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Das possibilidades de transmissão e compartilhamento memorial

2. IDENTIDADE, TERRITORIALIDADE E MEMÓRIA

2.3 A respeito da memória

2.3.2 Das possibilidades de transmissão e compartilhamento memorial

Sendo a memória um atributo que existe dentro de cada indivíduo - ainda que possua natureza social, nos dizeres de Halbwachs -, como é possível falar de um compartilhamento memorial? Jöel Candau (2012) traz reflexões que podem solucionar o aparente enigma sobre a comunicação entre as memórias individuais.

Na verdade, cada pessoa possui suas próprias memórias, e Candau se pergunta sobre a existência do fenômeno denominado “memória coletiva”, sugerindo que o termo mais adequado é “memória compartilhada pelo grupo”, ou ainda “compartilhada por boa parte do grupo”, vez que não se pode supor que determinada memória seja homogênea.

Em sentido semelhante aos estudos de Halbwachs (2013), Nora (1993), Pollak (1992), Bosi (1994), Candau reafirma que há que se compreender a memória não como a reconstituição do passado, e sim a reconstrução do passado com os olhos do presente. Assim, é bastante comum o embelezamento das memórias, mesmo daquelas mais tristes:

Nossa memória acrescenta à lembrança o futuro dessa lembrança [...]. O tempo da lembrança é, portanto, inevitavelmente, diferente do tempo vivido [...] [isto pode] explicar os numerosos casos de embelezamento de lembranças desagradáveis que, ao serem relembradas, são aliviadas da angústia [...] (CANDAU, 2012, p. 66-67, grifos meus).

Candau se pergunta como passamos da memória individual, daquilo que o indivíduo recorda, para a memória coletiva. Seria possível falar que um grupo lembra? Como, se a memória é uma qualidade ou atributo das consciências individuais? Não seria um contrassenso afirmar que uma coletividade recorde? Ele afirma que a memória constitui um fenômeno extremamente complexo, que na verdade pode ser categorizado em três tipos diversos de memória. Na verdade, Candau esclarece que seriam três elementos que coexistem na memória de cada pessoa16.

Inicialmente, Candau (2012) nos apresenta o conceito de Protomemória ou memória de baixo nível (também analisada como memória-hábito). Trata-se da memória socialmente incorporada, inconsciente, que representa os hábitos, os comportamentos e atitudes que aprendemos a reproduzir socialmente, sem nem

16 Em seu livro, o autor explica se tratar de uma classificação didática para fins de compreensão das

refletir. Trata-se da mesma ideia abordada por Connerton (1993) sobre memória incorporada, conceito anteriormente analisado. A categoria de protomemória em Candau aproxima-se da noção de Hexis, um componente do Habitus descrito por Pierre Bourdieu (1989; 1997).

Além desta, o autor destaca a memória de alto nível, que corresponde às lembranças e aos acontecimentos que podem ser evocados pela memória. Trata-se da memória consciente, e é nessa acepção que quase sempre se fala de memória. Por fim, Candau (2012) fala da metamemória, que são as representações sobre a memória, é aquilo que se fala do que se lembra: são os discursos memoriais.

Novamente se destaca que são três atributos ou funções da memória e Candau (2012) faz questão de pontuar que não cabe falar em memória coletiva ou socialmente compartilhada no sentido da protomemória ou memória de alto nível. Isso porque as duas primeiras categorias são essencialmente individuais. A única capacidade da memória que é possível compartilhar é a metamemória, ou seja, as representações e os discursos memoriais. Neste sentido, é possível se falar de compartilhamento memorial, de “memória compartilhada”, ainda que o autor tenha certo dissabor quanto a essa nomenclatura. É a partir desse entendimento que a acalorada discussão sobre a transmissão da memória pode ser solucionada, no sentido de que a metamemória pode ser repassada, transmitida, compartilhada.

Importa ressaltar que para o autor “uma memória verdadeiramente compartilhada se constrói e reforça deliberadamente por triagens, acréscimos e eliminações feitas sobre as heranças” (CANDAU, 2012, p,47). O autor critica o termo “memória coletiva”, argumentando que o simples fato de haver a cristalização de alguns atos de memória do grupo ou mesmo a existência de alguns narradores que guardam a história do lugar não é o bastante para provar a realidade de uma memória coletiva. Neste sentido, para que houvesse “memória coletiva” seria preciso haver compartilhamento das representações do passado. O segundo argumento é que somente caberia usar o termo de forma rigorosa se “todos os membros do grupo fossem capazes de compartilhar integralmente um número determinado de representações relativos ao passado [...]” (CANDAU, 1992, p.31).

Neste sentido, caso todos guardassem um determinado rol de lembranças caberia falar em “memória pública” ou “comunidade de pensamento”. Não sendo assim, melhor falar de “certa memória comum” ou “memória compartilhada por boa

parte do grupo”. Apesar disto, Candau esclarece que é possível utilizar o termo “memória coletiva”, realizando as devidas ressalvas.

Candau afirma que toda memória é social, porém nem toda memória é coletiva (2012, p. 29). Alerta ainda que não se deve confundir a evocação com a memória propriamente dita. A memória é a lembrança, o fato que existe mentalmente armazenado, e a evocação é o ato de expressão que oraliza determinada memória. A evocação é a memória em discurso, tornada narrativa para que haja comunicação. Ademais, ainda sobre evocação, Candau esclarece que, mesmo que seja considerável o conjunto de lembranças compartilhado pelo grupo, sempre a sequência de evocação individual será particular, única. Isto se dá porque cada pessoa tem sua própria subjetividade e absorve as lembranças de forma especial, significando-as conforme suas emoções, suas percepções e sua trajetória de vida.

Criticando Halbwachs (2013), Candau afirmou que o necessário para que as memórias individuais se transformem em “memória coletiva” é a abertura daquelas umas às outras, visando objetivos em comum, possuindo um mesmo horizonte de ação. Segundo Candau (2012), Halbwachs acertou ao falar da importância dos quadros sociais para a construção das memórias, porém se equivocou ao considerar as memórias individuais meros pedaços ou fragmentos da memória coletiva. Para Candau, os quadros sociais possibilitam a memorização e a evocação ou o esquecimento (vez que é possível que os sujeitos se apoiem na memória uns dos outros). Neste sentido, a “memória coletiva ‘funciona como uma instância de regulação da lembrança individuais’ [...]. Nisso toda memória é social, mas não

necessariamente coletiva” (CANDAU, 2012, p.49, grifos meus).

Outra distinção conceitual importante trazida por Candau são as categorias de memórias fracas e memórias fortes. Quando o grupo é pequeno e a repetição das representações é significativa, é mais provável que as memórias sejam compartilhadas (Memória forte). Quanto mais o grupo repete, mais forte a memória é, de forma que é impossível ter uma memória forte se não se repete muito (CANDAU, 2012, p.39 e p.44). O autor enfatiza que as memórias fortes têm um caráter essencialmente organizador do grupo em questão, contribuem fornecendo significado e coesão. Nesse sentido, observa-se a relação entre a memória forte e a coesão do grupo, bem como a correlação entre os conceitos de solidariedade orgânica e coesão social de Émile Durkheim (2004). Já a memória fraca é difusa e superficial, com uma

natureza que não contribui para a organização (como as memórias fortes), e sim para a desorganização.

Percebe-se, assim, a importância da cristalização da memória para os grupos, para que haja um fortalecimento identitário. Destaca-se que a memória pode ser orquestrada para fins de identidade de um grupo ou de uma nação. Candau é peremptório ao afirmar que “a memória é, de fato, uma ‘força de identidade’. Igualmente, outros autores observam que as ideologias que prevalecem nas ‘memórias migrantes’ jogam com as fronteiras da alteridade para produzir, pela distinção, as identidades sociais” (CANDAU, 2012, p.17). Este esforço foi percebido durante a pesquisa de campo no Poço da Draga, em que diversos eventos foram observados e neles ficou nítida a intenção de fortalecer as memórias do grupo.

Há uma dialética intrínseca entre memória e identidade, sendo conceitos inter-relacionados: um atua na construção do outro. Além disto, afirma Candau que a memória tanto nos modela, quanto nós a modelamos, o que “resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa. Ao final, resta apenas o esquecimento” (CANDAU, 2012, p.16).

Candau vai mais longe e afirma que a memória é a identidade em ação:

A memória é a identidade em ação, mas ela pode, ao contrário, ameaçar, perturbar e mesmo arruinar o sentimento de identidade, tal como mostram os trabalhos sobre as lembranças de traumas e tragédias como, por exemplo, a anamnese de abusos sexuais na infância ou a memória do Holocausto. De fato, o jogo da memória que vem fundar a identidade é necessariamente feito de lembranças e esquecimentos: no domínio da ‘identidade étnica’, a completa assimilação dos indivíduos pode ser contestada pela sociedade que os acolhe, desde que o trabalho de esquecimento de suas origens não tenha se completado (CANDAU, 2012, p.18, grifos meus).

Neste sentido, a identidade necessita da memória para ser formada, nos mesmos termos descritos por Michael Pollak. A memória é geradora de identidade, e quanto mais fortes as memórias, mais sólidas as identidades, seja individuais ou não. Candau e Pollak afirmam que não há busca identitária sem busca memorial. Basta se pensar nas circunstâncias sociais, históricas e políticas que permitiram o imperialismo e a dominação econômica e cultural de algumas nações sobre outras. A nação e o grupo que subjuga realiza empreendimentos no sentido de desconstruir ou desconsiderar as memórias do grupo mais fraco e progressivamente enfraquecer a identidade daquele grupo ou povo, o que favorece a relação de dominação. Ao atacar

a memória, as perdas identitárias serão significativas, e a História da humanidade fartamente o demonstrou.

Candau lembra Pierre Nora (1993), quando este afirmou que identidade, memória e patrimônio são três elementos-chave da consciência contemporânea. Comentando esta questão, Candau aprofunda e diz que o patrimônio é, na verdade, uma das dimensões da memória. E reitera que a memória tem o papel precípuo de reforço identitário, nos níveis individual e coletivo. Neste sentido, nos casos de reconstituição da memória de pessoas desaparecidas em regimes de exceção, por exemplo, trata-se de devolver a identidade a ela e seus familiares.

Sobre os mecanismos de transmissão da memória coletiva ou, nos dizeres de Joel Candau, de transmissão de metamemória (as representações sociais da memória), pode-se pensar em uma série de estratégias utilizadas pelo grupo para impedir que as lembranças se dissipem. Cada pessoa tem suas próprias estratégias e suas próprias lembranças do grupo. Daí a importância de recontar e de promover encontros e narrativas de inculcação e inscrição memorial, através da oralidade. Conforme analisarei no último capítulo, os eventos do Poço da Draga possibilitavam que algumas determinadas memórias do grupo se fortalecessem, consistindo em memórias compartilhadas por boa parte do grupo. No entanto, não se deve esquecer que cada indivíduo lembrará sempre com suas particularidades, conforme se disse, o que é explicado através dos esforços de totalização existencial.

A relação entre as memórias e as identidades é descrita por Candau como um “tecido memorial coletivo”, que tem por responsabilidade alimentar o sentimento de identidade (2012). Trata-se de um ato de memória que corresponde a uma totalização existencial, onde justamente entram em cena as memórias organizadoras de cada grupo. Em sentido inverso, se houver a diluição de objetivos e se os projetos se tornarem fracos, diminui a possibilidade de aparição e fortalecimento das memórias, o que acarreta o enfraquecimento da identidade. Dessa forma, “a ilusão do compartilhamento se esvanece, o que contribui para um desencantamento geral” (CANDAU, 2012, p. 77-78).

Candau conceitua a memória como “menos uma memória profunda do que a percepção de um passado sem dimensão, imemorial em que se tocam e por vezes se confundem acontecimentos pertencentes tanto aos tempos antigos quanto aos períodos mais recentes” (CANDAU, 2012, p. 86). O autor afirma, nesse sentido, que

através do fortalecimento memorial o grupo pode organizar de maneira mais estável a representação que faz de si mesmo, sua história e seu destino.

Assim, para Candau (2012), a forma do grupo garantir a transmissão das memórias é a construção de oportunidades coletivas de repetição, em que a história do grupo seja permanentemente recontada. No caso de grupos pequenos, assim como o caso do Poço da Draga, ora estudada, pode-se citar a existência de vários momentos relevantes em que ocorre esse “repasse memorial” - que é também, sempre, uma reconstrução presente do que foi vivenciado ou experienciado no passado.

Posso citar a criação de momentos rituais em que as histórias são recontadas (CONNERTON, 1993), os vínculos sociais são fortalecidos no caso do Poço, sendo estes eventos o maior exemplo de como os moradores mais engajados compreendem a relação entre as categorias discutidas neste trabalho. Em específico sobre as estratégias de transmissão memorial do Poço da Draga, abordarei no último capítulo.

A partir dos autores estudados, compreendo que memória e identidade são fenômenos complementares. Da mesma forma, foi visto como o território guarda relações com a identidade e com a memória. No caso do Poço da Draga, veremos no sexto capítulo o quanto ambas as noções estão relacionadas a este território.

Antes, porém, importa compreender a realidade espacial de Fortaleza, destacando os processos de segregação socioespacial que deram origem às favelas, fenômenos diretamente ligados ao surgimento do Poço do Draga exatamente na Praia de Iracema, conforme se verá.