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2.3 O TRABALHO E AUTONOMIA DOCENTE

2.3.2 ESPECIFICIDADES DO TRABALHO DOCENTE

O trabalho docente é influenciado tanto por elementos objetivos (por exemplo, as estrutura física de atuação e políticas salariais), quanto por subjetivos (formação e concepções do professor), afetando em seu sentido e significado48 (BASSO, 1998).

O conjunto de atividades realizadas pelo professor ultrapassa o mero desenvolvimento de aulas, incluindo a produção e desenvolvimento de atividades de recuperação, a construção e seleção de atividades pedagógicas, a supervisão de estágios, a tutoria e vigilância, o aconselhamento pedagógico, encontros com os pais e comunidades, a preparação das aulas e planejamento49, correção das atividades e avaliações, a realização de atividades de aperfeiçoamento, entre outras. O que se observa é uma característica elástica e invisível do trabalho docente, já que nem todas as atividades por eles desenvolvidas são

48 Segundo Basso (1998), a diferença entre os termos significado e sentido consiste no fato de o primeiro se referir

a finalidade de uma atividade que foi fixada socialmente e o segundo se referir à determinação individual da finalidade de uma atividade específica. Nesse contexto, um trabalho é alienado quando uma mesma atividade apresenta sentido e significado distintos.

49O planejamento docente é de grande importância, pois possibilita ao professor ter uma visão ampla de toda a

atividade elaborada. De curto, médio ou longo prazo é uma oportunidade para o professor concatenar seus conhecimentos sobre os alunos, atividades anteriores e posteriores, natureza da matéria ensinada, atividades de ensino, seus recursos disponíveis e as obrigações que ele tem a cumprir (TARDIF; LESSARD, 2014).

cumpridas dentro da escola ou do horário de trabalho, e pelo fato de muitas vezes os professores acabarem desempenhando outras tarefas para atender seus alunos (psicólogo, assistente social, entre outros) (OLIVEIRA, 2004; TARDIF; LESSARD, 2014).

Composto por elementos codificados (previsíveis e rotineiros) e não codificados (informais e imprevisíveis), o trabalho docente possui uma carga horária flexível, pois varia de acordo com: a dedicação dos professores; a presença de atividades de duração determinada e indeterminada; as diferentes exigências das disciplinas; os diferentes recursos materiais e humanos disponíveis; fatores sociais; o “objeto” de trabalho; os tipos de vínculos empregatícios; e as exigências burocráticas a se cumprir (TARDIF; LESSARD, 2014).

Sem um controle amplo sobre o objeto de seu trabalho, o trabalho docente é marcadamente múltiplo e público, não somente por trabalhar com um grande número de alunos ao mesmo tempo, mas também pela visibilidade das ações do professor perante sua turma. Nesta concepção, o trabalho desenvolvido pelos professores tem uma natureza claramente simbólica, imediata, rápida, imprevisível, e histórica50. Com forte cunho emocional, o trabalho docente

emprega a personalidade do professor como um instrumento de motivação dos alunos, podendo fazer uso de diversas tecnologias da interação, que envolvem a coerção, autoridade e persuasão (TARDIF; LESSARD, 2014).

Todavia, apesar de as características citadas anteriormente, a racionalização e a burocratização têm ocorrido no ambiente escolar. Em virtude da estrutura centralizada da rede escolar, os professores acabam por ocupar funções com baixo poder de decisão na hierarquia escolar.

Segundo Tardif51 e Lessard52 (2014), o trabalho docente tem uma estrutura celular, pois é realizado em salas de aula individualizadas (classes). Assim sendo, ocorre uma divisão do trabalho, pois os trabalhadores estão fisicamente separados desenvolvendo atividades simultâneas. Neste cenário, acabaria sendo atribuída aos professores apenas a gestão e “manutenção da ordem” na sala de aula, resultando em um trabalho solitário que pode ser visto tanto como uma responsabilidade, como também uma vulnerabilidade destes trabalhadores.

Em relação à inserção do trabalho docente no sistema de produção capitalista, a atividade de ensino realizada pelos professores não é um trabalho “trocado” diretamente por

50 O termo histórica se refere ao fato de um acontecimento ocorrido dentro de sala de aula afetar a forma como as

relações e fenômenos futuros serão encaminhados e interpretados pelos múltiplos sujeitos envolvidos na atividade educativa, bem como suas reações (TARDIF; LESSARD, 2014).

51 Maurice Tardif é um professor e pesquisador canadense da Universidade de Laval, em Quebec.

capital, mas por renda, sendo classificado como um trabalho improdutivo53 (BRAVERMAN, 2012). De acordo com Tardif e Lessard (2014), a profissão docente se enquadraria como uma atividade semiprofissional, pois quando se considera a profissão como um conjunto de trabalhadores que controla seu próprio campo de trabalho, o acesso ao mesmo através da formação, e que detém autoridade sobre a execução das atividades e do conhecimento contido nas mesmas, os professores acabariam por não contemplar plenamente essas categorias.

Embora no modo capitalista de produção o trabalho docente seja visto como secundário perante o trabalho material, seria justamente a atividade de ensino que produziria e reproduziria a força de trabalho para manter e desenvolver o sistema capitalista (TARDIF; LESSARD, 2014).

Desde o século XVI e XVII, a escola tem atuado como uma instituição social que submete os indivíduos a regras e a um sistema de punições, recompensas e vigilância. Apesar das modificações históricas ocorridas nos últimos quatro séculos, a estrutura da escola se manteve relativamente estável, com uma estrutura administrativa e burocrática cada vez mais forte.

Porém, por sua natureza interativa e reflexiva, o trabalho docente não segue a mesma lógica fabril, que conceberia os professores como meros funcionários escolares (TARDIF, 2014). Embora os professores raramente participem das decisões como a da seleção da cultura escolar e dos saberes necessários para a formação de sua própria profissão, eles possuem “liberdade” para a ação dentro da sala de aula – alto poder discricionário (TARDIF; LESSARD, 2014).

Segundo Tardif e Lessard (2014), o trabalho interativo, diferentemente do trabalho material (que trabalha com objetos físicos) e cognitivo (que resulta em uma produção simbólica), envolve principalmente questões de poder, valores, conflitos e emoções, pois “ensinar é trabalhar com seres humanos, sobre seres humanos, para seres humanos” (TARDIF; LESSARD, 2014, p.31).

Outro fator referente ao trabalho interativo dos docentes, é que os educandos se posicionam em relação ao trabalho docente enquanto ele acontece. Desta forma, a oposição e o consentimento inviabilizariam ou possibilitariam, respectivamente, a própria atividade. No

53 Segundo Kuenzer e Caldas (2009), o trabalho realizado pelos professores é não material, mas não

necessariamente improdutivo. Em relação a essa questão ele levanta a temática da rede de ensino privada, onde a prática educativa favorece o acúmulo de capital para o proprietário da escola ou rede de escolas. Nesta pesquisa destacamos o trabalho docente como improdutivo, pois nossa análise se aplica somente a rede pública de ensino.

ambiente escolar encontra-se um agravante: o fato de os alunos serem obrigados a frequentar a escola, aumentaria a ocorrência de resistências (TARDIF; LESSARD, 2014).

Diferentemente do trabalho material industrial, que é baseado em conhecimentos das ciências naturais e aplicadas, a ação docente é organizada de acordo com saberes compósitos e temporais que são específicos de sua profissão. Isso inclui: saberes disciplinares, provenientes dos diferentes campos do conhecimento; saberes curriculares, proveniente das instituições escolares e das normas que as regem; saberes profissionais, construídos pelas instituições de formação dos professores; e saberes experienciais, construídos durante a prática de trabalho (TARDIF, 2014).

Além disso, a escola é uma instituição “aberta para fora”, pois tanto os pais e associações, quanto especialistas interferem em seu funcionamento. Nessa perspectiva, o trabalho do professor se encontra inserido em um cenário de inúmeras divisões e subdivisões geradas/mantidas pelas políticas e programas oficiais (TARDIF; LESSARD, 2014).

Pressupondo que os professores interpretam essas normas segundo seus próprios objetivos e finalidades, emerge o questionamento sobre como as políticas/programas se relacionam com o trabalho do professor, mais especificamente, com sua autonomia. Todavia, antes de procedermos nesta discussão faz-se necessário estabelecer o que se concebe por autonomia docente.