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O censo e sua hibridez: a meio do caminho entre o erudito e o popular

5. O “CENSO” E O SENSO NA BUSCA DO RETRATO DE UM LUGAR: FALSOS

5.4 O censo e sua hibridez: a meio do caminho entre o erudito e o popular

Compreendo o Censo do Poço da Draga como um instrumento híbrido entre a cultura erudita e a cultura popular (BURKE, 2010), no sentido de que possui elementos de ambos os universos. Aqui, parto do conceito de “culturas híbridas” de Canclini (2003), por compreender que na contemporaneidade o tradicional e o moderno mesclam-se em variadas combinações, bem como os conceitos de “culto”, “massivo” ou “popular”, o que a análise do Censo também demonstrará.

A respeito dos elementos eruditos ou intelectuais contidos no Censo, os seus idealizadores desde o princípio buscaram conferir-lhe legitimidade técnica, o que supostamente garantiria a validação da análise. Este requisito era importante porque sem isso de nada teria valido para eles o esforço técnico e político de quase seis meses de trabalho na coleta e análise dos dados. A legitimidade técnica seria obtida através do cumprimento de aspectos formais e acadêmicos, por isso se aliaram a uma professora e seu grupo de alunos e, de certa forma, comigo também. Além da participação universitária, o uso de metodologia avançada como os mapas, o programa ArcGis e outros também aumentariam o grau de formalização da pesquisa. Cláudio é geógrafo e pesquisou sobre os requisitos e os procedimentos da pesquisa censitária, mas posteriormente ele e o grupo avaliaram que o produzido não

foi exatamente um censo no sentido oficial, vez que o número de informações coletadas não foi tão extenso quanto o seria no Censo do IBGE. O termo utilizado pelos envolvidos variava, ora o instrumento era chamado de “levantamento”, ora de “Censo”, o que demonstrava que a caracterização não era tão clara para eles. Para fins deste trabalho, tenho considerado o instrumental como um censo popular ou comunitário.

Dois fatos complementares atestam a hibridez do instrumento escolhido: a) a formulação do Censo por moradores, de um lado, e pela Universidade, do outro, ainda que os moradores tenham iniciado e provocado a instituição; b) as equipes de aplicação eram compostas necessariamente no formato híbrido, contando com membros do Poço da Draga e da instituição.

As linguagens se mesclaram, tanto a popular quanto a erudita. No decorrer de pelo menos 12 finais de semana as ruas e vielas foram percorridas por esses grupos de três pessoas ou, excepcionalmente, duas. As reações dos moradores variavam, mas quase todos receberam bem as equipes. Entendo que certamente a presença do morador influía no sentido de abrir portas e garantir o mínimo de confiabilidade aos envolvidos.

Cabe destacar ainda que a hibridez ocorreu antes, durante e após a coleta de dados. Antes das idas a campo, o Censo foi pensado coletivamente entre o movimento (campo popular) e membros da Universidade (campo acadêmico e erudito). Apesar da ideia ter partido de moradores, logo nas primeiras reuniões foi exposto que a elaboração seria conjunta e que a Universidade tinha muito a contribuir, como de fato aconteceu. As fichas dos questionários foram elaboradas em parceria, assim como a escolha do método de análise e todos os programas a serem utilizados. O diálogo e a hibridação nesse momento foram nítidos. Posteriormente, durante as aplicações, algumas pequenas modificações foram feitas às perguntas, algumas sugestões dadas por um lado ou por outro foram agregadas. Um exemplo foi a percepção de uma importante ausência no questionário, a ocupação profissional do chefe da família, que foi incluída no quarto sábado de aplicação. Por fim, após a coleta dos dados, o trabalho misto continuou, vez que os alunos escreveram em conjunto com os moradores um artigo acadêmico apresentado no II UrbFavelas, já mencionado. Ou seja, mais uma vez o erudito e o popular se encontraram.

A característica de hibridez do instrumento é justamente essa: por um lado, os organizadores afirmavam sua legitimidade técnico-formal (cultura erudita e

acadêmica), por outro esforçavam-se por demonstrar sua legitimidade popular e política, enquanto expressão de cultura popular porque foi uma produção comunitária, instrumento de resistência política e que afirmava sua fidedignidade por essa natureza. Também híbrida era a pessoa que idealizou o censo, Cláudio, vez que se tratava de um morador que é também intelectual, técnico (geógrafo) e que se comportava como um morador-pesquisador.

Ele atuava muitas vezes como um pesquisador de seu próprio lugar e até de si mesmo, tendo uma postura bastante reflexiva e de relativa autocrítica. Ele buscava mapear os diferentes mundos sociais, os grupos, os territórios, principalmente durante as visitas que eram por ele guiadas. Sempre notei um fato curioso: em diversos momentos ele falava dos moradores na terceira pessoa do plural, referindo-se a “eles”, dizendo: “eles vivem dessa forma” ou “a história deles é essa”. Por outro lado, a primeira pessoa do plural também aparecia, ao se referir a “nós”, ocorrendo então a alternância de sujeitos. Além disso, inicialmente ele atribuiu ao censo o nome de “Levantamento Etnográfico e Iconográfico do Poço da Draga”, demonstrando o interesse de ser pesquisador de sua própria complexidade. Chegou a propor artigos e livros a serem escritos em conjunto comigo e outros sujeitos, com o objetivo de contar a real história do lugar.

Segundo Gilberto Velho, nos dizeres de Karina Kuschnir:

O indivíduo pode ser até o antropólogo pesquisando em sua própria sociedade. Ele pode observar o familiar, pois mesmo naquilo que é mais próximo há o heterogêneo, o outro, o desconhecido. Nesse sentido, todo indivíduo atua, em muitos momentos da sua vida, como antropólogo, mapeando os diferentes mundos sociais, as alteridades que inevitavelmente encontra em seu cotidiano, ou, ao contrário, abrindo o aparentemente fechado, ou estranhando o que lhe é apresentado como conhecido ou óbvio (KUSCHNIR, p. 19, Introdução, 2013).

A questão é que, nesse caso, o “morador-pesquisador” não dava enfoque aos conflitos e às contradições internas, evitava falar da violência e do tráfico de drogas (do que eu, por exemplo, não posso fugir). Ele falava disso comigo, em separado, em algumas reuniões do movimento, o que é compreensível porque não era interessante para ele tocar nesses temas e aumentar o estigma de violência atribuído ao lugar e às favelas em geral. Até porque justamente as estratégias dele e do movimento (sobretudo as visitas guiadas e o Censo) eram no sentido de mostrar a “realidade” sobre o lugar e desconstruir esses mesmos estigmas. Ele inclusive fazia

uma crítica ferrenha aos termos/categorias “favela” e “comunidade”, “pobreza” e “vulnerabilidade”.

Da mesma forma, também não falava tanto dos conflitos externos e políticos a exemplo do Acquario, evitando tocar no assunto em entrevistas, pois trabalhava em um órgão estatal e temia represálias. Apesar disto, ele apresentava uma posição contrária à obra, que aparecia em vários momentos. Era nítido para mim que ele enxergava as estratégias a exemplo do Censo como “armas de resistência”, sobretudo no sentido da construção de “pertencimento e entusiasmo”, como ele sempre falava. Neste caso, ele não era e nem podia ser “neutro”.

Era por parte deste sujeito, Cláudio, que havia a maior preocupação da validação técnica, da utilização da cultura erudita: para ele era necessário mostrar que o Censo estava bem feito, legitimando todo o processo. Nesse sentido, sempre era afirmado que o Censo é produção local, sim, mas foi construção conjunta com a Universidade, instituição que lhe confere peso e garantia de legitimação. A palavra “legitimidade” aparecia constantemente em suas falas, quase como sinônimo do próprio levantamento, pois para ele o que foi elaborado goza de certificação formal (erudita) e de legitimidade popular, porque teve forte preocupação com a “verdade real”, que corresponde a uma noção de verdade positivista hodiernamente tão questionada. Apesar dessa aparente ingenuidade a respeito da verdade, no discurso as noções de “legitimidade” e “fidedignidade” eram por ele bastante reiteradas.

Para Cláudio, bem como para Luciana, a preocupação com a fidedignidade dos dados se justificava pela necessidade de realizar um trabalho censitário “melhor” do que o anteriormente realizado pelos órgãos da Prefeitura de Fortaleza e do Governo do Estado. Em alguns momentos, Cláudio chegava a afirmar que o levantamento deles era mais preciso e, portanto, melhor do que os próprios censos do IBGE, porque o do Poço da Draga possuiria uma margem de erro muito menor.

Trata-se de uma triangulação conceitual de categorias que se implicam mutuamente, quais sejam: Dados fidedignos - Validação - Legitimidade. De uma forma geral e circular, percebo que para os moradores a Universidade seria a principal instituição a conferir essa legitimação técnica. Já o fato de ter sido construído na maior parte por moradores daria a legitimação política.

Cabe destacar uma forte ambiguidade verificada no discurso de Cláudio. Nas primeiras reuniões sobre o Censo, ele afirmava que o que conferiria legitimidade ao trabalho era sua elaboração comunitária, através de metodologia participativa.

Apesar disto, após a coleta dos dados e a elaboração dos mapas e gráficos, a fala mudou e passou a enfatizar a necessidade de validação oficial de algum órgão ou instituição erudita. Ou seja, inicialmente foi bastante valorizada a face da cultura popular, e posteriormente se valorou de forma mais forte os elementos da cultura erudita.

Isso foi bastante intrigante para mim por vários meses, pois Cláudio retardava a exibição dos dados coletados sempre que possível, alegando que ainda não havia uma “validação”. Dessa forma, o Censo somente foi exibido no próprio Poço, como forma de cumprir seu principal objetivo no plano interno, mas ainda assim apenas alguns gráficos foram exibidos. Mesmo com outros moradores Cláudio relutava em compartilhar as informações finais, alegando que os dados não podiam ser dados “de bandeja” para pessoas próximas ao poder público. O grande receio, então, era de apropriação das informações para uso contrário ao Poço da Draga. Além disso, posteriormente verifiquei uma precaução com relação à autoria da pesquisa: ele queria que fosse feita alguma publicação que impedisse o “roubo” dos dados, já que foi um trabalho essencialmente deles e do grupo liderado pela professora Amíria Brasil.

Cabe destacar que o Poço da Draga, assim como outras favelas, vem sendo alvo de apropriações de formas de cultura erudita e cultura de massa, a exemplo do cinema, da fotografia e da moda, a exemplo do desfile Dragão das Formas50 e dos desfiles para escolha da Miss Poço da Draga em todos os aniversários. Muitos filmes e documentários vêm sendo filmados na localidade, inclusive por moradores que tiveram formação em Audiovisual seja em ONGs como o Alpendre ou em órgãos públicos como a Escola Vila das Artes, da Prefeitura, e o Porto Iracema das Artes, ligado ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.