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As identidades e as relações entre local e global

2. IDENTIDADE, TERRITORIALIDADE E MEMÓRIA

2.1 As identidades e as relações entre local e global

Sobre as identidades, adianto que não parto de uma noção imutável, sólida ou essencialista: realizei uma análise junto com os autores percebendo a identidade enquanto algo mutável, dinâmico, flutuante de acordo com as relações sociais. Entendo se tratar de uma noção central tal qual uma “estrutura estruturante” (BOURDIEU, 1989), sendo que isto não significa inflexibilidade, e sim a importância de determinada noção enquanto eixo construtor de significados e relações sociais.

Neste sentido, realizei um em diálogo entre as obras de Roberto Cardoso de Oliveira (1976; 2000), Manuela Carneiro da Cunha (1985) e Stuart Hall (2011; 2014). Os dois primeiros se referem justamente às características situacionais, relacionais e contrastivas das identidades, e tal paradigma se coaduna com o pensamento de Hall. De acordo com Oliveira (1976), compreendo que as identidades são construídas em relação ao outro. Cunha, em diálogo com Oliveira (1976), esclarece que a constituição de identidades é situacional, sendo uma “[...] resposta

política a uma conjuntura, resposta articulada com as outras identidades em jogo, com as quais forma um sistema. É uma estratégia de diferenças” (CUNHA, 1985, p. 206). Nesse sentido, a tessitura entre teoria e empiria desde o início me permitia dizer que parti de uma ideia de “identidades” fluídas ou situacionais, o que parece ser um consenso mínimo entre os três autores. Todos eles enfatizam a importância de considerar os pertencimentos identitários não como coisas isoladas, mas algo em permanente relação com outros grupos sejam eles favoráveis ou não ao grupo estudado.

A respeito das identidades, afirma Candau que estas são construídas através de um longo processo de compartilhamento de significados, de crenças, de representações e de conhecimentos:

[...] as identidades não se constroem a partir de um conjunto estável e objetivamente definível de traços culturais – vinculações primordiais -, mas são produzidas e se modificam no quadro das relações sociossituacionais [...] de onde emergem os sentimentos de pertencimento, de visões de mundo identitárias ou étnicas. Essa emergência é a consequência de processos dinâmicos de inclusão e exclusão de diferentes atores que colocam em ação estratégias de designação e de atribuição de características identitárias reais ou fictícias, recursos simbólicos mobilizados em detrimento de outros provisória ou definitivamente descartados (CANDAU, 2012, p.27, grifos meus).

[...] Se admitirmos que os seres humanos não são ‘indivíduos’ atomizados, criando suas identidades e perseguindo seus objetivos independentemente uns dos outros, reconhecemos ao mesmo tempo que a sociedade existe. É necessário então supor que os sujeitos são capazes de se comunicar entre eles e acessar, assim, um ‘compartilhamento mínimo do trabalho de produção de significações, seja um compartilhamento de conhecimentos, de saber, de representações, de crenças cuja descrição e explicitação irão justificar o recurso às retóricas holistas (CANDAU, 2012, p.31).

Nesse sentido, a identidade é uma construção, processual e dinâmica, e jamais será concluída. Trata-se de um trabalho em permanente progresso, vez que flutuações, mediações e influências culturais sempre irão ocorrer.

Além disso, à luz de Manuel Castells (1999), compreende-se que os processos hegemônicos e globalizantes muitas vezes são responsáveis pelo esvaziamento dos conteúdos identitários, ao que pode se seguir a mobilização social em sentido contrário, como uma força defensiva de grupos étnicos minoritários ou grupos tradicionais, o que entendo ter ocorrido no Poço da Draga. Nesse sentido, Castells relaciona os conceitos de “comunidade” e de “identidade”, ressaltando que podem se tratar de vários tipos de identidade: a) identidade legitimadora: representada pelas instituições dominantes interessadas em expandir sua dominação; b) identidade

de resistência: representada pelas pessoas em condições desvalorizadas e resistentes à dominação; c) identidade de projeto: que seria justamente aquela das situações de mobilização, fortemente responsáveis pela criação de uma identidade capaz de buscar a transformação social.

Nesse contexto, é evidente que uma análise processual se revela imprescindível, pois não se pode mais falar de “culturas isoladas”, essencialistas e intocadas em um contexto de pós-modernidade. A “desterritorialização” citada pelos estudos culturais fala do entrecruzamento de culturas, de símbolos e de identidades. Assim, para Rodrigues a solução da Antropologia foi a ressignificação do conceito de identidade para dar conta dos fluxos, da desestabilização e da fragmentação, considerando a identidade como “não essencializada, construída, plural e multifacetada” (RODRIGUES, 2008, p. 19).

Neste sentido, não se deve justapor os conceitos de cultura e território. Por outro lado, essa relação não se separou de forma absoluta, há fluidez, interinfluências entre as culturas e os territórios (RODRIGUES, 2008). Canclini (2003) argumenta que a ideia de comunidade em que os vínculos são mais intensos dentro do que fora também é arcaica, alertando para os riscos de se relacionar “comunidade” a “homogeneidade”. Realmente não se pode cair nessa armadilha, porque homogeneidades não existem, e mesmo em localidades muito pequenas como o Poço da Draga há conflitos e ocasiões em que os moradores se identificam muito mais com grupos ou pessoas de fora do que de dentro.

Rodrigues (2008) lembra ainda a discussão de Cunha (1985), qual seja a utilização da identidade como estratégia de diferença, principalmente em contextos de disputas territoriais. As populações tradicionais ou os grupos subalternizados como os habitantes de favelas quase sempre tem ameaçada a posse de suas áreas, contando com muito pouco para fazer frente aos interesses imobiliários de classes mais abastadas. É bastante comum nesse caso que as estratégias de permanência gravitem em torno do discurso identitário e do argumento tempo, sendo estratégias discursivas de diferença que também observo no Poço da Draga: “somos uma comunidade centenária” ou “também somos comunidade tradicional”, referindo-se às atividades pesqueiras.

Ainda sobre o tema, Stuart Hall lembra que as identidades correspondem a um “em processo”, vez que são fenômenos nunca completados, sempre em construção, afirmação e reafirmação (HALL, 2014). Diz também que não são algo

determinado no sentido de que se possa “ganhá-las” ou “perdê-las”: diferentemente, elas podem ser sustentadas, abandonadas e novamente sustentadas.

Sobre a multiplicidade das identidades, a literatura fornece emblemáticos exemplos ao colocar em questão que o próprio indivíduo não é coeso, sendo composto por várias identidades e pertencimentos, às vezes complementares, outras conflituosos. Neste sentido, bastante significativa é a narrativa de Mia Couto sobre a percepção identitária do mulato africano:

Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não de raças, mas de existências (COUTO, 1987, p. 85).

De acordo com o conto, o mulato são vários, pleno de múltiplas existências, o que permite pensar em todos nós, incluindo as famílias do Poço da Draga. Mais do que falar propriamente em “identidade”, cabe considerar as várias “identidades”, no plural. Apesar disto, neste trabalho, em razão do recorte que foi estabelecido, problematiza-se a questão da identidade possível ou não dos moradores daquela localidade.

Cotejando as análises de todos estes autores (OLIVEIRA, 1976; 2000; CUNHA, 1985; RODRIGUES, 2008; HALL, 2011; 2014), chego à conclusão de que o conceito de identidade deve passar por um processo de releitura. Entendo que os conceitos sugeridos pelos autores permitem a focalização do processo e do discurso identitário como uma das estratégias de diferença e de permanência no território pesquisado. Após a análise, vinculo-me neste trabalho à construção teórica elaborada por Manuela Carneiro da Cunha (1985), para compreender a identidade do Poço da Draga, conforme será visto ao longo da tese.

Durante e após o trabalho de campo, percebi a circularidade dos fenômenos de construção de identidade e de criação de fronteiras no Poço da Draga, sejam elas simbólicas ou espaciais. Ocorre que o processo de identificação, segundo Hall, está sujeito a um “jogo da diferença”, envolvendo um trabalho discursivo de “fechamento e marcação de fronteiras simbólicas, a produção de ‘efeitos de fronteiras’ [...]” (HALL, 2014, p. 106). O sujeito reconhece aqueles com os quais se identifica e, simultaneamente, vislumbra aqueles com os quais não se identifica, os que são diferentes de si. Essa diferença gera um distanciamento simbólico e, ao mesmo

tempo, é essa distância simbólica já existente que produz a diferença: esse é o jogo. Assim são construídas as fronteiras simbólicas que se reproduzem no espaço, produzindo as territorializações e a criação dos microterritórios, de que falarei no próximo tópico. De outro lado, a existência anterior dessas marcações, dessas divisões em microáreas, reforça as identificações internas dos grupos.

Dessa forma, compreendi no caso estudado como identificação e territorialização estão intimamente associadas. Essa circularidade identificação - efeitos de fronteiras simbólicas - territorialização (efeitos de fronteiras espaciais) também explica o distanciamento entre as famílias do Poço da Draga e aquelas residentes na Rua dos Tabajaras, cujas casas distam menos de 1km da localidade.