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1. INTRODUÇÃO

1.4 Aproximação com o campo de pesquisa

Como foi visto, nas primeiras vezes em que estive no Poço da Draga, o fiz na condição de advogada, membro do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), órgão vinculado à Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Compus o Escritório entre 2011 a 2014, e o Poço da Draga era uma das localidades que eu acompanhava, razão pela qual me fiz presente em algumas reuniões desde 2011.

Durante os primeiros contatos, o meu diálogo se dava prioritariamente com duas mulheres, que eu identificava como as principais lideranças do lugar, Luzia e Cíntia. Posteriormente, vim a saber que Luzia não ocupava bem esse papel, ou pelo menos não mais. Quase sempre minha presença foi solicitada por uma ou pelas duas, em eventos relacionados à segurança da posse ou à regulamentação da Zona Especial de Interesse Social do Poço da Draga.

Devo ressaltar que de início o meu maior canal de comunicação era com Cíntia, considerada por muitos como a principal liderança do local, vez que compõe a presidência da ONG Velaumar, conforme discutido anteriormente. Estive presente em alguns dos aniversários do Poço da Draga antes de ingressar no doutorado em 2014. Conforme se verá no último capítulo, eles iniciaram a comemoração no ano de 2011 (105 anos), e a primeira vez que lá estive foi em 2013 (107 anos). Na ocasião, participei de apenas alguns dos momentos, mas lembro de ter ficado encantada com a visita guiada realizada por Cláudio. A centralidade da fala dos mais velhos também me chamou muito a atenção e desde então atentei para alguns fatos, como a centralidade do mar no discurso dos moradores.

2013 foi um ano bastante emblemático para as mobilizações no lugar e também para a minha aproximação ao campo. Cabe destacar que em âmbito nacional, 2013 foi um ano de grande efervescência política, o que certamente guardou alguma relação com os eventos locais. Tiveram grande destaque as “Jornadas de

Junho”, quando mobilizações de grande vulto ocorreram nas principais cidades do país. Estas foram chamadas por alguns estudiosos de “revoltas ambíguas” (PINHEIRO-MACHADO, 2018), considerada a pluralidade de atores envolvidos e a multiplicidade de pautas levantadas, não cabendo em simples caracterizações como de “direita” ou “esquerda”.

Certamente a confluência dos fatores de agitação política em nível regional e nacional impactaram de forma direta ou indireta o Poço da Draga naquele período. Em maio de 2013, no local houve a comemoração dos 107 anos e em junho visitou o local a relatora especial da ONU para o direito à moradia, Raquel Rolnik, o que foi muito importante para dar visibilidade ao Poço da Draga. Ainda em 2013, em 12 de julho foi realizado um acampamento chamado “Ocupe Acquario” nas proximidades da obra e do Pavilhão Atlântico, local de grande centralidade para os moradores. Nesse evento, durante 24h a área foi ocupada com atividades políticas, artísticas e culturais. Foi uma manifestação de moradores que contou com apoio de diversas pessoas e entidades, impulsionado pela ampla divulgação dada pelo movimento Quem Dera Ser um peixe (QDSP), surgido em 2012 e cujo foco eram as críticas e denúncias ao Acquario, objetivando a sua não-construção10.

Em todos esses eventos eu participei e já em 2013 tentei conversar com outros moradores para ir ampliando a rede de interconhecimento, pensando já na inserção necessária quando ingressasse no doutorado. Apesar das tentativas e dos diálogos iniciados com algumas pessoas, tais contatos não se aprofundaram.

No ano de 2014 participei do aniversário de 108 anos e presenciei quase todos os momentos da programação no final do mês de maio, mas passado o aniversário não houve outros grandes momentos de efervescência no Poço. Em 2015, porém, se deu algo muito diferente do que nos anos anteriores: uma série de atividades continuou acontecendo mesmo depois do mês da comemoração. A razão para tanto parece estar ligada ao nascimento e fortalecimento de um outro grupo, o ProPoço.

Passado o aniversário, esse pequeno grupo manteve-se no objetivo de promover eventos culturais e políticos no Poço, principalmente no espaço do Pavilhão

10O grupo contava com membros da classe média e de várias formações profissionais, com destaque

para os campos cultural e acadêmico, bem como alguns moradores do Poço da Draga (GONDIM, 2015; RODRIGUES, 2013).

Atlântico, para dar visibilidade às lutas do lugar. As primeiras reuniões do movimento ocorreram em junho de 2015, e fui convidada por Cláudio, em razão da proximidade que desenvolvemos durante o aniversário. Alguns outros “entusiastas do Poço” (termo dado por ele aos apoiadores externos) também foram convidados. As outras lideranças também foram chamadas, pois, segundo disseram, pretendiam somar os esforços dos grupos.

Observei que uma das antigas lideranças ficou acuada e receosa do que esse novo “movimento” significaria, principalmente nos momentos em que se falou da possível formalização do grupo, criando uma associação com CNPJ e todos os elementos necessários para a personalidade jurídica. Pareceu-me que o receio era de que, na hipótese de uma outra associação ou ONG se formalizar, houvesse uma descentralização da representativa política anterior. As consequências seriam, por exemplo, que para a realização das atividades comunitárias ou para eventos em que fosse necessário a representação da localidade, poderiam ser chamadas pessoas do antigo grupo, ou então do novo. Um outro conflito poderia ocorrer durante a eleição de representantes em conselhos públicos, vez que aumentaria a concorrência.

Presenciei alguns momentos de confronto ou de desentendimento dos grupos. Segundo um dos meus interlocutores principais, tal se deu porque alguns eventos estariam sendo pensados em conjunto e o outro grupo se antecipara e organizara sozinho, deixando-os de fora. Como exemplos, citou o réveillon no Poço da Draga em 2016, a Feira Massa (2016) e o Carnaval de 2016. Conforme relatou, para o carnaval estava sendo pensado o bloco “Cai no Poço”, ao que outra liderança se opusera, argumentando a negatividade da expressão (“Se cair no Poço, morre”). Depois dessa oposição, a ONG teria construído o bloco “Cai na Praça” em parceria com o Dragão do Mar, o que os membros do ProPoço consideraram uma espécie de antecipação e mesmo de traição, pois teriam sido excluídos da atividade.

Outros desgastes e falhas de comunicação já teriam ocorrido anteriormente, como em um desfile em outubro de 2015, o “Dragão das formas”, evento que contou com a participação dos dois grupos. Na ocasião, alguns detalhes foram deliberados no coletivo e posteriormente executados de forma diferente, por um ou por outro grupo, o que foi ficando cada vez mais explícito tanto para mim quanto para eles. Compreendo que estes equívocos ocorreram também pela divergência de visões sobre o que é ou não prioritário para o movimento e quais as estratégias mais adequadas para a realização das ações.

O ano de 2015 comprovou que os métodos dos grupos eram parcialmente diferentes: a ONG se mostrava mais vinculada às formas tradicionais de ação e de financiamento11, bem como de tipologia de eventos. Já o ProPoço dizia evitar o formato tradicional (que criticava de “assistencialista”), tecendo críticas a determinadas parcerias e, em suas ações, objetivando o retorno da utilização dos espaços importantes coletivamente, principalmente através de festas e eventos culturais. Por outro lado, para garantir a realização de alguns destes eventos, em certos momentos o movimento solicitou apoio financeiro de possíveis doadores que anteriormente já contribuíram com a ONG, a exemplo de empresários próximos do local, como o Pirata Bar. Dessa forma, percebi que nem sempre as estratégias eram tão divergentes assim.

Conforme avançava no trabalho de campo, meu contato que inicialmente era a ONG foi mudando para o ProPoço, que me demandava mais. Apesar disso, não me distanciei de Cíntia e fui convidada por ela algumas vezes para compor mesas e debates tanto no aniversário quanto em oficinas da ONG, a exemplo da já citada oficina de direitos da mulher e a respeito da Lei Maria da Penha, a que compareci. A parceria continuou sendo de duas vias, tanto com a ONG quanto com o ProPoço, porém em alguns momentos mais diretamente com um e, posteriormente, com o outro grupo.

No fim do ano de 2015 e no início de 2016, estive mais próxima do ProPoço. Com alguns membros do grupo, construí uma relação de amizade, e compreendo que contribuiu para isso o fato de que boa parte das reuniões ocorria em bares, na residência de um dos membros, bem próxima do Poço da Draga, ou eventualmente na casa dos demais. Nos primeiros meses praticamente toda semana eu era contatada, considerando que as reuniões eram praticamente quinzenais. Logo me foi perguntado se eu era ou não membro do grupo e tive que me colocar. Como membro, quase sempre minha função foi relatar reuniões e enviar e-mails, assim como divulgar os eventos organizados pelo grupo. Apesar disto, não fechei minhas portas com Cíntia, o que foi comprovado pelo fato de que ela permaneceu me convidando para os eventos e para as atividades promovidas apenas pela ONG.

Como as reuniões costumavam ser bastante informais, o ambiente favorecia uma conversa mais aberta, algumas vezes abandonando as pautas políticas

11 Através do apoio de sindicatos, indústrias e outros atores que eram considerados assistencialistas

e organizacionais. As conversas passavam a abordar a vida de algumas pessoas no Poço, problemas familiares entravam em jogo, e ao longo do tempo fui percebendo como o pessoal e o político se entrelaçam. As desconfianças entre os grupos muitas vezes são fundadas em disputas pelo domínio do lugar, mas também são importantes as intrigas, os conflitos anteriores e mágoas existentes entre os antecessores dos que hoje são as “lideranças”. Por outro lado, algumas vezes os assuntos eram tão pessoais, envolvendo problemas psicológicos, que me perguntava inclusive se deveria fazer menção a isso em meu diário de campo.

Em setembro de 2015 ocorreu um problema com relação a uma das atas que elaborei, pois enviei para os e-mails pessoais dos membros do movimento e uma delas publicou amplamente na rede social Facebook. Rapidamente os outros membros alertaram-nos e solicitaram a ela que excluísse a postagem, pois havia pautas que não poderiam ser publicadas, incluindo um grave questionamento à ONG. Na reunião seguinte, foi deliberado que nem tudo entraria nas atas e que, além disso, os membros teriam codinomes para que não pudessem ser identificados caso ocorresse algum equívoco dessa ordem. Essa deliberação, no entanto, só foi seguida por pouco tempo. Apesar disso, o fato demonstrou a preocupação com o sigilo das informações e a desconfiança para o que eles atribuíam como sendo “o outro lado”.

Além da atribuição de relatora, Cláudio foi me propondo outros envolvimentos e parcerias. Me informou que estava escrevendo um livro sobre sua vida no Poço da Draga e queria escrevê-lo junto comigo. Hesitei e disse que seria muito complicado, pois necessito de um certo distanciamento para realizar a pesquisa. Posteriormente, esse projeto de Cláudio ficou na lista das muitas atividades nas quais ele se envolvia, e não mais foi falado nisso. Desde outubro de 2015, Cláudio lançou como pauta de reunião a realização de um Censo do Poço da Draga, ou, como ele nomeou posteriormente, um “Levantamento etnográfico e iconográfico do Poço da Draga”, conforme será visto no quinto capítulo.

A aproximação com o ProPoço de certa forma fez com que eu não estivesse tão próxima da ONG Velaumar entre o final de 2015 e o início de 2016. Nesse período, percebi uma cobrança velada feita pelos próprios membros do ProPoço, como se o voto de confiança depositado em mim dependesse de que eu estivesse “do lado deles”. Apesar disso, sempre deixei claro que não poderia escolher lados, que estava pesquisando na localidade e era amiga de todos, razão pela qual não me afastaria de Cíntia e da ONG.

Por parte da ONG, conforme já pontuado, nunca fui barrada em evento algum ou senti qualquer receio das lideranças de lá em estar comigo. Inclusive em diversos momentos fui chamada para compor momentos da ONG, de forma bastante tranquila. A cobrança me parecia ser maior do ProPoço do que da Velaumar, mas acredito que consegui transitar bem em campo.

Apesar do traquejo necessário, o pesquisador não é neutro, ele interfere na realidade e em vários momentos é um ator que está também em disputa. Notei isso fortemente em setembro de 2015, quando eu estava mais próxima do ProPoço e era vista nos eventos por eles realizados - basicamente os sábados de “Poço do Som”, onde músicos eram convidados para tocar, atraindo públicos de dentro e de fora para o Pavilhão Atlântico. Também contribuí para a realização do evento “Para não dizer que não falei das flores”, em 07 de setembro de 2015, proposta do grupo para se contrapor ao nacionalismo muitas vezes irrefletido deste feriado. Na ocasião, foi organizado um sarau de poesias no Pavilhão Atlântico, ao pôr-do-sol.

No final do mês de setembro de 2015, houve uma audiência pública na Assembleia Legislativa para discutir as políticas culturais na Praia de Iracema. Como representante do Poço da Draga, Cíntia foi chamada (enquanto ONG Velaumar) e pediu a Cláudio para escrever um pequeno texto que ela leria. Ocorre que ela não conseguiu imprimir a tempo e me pediu para levar o texto, o que também me foi solicitado por Cláudio. Ele enfatizou: “tenta garantir que ela fale do ProPoço também”, porque, apesar de eles dialogarem, tratava-se de uma relação com tensões nítidas. Também nessa audiência, claramente me senti disputada pelos dois lados. Durante a audiência, ela leu o texto integralmente, falou do ProPoço e o movimento ficou bastante satisfeito – eles estavam assistindo pelo canal TV Assembleia. Ao final, ofereci carona para ela até o Poço, ocasião em que me contou várias histórias e eu pude novamente solicitar a monografia dela, na qual ela fala de estratégias de arte- educação no Poço da Draga.

Quando chegamos, ela saiu do carro e me convidou até a casa dela, para que ela me enviasse por e-mail todo o material que ela possui, incluindo fotos antigas, textos e matérias jornalísticas sobre o Poço. A oferta me causou surpresa, pois há vários meses eu solicitava e sempre obtinha alguma evasiva. Compreendi que se tratava ainda de certa disputa pelo meu interesse e pelo que a aproximação comigo pode proporcionar no futuro. Nessa noite, ela também andou comigo por boa parte do Poço, apresentando-me às pessoas.

Minha intenção, na verdade, foi não tomar partido de qualquer dos lados. Minha participação no ProPoço basicamente foi finalizada quando do censo ou levantamento no primeiro semestre de 2016, o que será analisado posteriormente. Após esse período, me voltei novamente para atividades tanto de um grupo quanto de outro, o que progressivamente me afastou do que poderia ser o grupo mais fechado do ProPoço. Além disso, este último passou por algumas dissidências internas e questões pessoais, principalmente o fato de que alguns deles foram morar em outras cidades e até em outro estado. Essas questões internas e externas enfraqueceram o grupo e o levaram quase ao encerramento em 2017, mas fiquei sabendo que desde o final de 2018 as amizades e os projetos estavam sendo retomados.