• Nenhum resultado encontrado

6. IDENTIDADE, TERRITORIALIDADE E MEMÓRIA NO POÇO DA DRAGA

6.3 O tempo como fator legitimador

O tempo é utilizado como um recurso legitimador e é geral a percepção de que o Poço é uma localidade muito antiga, sendo ou não centenária. Por serem antigos, entendem ser merecedores do reconhecimento de suas posses, a maioria não considerando legítimas as tentativas de tirá-los de suas moradias.

Por outro lado, observei que nem todos possuíam o mesmo grau de preocupação com a cristalização dessa memória coletiva. Os mais velhos, como eu imaginei logo no início da pesquisa, demonstravam maior inquietação com o que seria uma “memória perdida” do Poço e da Praia de Iracema. Estes correspondiam geralmente à primeira ou a segunda geração das famílias que chegaram na

localidade. Sempre que possível queriam narrar suas histórias, passando para as futuras gerações as informações do passado, da origem, para si tão importantes.

Entre os mais jovens, observei uma preocupação variável com essas questões, mas visivelmente eles falavam menos sobre estes temas, demonstrando outros interesses como relacionamentos, esportes, lazer e música. Na maior parte do tempo em que desenvolvi minha pesquisa de campo, os locais onde encontrava maior concentração de jovens sempre foram a Ponte Velha e a Quadra Poliesportiva. Logo, grande parte dos jovens estava jogando futebol, nadando, treinando triatlo ou socializando com os demais, prioritariamente nessas áreas. Pude perceber que uma parcela considerável dos mais velhos possuía aparelhos celulares, e que havia grande interesse por fotografias, aplicativos e redes sociais.

Na mesma linha das indagações de Jöel Candau dispostas no segundo capítulo, perguntei-me como se dava a passagem das memórias individuais para as formas coletivas. Dois dos meus interlocutores na pesquisa sempre remontavam a importância de “guardar a memória”, de estabelecer cristalizações, de pensar equipamentos a exemplo de museus e memoriais coletivos, desenvolver pesquisas históricas sobre o Poço da Draga. Essas pessoas em especial não eram das gerações mais antigas, eram filhos da localidade, apesar de um deles não morar mais no Poço.

Através deles foi fundado o movimento ProPoço já referido e uma parte considerável das ações pensadas por esse grupo dizia respeito a guardar, cristalizar, repassar e publicizar as memórias da localidade. Havia a proposta de montar um memorial, onde existiria uma Linha do tempo da localidade, bem como uma árvore genealógica explicando as primeiras e principais famílias, que segundo Cláudio se intercruzavam demais. Como visto, foi desenvolvido um Censo comunitário, bem como ao longo dos últimos anos foram realizadas dezenas de visitas guiadas.

O que mais me chamou a atenção nesse cenário é que essas visitas guiadas eram pensadas a partir da perspectiva de Cláudio, que é morador, mas também geógrafo e pesquisador. Ele buscava literatura e documentos sobre a Praia de Iracema, guardava fotografias, promovia entrevistas e me relatava que conversava com os “mais velhos” para repassar as “informações o mais fidedignamente possível”. O esforço memorial desse movimento era considerável, merecendo reconhecimento e publicização.

Ocorre que o trajeto da visita guiada, por exemplo, foi estabelecido por este morador. Dessa forma, a história local era contada através dele, tratando-se da sua

versão das memórias do lugar. Em 2016, o percurso da visita guiada ganhou o nome de “Expresso Poço da Draga”, estabelecendo os pontos de parada como paradas de trem, com a ideia de posteriormente colocar banners em cada ponto. Podemos nos perguntar: por que os pontos “x” e “y” foram escolhidos, e não outros?

Observe-se convite para a visita/Expresso em rede social:

PERCURSO EXPRESSO 110 – POÇO DA DRAGA – 07/09/2016 Expresso 110 é um percurso a pé, em que um grupo de pessoas, acompanhado por um guia morador, visita lugares específicos e relevantes à identidade do Poço da Draga, denominados estações. O nome da atividade é uma menção ao antigo serviço de trem europeu, Expresso do Oriente, como também é uma referência à presença de antigos trilhos no local, por onde passavam trens e trolers que serviam como transporte dos produtos vindos do antigo porto, a ponte Metálica. E nesse contexto que envolve movimento, viagem e história, o nome Expresso 110 passará por mudanças a cada ano, de acordo com a idade representativa da comunidade. Em 2017, a atividade passará a se chamar Expresso 111, e assim por diante. A visita ocorrerá em dois horários – das 15h30 às 16h15m, e das 16h30 às 17h15m. Para cada horário, será formado um grupo de, no máximo, 30 pessoas. O percurso terá início no Pavilhão Atlântico, perto do Acquario. Para participar, poste um comentário,

confirmando sua presença, no link

https://web.facebook.com/248265202182956/photos/gm.296827134017163/ 333822 303627245/?type=3&theater. Esperamos por vocês! (Disponível em: <https://www.facebook.com/propocomaremovimento/photos/gm.296827134 017163 /333822303627245/?type=3&theater>. Acesso em 12 jun. 2018.)

Devo ressaltar que esse morador gozava de reconhecimento pela coletividade, que via nele uma figura legítima por ser morador e também pesquisador. Somente uma vez sua posição como legítimo foi questionada. Em todo meu trabalho de campo. Só ouvi um único questionamento, que partiu de outro entrevistado. Ele falou especificamente sobre o trajeto da visita guiada, que no seu entendimento deveria ser outro. Não foi uma fala denegrindo a imagem ou questionando a pessoa de Cláudio, mas afirmando que o Poço da Draga seria melhor conhecido se o trajeto passasse “por dentro”.

Ele faz o percurso dele, ele não entra dentro da comunidade, vai só por fora. É trilho e pela pista. Ele não passa por dentro do corrente onde é o mangue, não passa pelo beco, nem dentro dos Galdinos. Isso porque ele mesmo tem um preconceito com a comunidade, de não querer mostrar a realidade. Mostrar só os muros da frente, só as casas bonitas da frente. E as de dentro? Eu levo as pessoas aqui dentro também, mas eu ando em tudo (morador, em entrevista em 20/01/2017).

Com essa fala, ele afirmou que há uma certa higienização, sendo mostrado apenas as “melhores partes” do Poço. Deu a entender que, caso fosse ele na posição de guia, mostraria outras ruas e vielas. Diante desse questionamento, mais uma vez

me pergunto: como se dá então a passagem da memória individual para a memória social? Quantos depoimentos seriam necessários para legitimar uma versão coletiva ou compartilhada por boa parte do grupo? Não seria mais interessante se perguntar quais as estratégias dos sujeitos para a cristalização da memória coletiva do Poço da Draga? Quem está se preocupando e atuando nesse sentido? Que ações? Que pessoas? Que grupos? Qual o lugar da “maritimidade” dentro dessa memória coletiva lá? E da identidade territorial?

Os grupos organizados, conforme discutido ao longo do trabalho, consistem basicamente na ONG Velaumar e no movimento ProPoço, sendo eles os principais articuladores das atividades e dos eventos comunitários. É preciso destacar, porém, que havia outros moradores essenciais no sentido das atividades de socialização e fortalecimento da memória, em especial uma senhora que promove vários saraus, Dona Fabrícia. Participei de alguns desses saraus em sua casa e pude perceber que ela é bastante querida na localidade. Um fato curioso é que ela tem tantos afilhados que muitas vezes não recordava de quantos, sendo chamada por alguns de “madrinha da comunidade”.

Neste sentido, a pesquisa me fez concluir que não apenas os grupos são responsáveis pela cristalização das memórias e pelo fortalecimento identitário. Eles são importantes e muitas vezes são apenas eles que aparecem, porém no cotidiano essas memórias também são reforçadas e movidas ou levadas a cabo por pessoas como Dona Fabrícia e algumas outras senhoras, que organizam os saraus. Uma diferença sensível entre as atividades promovidas pelos grupos e estas organizadas por Dona Fabrícia é o grau de publicidade e o público prioritário, pois são mais divulgadas boca a boca, ocorrem quase sempre em sua casa, sendo por isso mesmo bastante frequentadas pelos moradores, em especial as senhoras. Ademais, essa construção memorial cotidiana pode se revelar mais potente justamente por sua frequência, não necessitando de grandes eventos para ocorrer.

Conforme abordarei adiante, algumas vezes nos eventos maiores como os aniversários os moradores ficavam acanhados de participar, sentindo que as atividades não eram para eles e sim para o público externo, o que ia de encontro ao próprio objetivo das atividades, que era unir os moradores e fortalecer o pertencimento local.

Sobre as estratégias e as ações desenvolvidas para o fortalecimento da memória e da identidade, detalharei nos próximos itens.