de 80, com o esgotamento econômico gerado pelas crises do petróleo e pela necessidade de se pagar as dívidas externas, os países latino-americanos começam a questionar a capacidade do modelo de planejamento vigente de lidar com problemas sociais complexos (GENTILINI, 2014).

Eis que então, na década de 90 e no início do século XXI, com a globalização, expansão da “nova Terceira Via” 26 e o surgimento de novos atores na agenda política, emergiu,

25 O conceito de situação se refere a uma compreensão de realidade que engloba vários pontos de vista, não a um

recorte temporal (MATUS, 1993).

26 Neste texto, emprega-se o termo “nova Terceira Via” em referência ao trabalho de Marilena Chauí (1999), que

defende a ideia de que o conceito de Terceira Via já existia nos discursos fascistas dos anos 20 e nos peronistas dos anos 40. Segundo esta autora, por conta dos desastres sociais provocados pelas políticas baseadas no pensamento neoliberal e pelas pressões dos movimentos sociais em busca de direitos sociais, o pensamento da “Nova Terceira Via” ganhou força nos anos 90. Proposto por Tony Blair, durante o Consenso de Washington, o pensamento da Terceira Via da década de 90 é busca em instituições e fundações filantrópicas a chave para a promoção do desenvolvimento e “prosperidade universal”.

na América Latina, a proposta de um novo modelo de planejamento, o Planejamento Estratégico Situacional – PES (Tabela 01).

No PES, com o objetivo de se promover a transformação, as forças políticas passaram a ser incluídas no processo de planejamento, assim como as especificidades locais (realidade social, histórica, cultural, econômica e política) ou situacionais (AGUERRONDO, 2014).

Contudo, é importante destacar que, as diferentes perspectivas de planejamento se sobrepõem e interferem no modo de funcionamento das instituições sociais atuais de diversas formas e intensidades. A própria concepção de função do Estado, defendida por cada governo, afetou significativamente o lugar do planejamento social em diferentes países. Por exemplo, o pensamento neoliberal de Margaret Thatcher27 e Ronald Reagan28 propagado desde a década de 80, e o pensamento da “nova Terceira Via” de Tony Blair29 e Bill Clinton30 do final dos anos

90, fizeram com que as questões sociais, como educação e saúde, perdessem espaço no planejamento governamental (CHAUÍ, 1999; HARVEY, 2008).

Isso ressalta novamente a dimensão política do processo de planejamento. As relações de interesse e poder que permeiam esse processo, influenciam não somente na inclusão, destaque ou exclusão de uma determinada questão ou atores do planejamento, mas também na definição do que se entende por planejamento e de suas finalidades. Contudo, quais seriam essas diferentes concepções?