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Resultados do censo: “Um olhar sobre o Poço”

5. O “CENSO” E O SENSO NA BUSCA DO RETRATO DE UM LUGAR: FALSOS

5.7 Resultados do censo: “Um olhar sobre o Poço”

Com relação à pesquisa, observei de forma marcante durante a coleta de dados que, por um lado, o lugar de moradia configura-se como um território, no sentido em que é objeto de disputas pelo controle político e socioeconômico (RAFFESTIN, 1993). Por outro lado, é um espaço carregado de simbolismo e mediador de relações de sociabilidade, que implicam o fazer e refazer de fronteiras e microterritórios.

É importante analisar ainda os dados produzidos pela pesquisa, posteriormente intitulada “Um olhar sobre o Poço”. Antes, porém, cabe lembrar que, segundo nosso conhecimento, os últimos dados oficiais produzidos sobre o Poço foram apresentados em relatório de 2013 pela a Prefeitura Municipal de Fortaleza através da Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor). Neste foram encontrados 354 imóveis, sendo 33 considerados comerciais, representando 9% do total, incluindo mercadinhos, lanchonetes e mercearias (FORTALEZA, 2013). À época, a maioria dos imóveis era residencial, 87% e 4% eram mistos.

A importância do comércio permanecia destacada na fala dos moradores e bem visível quando das visitas guiadas, realizadas durante as comemorações dos aniversários. O relatório da Habitafor (FORTALEZA, 2013) concluiu que mais de 60% das famílias nasceram e cresceram no local, sendo descendentes dos primeiros pescadores e portuários que ali se estabeleceram, conforme se discutirá adiante. Dado semelhante foi encontrado no Censo do Poço em 2016, conforme se verá.

Especificamente sobre a titularidade dos imóveis, o diagnóstico de 2013 apontava que 92% das casas se encontravam em “situação irregular”, bem como assumiam essa irregularidade, totalizando 261 casas nesta condição. Tal situação dizia respeito ao fato da maioria das casas se encontrar em terreno de marinha, pertencente ao Serviço de Patrimônio da União, algumas com e outras sem permissão53, conforme visto no segundo capítulo. Ainda no quesito titularidade, 2% dos entrevistados afirmaram ter a casa em situação regular, e 6% não informaram. Neste levantamento, a Prefeitura aponta que 14% das casas eram alugadas, havendo ainda parte das casas que era cedida por familiares ou por amigos.

Já na pesquisa “Um olhar sobre o Poço” (2016), havia um item no questionário que indagava qual o ano de chegada do morador mais antigo, objetivando compreender o tempo de permanência no Poço. Com a tabulação dos mais de 350 questionários, chegou-se ao significativo dado de que 57% das famílias residiam de 50 a 70 anos no local e outros 30% lá residiam entre 30 a 50 anos. Esse dado comprova o que a maior parte dos moradores afirmou em entrevista ou conversas informais, de que a maioria era de residentes muito antigos, sendo as novas famílias uma minoria.

Outro dado que surpreendeu inclusive os moradores que participaram da pesquisa foi a tipologia das casas, sendo 88% delas de alvenaria com reboco e 8% de alvenaria sem reboco. Ou seja, apenas 4% das casas tem tipologia mista, de alvenaria e madeira. As unidades de taipa ou madeira praticamente inexistem no Poço da Draga hoje, realidade impensável há 35 anos atrás.

Um quesito que gerava sempre divergências entre poder público e moradores e mesmo entre eles internamente era o número de habitantes. Quase

53 Conforme foi visto, boa parte do Poço encontra-se em terreno de marinha, sendo gerida pela SPU.

Alguns moradores possuem o Registro Imobiliário Patrimonial (RIP), que concerne em um documento fornecido pela SPU no sentido da permissão de moradia no local. Se por um lado o RIP traz o benefício de uma formalização ainda que mínima, por outra vincula ao pagamento de aforamento, a menos que periodicamente os moradores solicitem isenção.

todos os dados oficiais falavam de algo em torno de mil habitantes, ao passo que Cíntia, uma das principais lideranças reivindicava o número de 2.300. Ao final dos questionários, chegou-se a um número próximo a 1.600, distribuídos em 373 famílias (ROCHA, 2018).

Com relação à origem dos moradores não nascidos no Poço da Draga, a pesquisa obteve o dado de que eles vieram de 42 municípios cearenses, sendo a maior parte de Camocim, Aracati e Beberibe. Trata-se de um dado interessante, pois estas também são cidades marítimas, com forte atividade pesqueira e tradição portuária, o que sugere a possibilidade que muitas das famílias podem ter escolhido o Poço da Draga por estar próximo do mar. Rocha (2018) levanta a hipótese de que muitos já eram trabalhadores portuários em suas cidades de origem.

A centralidade do mar na vida dos moradores se relaciona a muitos fatores, não apenas a proximidade da orla, mas à questão do surgimento da localidade em função da Ponte Velha e do porto de Fortaleza, considerando-se que muitas famílias terem chegado possivelmente para trabalhar na pesca e no porto, seja direta ou indiretamente (com serviços, alimentação, dentre outros). O mar chegava a ser afirmado pelos moradores, muitas vezes, como uma extensão do território da localidade: o mar era também seu local, conforme se verá no último capítulo. Compreendo que o apego ao mar também guardava razões históricas, vez que muitos vieram de outras cidades igualmente portuárias, como se disse.

Quanto à renda dos moradores, este foi um tema bem sensível, mas tivemos acesso. 53% das famílias disse se enquadrar entre 1,5 e 3 salários mínimos, o que foi recorrentemente afirmado por Cláudio, acreditando se contrapor aos dados oficiais atribuindo pobreza e vulnerabilidade ao local: 33% de 1,5 a 2 salários; 20% de 2,5 a 3. O censo apontou ainda que 39% dos entrevistados afirmaram ter renda entre 0,5 e 1 salário mínimo. 5% afirmaram ter renda de 3,5 a 4 salários, e 3% acima de 4 salários.

É preciso considerar que ainda é alto o percentual de residentes a perceber baixa remuneração (0 a 1,5 salários), totalizando 39% conforme a Figura 21. Quase 40% se encontram em uma faixa sensível e que necessita de maior atenção do Poder Público. Em contraponto, a existência de 53% moradores ganhando entre 1,5 e 3 salários e ainda dos que percebem cerca de 4 salários demonstra as disparidades socioeconômicas internas que resultam em distâncias morais e sociais, anteriormente discutidas.

No que tange ao material das casas, outro dado interessante: 89% correspondiam a casas de alvenaria com reboco; 8% das casas, alvenaria sem reboco e 3% das casas, materiais mistos. Segue a Figura 21:

Figura 13 – Mapa da renda dos moradores

Figura 22 – Mapa da tipologia construtiva das casas

Já quanto a etnia, 58,8% se reconheceram pardos, 26,2% negros e 15% brancos. Sobre a intenção de permanecer no Poço da Draga, 94% afirmaram querer continuar e 6% manifestaram desejo de sair. A respeito da situação de residência, 85% reivindicaram-se proprietários e 15%, inquilinos (sobre isto, ver nota de rodapé 68 sobre o Registro Imobiliário Patrimonial – RIP, no Serviço de Patrimônio da União).

No questionário havia ainda perguntas de difícil compreensão para os moradores, sendo necessário que o aplicador explicasse a questão. A principal delas foi: “Você acha que o Poço da Draga perderia sua identidade sem acesso à Praia?”. Em boa parte das ocasiões em que estive presente nas aplicações, as pessoas ficavam bastante em dúvida nesta questão. Após a explicação, 87% responderam que sim, 8% responderam que não e 5% eram indiferentes. Foi indagado ainda se os moradores possuíam relação com a praia, pergunta essa que também gerou ambiguidade, ao que 77% responderam que guardam alguma relação e 23%, não.

5.8 Apresentação dos dados do censo: linguagem acadêmica, linguagem popular

Desde o início das preparações, a ideia era tentar concluir a coleta de dados até o aniversário da localidade em 2016, em que seria apresentada pelo menos uma sistematização simples dos dados. No entanto, tal não foi possível, realizando- se na data prevista apenas uma versão parcial dos dados coletados54. Essa primeira apresentação na localidade ocorreu no aniversário de 110 anos em 2016, sendo uma exibição preliminar dos dados em 28/05/2016 no Pavilhão. Posteriormente, estava combinada uma exposição na rua Viaduto Moreira da Rocha. O intuito foi mostrar aos moradores os dados, em uma espécie de apresentação de “quem somos nós”, nos termos dos organizadores. O momento foi assim apresentado na programação: “Encontro 110, Um Olhar sobre o Poço”.

A apresentação interna, que sempre foi o principal objetivo, precisou ser adaptada à linguagem acessível, e para tanto foram utilizadas apenas os gráficos, e não os complexos mapas elaborados no ArcGis. A fala para o público também precisou de mediação, o que Cláudio tentou fazer, porém não foi fácil, pois ele mesmo é intelectual e possui uma fala rápida e hermética, apesar de morador. O ideal

54 Posteriormente, no mês de junho de 2016 se seguiram mais dias de aplicação nas unidades

pensado para a pesquisa foi que ela pudesse ser apresentada para os dois públicos, na área - e mesmo em outras localidades - e para os setores acadêmicos, intelectuais.

Antes da exposição dos gráficos, foram exibidos dois documentários produzidos sobre o Poço da Draga, um sobre os antigos times de futebol da localidade e outro feito pelo próprio Cláudio, a respeito das brincadeiras antigas do tempo de criança.

A reação dos participantes já durante os documentários foi notável, com os idosos rindo e contando histórias e as crianças curiosas para ver quem aparecia em cada filme. Quando Cláudio mostrou os gráficos explicando o que cada informação queria dizer, também houve interação do público, mas menor do que com os filmes, acredito que por conta da linguagem ser menos acessível. No entanto, Cláudio se esforçou para demonstrar o quanto os dados eram interessantes e importantes, exibindo a história do lugar, falando sobre sua origem e sobre quem eles eram. Nesse sentido, os idosos pareceram se interessar mais.

Estive presente nesse momento e verifiquei que o público não atingiu as expectativas dos organizadores, porém isto foi algo que ocorreu sistematicamente nos últimos anos: algumas atividades do aniversário têm poucas pessoas, ou mesmo os eventos são esvaziados. Nessa primeira exposição, cerca de 20 pessoas se fizeram presentes, mas muitas eram de fora, assim como eu. Já na segunda exposição, na rua Viaduto Moreira da Rocha, percebi que o público quase dobrou.

No campo acadêmico, Cláudio em 2016 apresentou uma síntese dos dados na Universidade Federal do Ceará (UFC), em uma ocasião no curso de Arquitetura e em outra no curso de Ciências Sociais. Posteriormente, como foi dito, ele e Luciana foram ao Rio de Janeiro apresentar o artigo em parceria com os alunos de arquitetura, consistindo na terceira apresentação em meio acadêmico. No Rio, contudo, quem apresentou a pesquisa não foi Cláudio e sim uma das alunas. Acredito que isso se deu por duas razões: uma porque o artigo foi mais ideia da professora Amíria e dos alunos do que dele, sendo que ele contribuiu. E outra, porque ele fez várias críticas ao evento e afirmou em entrevista ter se sentido desconfortável em vários momentos com o excesso do uso do termo “favela”, categoria de que ele se ressente fortemente.

Se vocês lidassem com eles [moradores] cotidianamente vocês iam saber o significado dos verbetes ou das expressões favela ou a alcunhazinha comunidade, vocês iam se deparar com a postura deles diante disso que é de duas mãos: diminui e também enaltece. Então, via muito aquela reprodução no evento, direto, direto: “favela, favela, favela...”. Quando é que

isso vai parar, meu Deus?! Findar esse aparato de classificação que eu humildemente acredito que é irresponsável, quando não tendencioso (Cláudio, 11/08/2017).

Dessa forma, pôde-se ver que Cláudio facilmente transitava na Universidade, por ser graduado e não temer as formalidades das instituições. Em várias circunstâncias ele ainda frequentava espaços acadêmicos como ouvinte ou como palestrante, tal qual ocorreu na UFC em 2016. Da mesma forma, Luciana também é graduada e recentemente foi aprovada para ingresso em mestrado em 2019.

Isto demonstra que é claramente possível o diálogo do erudito e do popular, como se deu no caso do Censo do Poço. Da mesma forma, Cláudio foi convidado a escrever um artigo sobre a pesquisa para a Revista Dragão do Mar (ROCHA, 2018), publicação cearense que conta com a participação de intelectuais entre acadêmicos e artistas, tendo, portanto, reconhecida sua voz e sua legitimidade. Trata-se claramente de um sujeito híbrido, que caminha e existe/resiste nos dois campos e que se orgulha da própria ambiguidade.

Apesar disto, nem sempre o erudito e a Universidade estão abertos para o popular, pois as distâncias e as estigmatizações (sejam propositais ou não) podem ocorrer mesmo em um evento misto, cuja natureza se propõe múltipla e as mesas e palestras são compostas tanto por acadêmicos quanto por moradores e membros de ONGs, como foi o evento no Rio de Janeiro. Conclui-se, desta forma, que o erudito e o popular são linguagens diferentes, que ocupam diversos níveis, mas não impossíveis de se aproximarem, sendo o Censo do Poço da Draga um exemplo emblemático para se estudar e compreender.

Finalizando a discussão sobre o levantamento, parto para o próximo e último capítulo, em que farei a análise dos dados de campo em cotejo com a discussão teórica até aqui apresentada.