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Censo do IBGE e Censo do Poço: aproximações e distanciamentos

5. O “CENSO” E O SENSO NA BUSCA DO RETRATO DE UM LUGAR: FALSOS

5.5 Censo do IBGE e Censo do Poço: aproximações e distanciamentos

Percebo que o movimento sempre enfatizou as diferenças entre o Censo do Poço e os governamentais, porém muitos elementos básicos destes foram

50 Este foi um desfile ocorrido em outubro de 2015 em virtude da formatura da turma de Corte e Costura

do Serviço Social do Comércio (SESC), que contava com muitas moradoras do Poço. No evento, foram apresentadas somente roupas produzidas pelas alunas, inspiradas nas formas do Dragão do Mar.

utilizados ou ressignificados, a exemplo da divisão da área por setores e por quadras. O trabalho foi realizado com base em mapas e cada grupo de trabalho atuava sobre uma área, como se fosse um setor censitário, a exemplo dos recenseadores do IBGE. Igualmente, havia a subdivisão das quadras e, conforme os grupos iam avançando, o mapeamento ia sendo atualizado junto com a digitação dos dados dos questionários pela aluna que subcoordenava os trabalhos. Depois, as informações eram inseridas em mapas do programa ArcGis por Cláudio e por outro geógrafo que se inseriu posteriormente no grupo. A utilização desses programas, dos mapas e do georreferenciamento é outro ponto em comum com o IBGE, em proporção e complexidade menor.

Compreendo que boa parte do discurso objetivando a diferenciação vinha do desagrado dos moradores quanto à imagem de vitimização gerada pelos dados oficiais. Para eles, os maiores defeitos do censo do IBGE seriam, portanto: o não- conhecimento da realidade local, o fato dos aplicadores serem pessoas externas e a grande margem de erro dos resultados, porque as pessoas falseiam a verdade.

Um dos objetivos era, portanto, não ser como os outros, tendo uma margem de erro muito pequena e contar com o envolvimento de pessoas locais. Apesar de ter esses vários diferenciais, tomaria emprestado aquilo que fosse necessário para garantir a validação técnica, sem perder sua particularidade.

Além disso, por não vir de um órgão estatal, o Censo do Poço da Draga se afirmava sério (e legítimo), porém não se pretendia neutro, a começar porque um de seus objetivos era ser uma espécie de defesa das famílias a possíveis ataques externos a exemplo de remoções. Trata-se de um objetivo político: ser um instrumento local, produzido por moradores e um corpo técnico de apoiadores com formação em Geografia, Arquitetura e Direito e direcionado também para moradores. Já a veracidade dos dados para eles teria se dado justamente em razão de ser uma produção local e não uma captação dos órgãos estatais, em que supostamente não se poderia confiar.

Conforme apontado anteriormente, muitos afirmaram ter receio de informar sua renda para recenseadores oficiais, no sentido de que poderiam ser retirados de cadastros sociais e perderem benefícios como o Bolsa Família. Ao serem indagados pelo IBGE ou pela Prefeitura, por exemplo, algumas famílias tendem a subestimar alguns dados (a exemplo da renda) e superestimar outros, como o número de habitantes por residência. Esse último está relacionado à expectativa de futuros

projetos habitacionais em que sejam “distribuídas” casas aos moradores, sendo essencial afirmar a coabitação familiar para receber duas ou três unidades. Ocorre que a coabitação também é uma realidade do lugar, conforme presenciei em campo. Para Cláudio, a grande diferença técnica do Censo do Poço para o do IBGE é que neste último nem todas as casas são visitadas, por conta da amostragem51. Isto para Cláudio não se deu no Censo do Poço, vez que cada unidade foi visitada. Uma outra questão diz respeito ao falseamento das informações, pois segundo ele os moradores teriam maior tendência de mentir ou omitir dados dos recenseadores do IBGE, com receio de perder benefícios sociais. Assim, ocorreria uma grande margem de erro. Para ele, a presença de um morador na aplicação supostamente teria feito com que as pessoas não mentissem sobre sua realidade, a exemplo dos dados de renda. Presenciei aplicações com Cláudio em que, de fato, diante de respostas consideradas “irreais”, ele questionava o responsável da família (geralmente seu amigo ou conhecido de infância), que estava diminuindo sua renda, e posteriormente havia alteração de resposta para mais.

Especificamente sobre o receio de fornecerem as informações corretas, pude verificar que ocorre realmente, fato também notado pela professora Amíria e seus alunos. Sobre isso, segue um exemplo:

Um dia típico foi quando o [morador] policial disse uma renda que sei que não é real. Eu ri e disse logo: “ai é? E se a gente colocar teu nome no Portal da Transparência?”. Daí ele: “não, Cláudio, é porque a gente sabe que [se disser] essas coisas, a galera fica de olho, pensa que estou podendo, aí vamos tirar logo ele daqui. Quer dizer que se a gente tem condição de ter um esgoto, vão pensar logo em [nos] tirar e não promover o lugar”. Olha o raciocínio deles, Marília… (Cláudio, 11/08/2017).

Ele ainda enfatiza que “o dado geográfico é poder, que pode fazer o que quiser com esses dados no sentido de ‘olha, esse trecho a galera tem renda alta, não precisa de benefício, já aqui tem menos…’. Então fornecer isso é entregar o trabalho prontinho para eles” (Cláudio, 11/08/2017). “Eles”, aqui, corresponde ao governo.

O receio sobre a autoria da pesquisa apareceu em quase todas as casas que visitei, sendo relativamente geral a preocupação que fosse algo de iniciativa da prefeitura ou do Estado. Cláudio confirmou que os moradores costumavam perguntar para quem eram aqueles dados, com forte desconfiança do Estado e também,

51 A este respeito, houve um equívoco da parte dele: nem todo o Censo do IBGE ocorre por

amostragem, apenas uma parte. Há o formulário conciso que é aplicado em todos os domicílios e o mais detalhado, esse sim por amostragem.

curiosamente, de algumas pessoas da própria localidade. Os moradores afirmavam temer que as informações chegassem ao Poder Público, seja porque a pesquisa fosse estatal (como costuma ser) seja porque alguma liderança próxima a políticos poderia entregar os dados e fazer com que perdessem benefícios.

Uma outra questão diz respeito aos obstáculos conceituais verificados no questionário, que obteve dados de difícil compreensão, vez que alguns moradores se diziam proprietários sem o ser, e se confundiam noções como proprietário, locatário, cessionário, dentre outros. No entanto essa não é uma dificuldade apenas dos censos comunitários, mas muitas vezes dos oficiais. A este respeito, Pasternak-Taschner (2001) chega a nomear de paradoxo atribuir a nomenclatura de proprietário aos residentes de forma irregular, sendo cabível a categoria posseiro.