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1. INTRODUÇÃO

1.3 Principais interlocutores: breve apresentação

1.3.1 Os moradores

Na trajetória da pesquisa, contar com a ajuda de interlocutores que são moradores foi essencial, tanto para ouvir suas histórias e compreender seu ponto de vista sobre a localidade, quanto porque eles me apresentaram uns aos outros. Destaco que alguns deles se tornaram amigos e as relações permaneceram após a pesquisa. Para que fique mais clara a perspectiva de cada interlocutor, é importante que se fale um pouco de cada um deles.

Por questões éticas e de proteção aos entrevistados, para evitar quaisquer represálias contra eles, optei por atribuir nomes fictícios a todos os moradores, o que ocorrerá ao longo de todo o trabalho. Faço exceção apenas quanto a três moradores, pois trago à análise curtas-metragens e reportagens de divulgação pública em que eles aparecem, não sendo possível nestes casos o anonimato

Cláudio nasceu no Poço, tem cerca de 40 anos, é formado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará e professor particular de francês. De sua família, faz parte da primeira geração que nasceu no Poço, vez que sua mãe é natural de Itarema e chegou em Fortaleza nos anos 1970. Trabalha como técnico em um órgão público estadual e mora com a mãe e o sobrinho. É um dos membros fundadores do movimento ProPoço, sendo um dos principais idealizadores do censo comunitário sobre o Poço em parceria com a Universidade de Fortaleza (UNIFOR), do qual falarei no quinto capítulo.

Destaca-se que parte considerável das atividades coletivas que ocorrem no Poço contam com sua participação. Possui natureza extrovertida, anda pelas ruas e vielas falando com quase todas as pessoas, sorrindo e perguntando pela família. É Cláudio que realiza as visitas guiadas7, tanto é que só presenciei uma visita organizada por outro morador, neto de uma senhora identificada como antiga liderança. Cláudio também é conhecido por ser bastante ativo, sempre envolvido em

muitas tarefas. Mora na rua principal do Poço, a Viaduto Moreira da Rocha, em uma casa comprida, na qual se orgulha de ainda ter um quintal com árvores antigas, as remanescentes da área alagada do Pocinho. Cláudio é autodidata e desde criança é um leitor ávido, frequentou por muitos anos a Biblioteca Pública Menezes Pimentel, bastante próxima do Poço, e em entrevista lamentou o fato de estar fechada há vários anos pelo governo.

Ao longo da pesquisa, Cláudio foi muito mais do que um interlocutor, muitas vezes atuando como um verdadeiro Doc8 para Foote Whyte (WHYTE, 2005). Ele me propôs temas, apresentou pessoas, conversamos sobre vários assuntos, além de ter muitas vezes elaborado mapas, slides, seja para apresentação ou eventos ou mesmo simplesmente para me presentear, por saber o que eu pesquisava. Trata-se de um pensamento nativo, mas de natureza sui generis, podendo ser chamado até de teoria nativa, tamanha sua relevância na indicação de assuntos. Cláudio muitas vezes me fez ter insights que talvez fossem bem mais distantes para mim, demonstrando generosidade e parceria, ao ponto de sugerir escrevermos um livro da história do Poço da Draga.

Cíntia também nasceu no Poço, é pedagoga e arte-educadora formada pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e tem por volta de 50 anos. Cursou alguns semestres de Direito, mas não chegou a concluir, e atualmente é estudante do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC). Também mora na rua principal, em uma casa próxima da de Cláudio, onde além de sua residência funciona a sede da ONG local, a Velaumar. Amélia, sua mãe, foi uma das principais lideranças do Poço e, ao falecer em 2011, deixou como legado para ela e sua irmã Bruna a ONG, fundada em 2003. Apesar de a presidente da ONG ser sua irmã, Cíntia é reconhecida por parte das famílias como sucessora de sua mãe, no papel de líder comunitária. Trata-se de uma família respeitada na localidade.

Cíntia trabalha no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC) como diretora de ação cultural e está no órgão desde sua inauguração em 1998, ingressando como estagiária. É responsável por boa parte das atividades que ocorrem na localidade, sendo uma espécie de gestora dos projetos sociais que se interessam

8 Neste estudo de William Foote Whyte (2005), foi fundamental a participação de um interlocutor, Doc,

que lhe abriu todas as portas e até compartilhou com o pesquisador sua análise sobre o campo. Posteriormente, houve uma grande polêmica envolvendo a publicação do estudo, pois Doc reivindicou parte da autoria do trabalho. Abstraída essa questão, a forte relação entre pesquisador e os sujeitos da pesquisa foi emblemática neste estudo e influenciou vários outros que se seguiram.

em contribuir com os moradores. É ela que gere o uso do espaço do Pavilhão Atlântico, atualmente vinculado à Secretaria de Turismo de Fortaleza.

Kléber igualmente vem de uma família respeitada no Poço, por se tratar de uma das mais antigas a chegar e por ter forte relação com a vizinhança. Ele tem 38 anos e é filho de Antônio, que é muito conhecido na área e tem longa tradição na pesca. De sua família, seu avô foi o primeiro a chegar quando tinha 11 anos, estando hoje com mais de 85 – portanto, a família está há sete décadas no Poço. Seu pai e seus tios todos nasceram na localidade, assim como ele, seus irmãos e agora seus filhos.

Kléber estudou artes visuais e cinema e trabalha nessa área, sendo autor de curtas e documentários sobre o Poço da Draga. Diferentemente dos primeiros, Kléber não mora na rua principal, porém a casa de sua família é uma das maiores da localidade, com área externa e quintal. Já foi responsável pelo jornal comunitário, que ele idealizou e escreveu durante alguns anos com apoio de algumas pessoas. Tem o sonho de montar a rádio comunitária do Poço e não gosta do formato tradicional de liderança. Afirma haver centralidade nas políticas públicas e favorecimento de algumas famílias, costumando reforçar que o Poço é dividido e fragmentado.

Luciana nasceu na Praia de Iracema, tem cerca de 35 anos, é professora da rede estadual formada em Letras Inglês pela Universidade Federal do Ceará. Morou em um casebre na Ponte Metálica com o pai até 2013, ocasião em que, já concursada, saiu de casa e do Poço, indo morar em uma avenida próxima à localidade. É uma das fundadoras do movimento ProPoço. Possui uma relação forte com o Poço da Draga, considerando-se ex-moradora, porém relatou em entrevista que durante boa parte da infância e adolescência sentia que era tratada como alguém de fora, no sentido de que “Poço é Poço, e Ponte é Ponte” (Luciana, em entrevista em 01/10/2016). Sua madrinha e alguns familiares chegaram a ser removidos do Poço da Draga por conta da expansão da Indústria Naval e das enchentes.

Dona Joana tem por volta de 80 anos, é madrinha de Luciana e morava no Poço da Draga no Beco do Macaqueiro (também conhecido como Beco do Estaleiro), sendo de lá expulsa na década de 1980 pela força das marés e também por um grupo empresarial vizinho ao Poço da Draga, a Indústria Naval do Ceará S.A. (INACE), de que falarei adiante. Após sair do Poço, Dona Joana foi morar na Barra do Ceará, onde tive a oportunidade de entrevistá-la e ouvi-la sobre o Poço da Draga do passado.

Dona Lídia tem mais de 70 anos, veio na década de 1970 de Sobral para Fortaleza para morar e trabalhar com as Irmãs Josefinas, as “Irmãzinhas”, um grupo de religiosas que morou e desenvolveu atividades religiosas e sociais no Poço da Draga entre 1970 e 1990. Dada à importância dessas freiras, serão muitas as menções a elas ao longo do trabalho, porém a análise sobre o impacto da sua presença e mesmo de sua ausência serão discutidos no último capítulo.

Dona Lídia não seguiu o caminho religioso, mas permaneceu no Poço da Draga mesmo após a saída das irmãs na década de 1990, ocasião em que passou a morar no local onde elas ensinavam, no Pavilhão, também chamado pelos moradores simplesmente de “Irmãzinhas”. Ela ficou neste prédio muitos anos, mesmo enquanto parte dele funcionava como posto de saúde, porém a Prefeitura em 2009 requisitou o prédio e, após muita negociação, Dona Lídia cedeu e ganhou uma casa na rua principal do Poço.

Antônio tem cerca de 50 anos, é professor de educação física. Não nasceu no Poço da Draga, mas trabalha com jovens do local e da Praia de Iracema há muitos anos, e por volta de 2008 foi com a família morar na localidade, onde reside até hoje. É o fundador e responsável pelo projeto Atitude Atleta, que realiza o treinamento de cerca de 30 crianças e adolescentes nas modalidades que compõem o triatlo: corrida, natação e bicicleta. No projeto, há membros de oito até 25 anos, que realizam treinos diários sob a supervisão do professor, nas proximidades da Ponte Metálica e da Ponte dos Ingleses. Sob sua orientação, vários alunos já foram vencedores em provas regionais e nacionais, razão pela qual o professor goza de muito reconhecimento e prestígio, por conta da gratidão das famílias e do fato de que os jovens do projeto não se interessam por atividades ilícitas.

Júlio tem cerca de 50 anos, nasceu na Praia de Iracema, mora na Vila dos Correios com sua mãe, território que é considerado por boa parte dos moradores como parte do Poço. Trabalha atualmente como educador no Museu do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. É uma pessoa comunicativa, extrovertida, bastante aglutinadora. Durante a realização do censo do Poço, Júlio foi uma pessoa importante porque ajudou no diálogo com as famílias, explicando sobre a pesquisa e ainda no preenchimento dos questionários.

Todos eles se recusam a serem chamados de lideranças, mesmo Cíntia sendo responsável pela ONG que articula os projetos sociais, como se tal nomenclatura fosse portadora de um estigma.