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Contribuições da territorialidade para a memória: Identidade territorial do Poço

2. IDENTIDADE, TERRITORIALIDADE E MEMÓRIA

2.3 A respeito da memória

2.3.1 Contribuições da territorialidade para a memória: Identidade territorial do Poço

Ao longo do tempo, foram muitas as ameaças de remoção do Poço da Draga e com elas se deram alguns dos períodos de maior resistência. Entendo que a importância atribuída ao passado e à memória da localidade está diretamente relacionada à iminência do risco da remoção. O território é trazido como um elemento fundante da identidade, como se os moradores estivessem dizendo literalmente que, por não se imaginarem morando em qualquer outro lugar, fora dali não seriam mais quem são.

Sobre a importância do território para a identidade, Haesbaert fornece uma interessante análise:

Uma das características mais importantes da identidade territorial [...] é que ela recorre a uma dimensão histórica do imaginário social, de modo que o espaço que serve de referência “condense” a memória do grupo [...] A (re) construção imaginária da identidade envolve, portanto, uma escolha entre múltiplos eventos e lugares do passado, daqueles capazes de fazer sentido na atualidade (HAESBAERT, 2013, p. 239, grifos meus).

O Poço da Draga parece ser repleto desses “lugares de passado”, um passado ainda presenciado quando é repetido ritualmente nas narrativas de resistência. Neste sentido, as apropriações territoriais vivenciadas pelos moradores dizem respeito às suas identidades enquanto indivíduos e enquanto coletividade.

As análises de Gondim (2001) destacam o caráter privilegiado do espaço na elaboração e na consolidação das memórias de um grupo, o que parece dialogar com as questões postas neste trabalho:

O espaço físico tem papel crucial na constituição da memória coletiva. A relativa estabilidade de tal espaço permite-lhe atuar como âncora da memória, evitando que as lembranças se percam no fluxo contínuo do tempo, transformando-se em devaneios brumosos ou em esquecimento mortal [...] (GONDIM, 2001, p. 15).

A autora fala da exiguidade de lugares de memória em Fortaleza, o que parece contrastar com a existência de tantos referentes da memória no Poço da Draga. Ocorre que a contradição é apenas aparente, vez que o estabelecimento das lembranças exige aproximação e vivência com os lugares, com os demais membros de um grupo. O que é vivenciado, de forma próxima e intensa, passa a figurar como

“memória”. Isto se dá porque, conforme Halbwachs (2013) e Bosi (1994), apenas fica o que significa. E a construção desses significados ocorre no cotidiano, a partir das práticas dos sujeitos.

Ecléa Bosi (1994) chama a atenção para o fato de que a memória dos velhos nascidos na São Paulo do início do século XX é construída espacialmente, na narrativa de ruas e bairros que, muitas vezes, não existem mais, ou que mudaram tanto que, para eles, é como se não mais existissem. Seus referenciais espaciais lhes foram roubados pelo desenvolvimentismo funcionalista: muitas ruas, árvores e marcos foram destruídos para a construção de novas avenidas ou prédios. O peso dramático da frase “já não existe mais”, ou “esses já não vivem mais” é sentido em toda a obra: o peso da finitude e a proximidade da morte, física ou simbólica, são recorrentes nas narrativas. Essas mesmas frases foram ouvidas inúmeras vezes em meu trabalho de campo no Poço da Draga.

Desde o início, meu questionamento foi o seguinte: como os pertencimentos territoriais influenciam as dinâmicas de sociabilidade e como se relacionam à produção de identidades e memória do Poço da Draga? Com a observação, fui percebendo que os vínculos territoriais sejam locais ou microlocais (microterritórios) têm relação direta com a formação de vizinhança e relações de compadrio. Por outro lado, os microterritórios também se relacionam diretamente com a memória e a produção de várias identidades, seja a de morador da Praia de Iracema ou do próprio Poço da Draga. Os microterritórios são como locus de memória, sendo um dos principais grupos de referência (HALBWACHS, 2012), vez que muitas vezes as principais lembranças dos moradores dizem respeito a fatos ocorridos em suas casas ou nas casas de vizinhos próximos.

Marcos Alvito (2006) analisando as microáreas da favela do Acari, chegou a conclusões semelhantes:

Essas microáreas são o locus de uma memória. Esta pode ser alegre, referir- se às travessuras conjuntas, às inúmeras brigas entre eles [...] e pode ser trágica [...] é um espaço com as marcadas das relações familiares, dos entes queridos hoje ausentes [...]. É uma memória plena de acontecimentos: o crescimento acelerado da favela, a chega dos novos vizinhos, as modificações cotidianas na paisagem, do cenário em que se movem [...] Crescem e envelhecem juntos, compartilham os nascimentos e as mortes, as pequenas alegrias, as tragédias pessoais. Essa história de vida comum expressa-se na frase muito utilizada: “fomos criados juntos” (ALVITO, 2006, p. 197).

No Poço da Draga, os moradores enfatizavam a ausência atual das Irmãzinhas (ver nota 15), do antigo campinho de futebol, das casas em cima da Ponte, do antigo Chafariz. Muitos lembravam ainda das pedras que foram retiradas quando do aterramento da Praia de Iracema na década de 1990, ausência que foi sentida porque aquelas pedras eram espécies de mirante onde se assistia ao pôr-do-sol. Uma moradora me contou que cada um tinha sua “pedra preferida”, seu local de contemplação. Essa mesma senhora afirmou em uma audiência pública:

Eu nasci no Poço da Draga, cresci lá, fiz 47 anos no domingo e não me sinto morando noutro lugar que não seja perto da praia. Ali, eu vi meus filhos crescerem, tá ali um, o João, mais velho, que vai fazer 28 anos, e um outro menorzinho de 4 anos que está aqui comigo... E lá é assim: ah, a gente está estressada? Pois vamos lá na Ponte, ver o pôr-do-sol, vamos sentar na pedra [...]. Mas aí não tem mais pedra, porque a prefeita simplesmente aterrou as pedras, mudou o panorama, mudou a paisagem. Eu sinto como se estivessem mexendo no meu quintal (Luzia, moradora, 25/05/2012 em audiência pública na Câmara Municipal de Fortaleza).

Não se pode esquecer que a memória é seletiva, havendo razões para que determinadas coisas sejam lembradas e outras não. Conforme Pollak, “nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa” (POLLAK, 1992, p.4).

A memória dos velhos pode ser alterada com o passar do tempo e a repetição da história oficial, que os faz esquecer como vivenciaram determinadas coisas. Há, portanto, um inevitável imbricamento de memória individual e história- discurso oficial. Por isso, Pollak insiste na importância de considerar a memória enquanto uma produção a um só tempo individual e social:

Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade. (POLLAK, 1992, p.5)

A lembrança ocorre como processo construído de forma relacional, a partir dos diálogos e dos conflitos entre os grupos. Aquilo que se lembra e, principalmente, o que não se lembra são diretamente relacionados a questões políticas, inclusive as políticas públicas.