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Os territórios e as (des)reterritorializações

2. IDENTIDADE, TERRITORIALIDADE E MEMÓRIA

2.2 Os territórios e as (des)reterritorializações

Compreendo território em uma acepção cultural e não propriamente jurídico-política, no sentido de que não me deterei em critérios estatais e/ou administrativos (RAFFESTIN, 1993; HAESBAERT, 2004; 2006; 2008; 2013; BORGES; CAVALCANTE JUNIOR, 2010; SOUZA, 2013). A relação territorial pode ser associada à noção de pertencimento ou ao sentimento de apropriação de determinado grupo por certa localidade. Tal apropriação pode se dar em termos materiais, culturais ou ainda na dimensão afetiva, hipótese última que investiguei durante o trabalho de campo.

Na verdade, na esteira de Arantes Neto, prefiro utilizar o termo “territorialidade” do que falar propriamente em territórios:

Com referência ao meio urbano, prefiro o termo “territorialidade” a território, que é mais frequentemente utilizado na teoria social, porque, ao denotar qualidade mais que coisa substantiva, ele flexibiliza o espaço social descrito. Tal flexibilidade, como veremos, é uma característica essencial dos espaços sociais nas cidades contemporâneas (ARANTES NETO, 2000, p. 171).

Também neste sentido, ainda que se referindo a “território”, Haesbaert (2004) enfatiza os processos de apropriação territorial, compreendendo a flexibilidade do conceito. Ele foi um autor importante por compreender que o território responde “pelo conjunto de nossas experiências ou, em outras palavras, relações de domínio e apropriação, no/com/através do espaço” (HAESBAERT, 2004, p.78). Parte-se do pressuposto que os moradores de ocupações têm a capacidade de territorializar, com

instrumentos de pressão sobre o Estado e os agentes privados que disputam o espaço. Compreendo os territórios como “projetos de poder de cada grupo”, (RAFFESTIN, 1993, p.54) sendo as definições territoriais criadas e ressignificadas por quem as vivencia na prática também no plano interno das localidades, onde se formam microterritórios e multiterritorialidades.

A acepção adotada por Haesbaert (2004; 2006; 2008) parece se aproximar do que foi observado no Poço da Draga, conforme discutirei ao longo do trabalho. Destaco ainda, sobre o território, que no Poço da Draga as ameaças de remoção constituem um elemento importante para a coesão e o protagonismo dos moradores e podem ser responsáveis pelo fortalecimento do vínculo com a área.

Observei no Poço da Draga que a temática da terra é algo central para as famílias, existindo insegurança jurídica sobre a moradia, em razão de parte das casas estar em área da União (terrenos de marinha)12 e outra parcela ser reivindicada pela INACE. Essa circunstância faz com que não haja comprovação legal da propriedade dos imóveis para a maioria das famílias. Apesar disso, há uma situação emblemática: grande parte dos moradores se dizem “legítimos proprietários” da área, em função da antiguidade da ocupação e da inexistência de possuidor anterior (OLIVEIRA, 2006), razão pela qual compreendem as tentativas de remoção como práticas injustas e ilegais.

A partir das formulações de Bourdieu (1989; 1997) percebo que a área habitada pelos agentes simboliza o espaço social e as relações existentes entre os territórios, e as representações que se tem deles são significativas para compreender as relações entre as pessoas. Através da distribuição e da hierarquização dos territórios é possível perceber as diferenças sociais entre os agentes, e esta é a razão pela qual o aporte teórico-metodológico de Bourdieu se revela adequado para esta pesquisa. Com a noção de territorialidade enquanto relação de poder, compreendo que a diferença entre o estabelecimento de territórios não é um processo natural e que se exerce violência simbólica a partir da distinção entre lugares mais ou menos valorizados, inclusive dentro de ocupações. Ademais, Bourdieu (1997) afirma que nem

12 Pertencem à União, sendo chamadas de “terreno de marinha” aquelas áreas localizadas até 33

metros a partir da linha de Pré-amar, a média das marés altas do ano de 1831, tomando como referência o estado da costa brasileira naquele ano. Essa área é gerida pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e parte das famílias possui o Registro Imobiliário Patrimonial (RIP), uma espécie de permissão de uso.

sempre proximidades territoriais implicam aproximações sociais, o que observei no Poço da Draga.

Para Haesbaert (2006; 2008) e Souza (2013), a definição de território passa em primeiro lugar pela dimensão política, vez que o território só pode assim ser pensado com a ideia de poder e o poder, por sua vez, só se exerce com relação a um território. Haesbaert lembra que o radical do termo “território” é próximo das palavras em latim terreo-territor (terror, aterrorizar), expressando a ideia de dominação de uma área inclusive com uso de força contra os que estão dela excluídos. O autor ainda afirma que território é um espaço-tempo vivido, sendo sempre múltiplo, diverso e complexo, distanciando-se da noção de território fixo ou unidimensional da lógica capitalista hegemônica (HAESBAERT, 2008).

Compreendo, à luz desses autores, que os territórios e os microterritórios (ou nanoterritórios, na acepção de Souza) são, na verdade, relações sociais projetadas no espaço. Muito interessante é a distinção entre território e espaço (substrato espacial do território), acerca da qual esclarece Souza:

Confundir território e o espaço, o substrato espacial material, equivale a "coisificar" o território, fazendo com que não se perceba que, na qualidade de projeção espacial de relações de poder, os recortes territoriais, as fronteiras e os limites podem todos mudar, sem que necessariamente o substrato material que serve de suporte e referência material para as práticas espaciais mudem (SOUZA, 2013, p.90).

Souza esclarece que nesse caso a escala espacial é quase sempre "nanoterritorial" (SOUZA, 2013, p.251). Em consonância com Souza e Haesbaert, Marcos Alvito assim define o que ele chama de “pedacinhos da favela”, em pesquisa sobre Acari no Rio de Janeiro:

Onde pensávamos existir Acari, descobrimos haver quatro localidades [...] cada uma delas subdivide-se em mais de uma dezena de microáreas de vizinhança. [...] A forma pela qual foram nomeadas essas microáreas tralvez nos diga alguma coisa. Ás vezes, o nome é neutro e indica uma característica geográfica [...] ou faz referência a alguma atividade de lazer. [...] As microáreas servem muitas vezes de suporte para representações acerca das diferenças existentes no interior de uma única favela (ALVITO, 2006, p.191- 192).

As microáreas, nanoterritórios ou apenas microterritórios13 - como doravante passarei a chamá-los - são pedaços da favela que comportam em si uma

13 Compreendo os três termos como sinônimos, mas a partir daqui adotarei a nomenclatura de

rede de relações firmemente entrelaçadas, cujo ponto de partida é a vizinhança. Os microterritórios do Poço da Draga serão detalhados no quarto capítulo.

Apesar de o estudo de Alvito se referir à favela (ou às várias localidades existentes em) Acari, as conclusões do autor permitem refletir sobre a recorrência do fenômeno por ele descrito. Afirma o autor que os vínculos de identidade e de solidariedade entre os moradores espacializam-se em espécies de círculos concêntricos cada vez mais amplos, cuja força vai se perdendo conforme toma espaços maiores, vez que ocorre maior solidariedade nos círculos de maior proximidade. Observo no Poço da Draga essa mesma situação, sendo notório que a sociabilidade no Poço se dá por afinidades movidas principalmente por critérios como vizinhança (as casas que são imediatamente mais próximas), parentesco e religião.

No Poço, é comum que namoros e casamentos ocorram entre pessoas de um mesmo microterritório e, dessa forma, as novas famílias quase sempre procuram morar no mesmo local, até onde é possível ampliar as casas, seja horizontal ou verticalmente, o que também foi percebido em Acari por Alvito (2006). As relações de “comadres” e “compadres” vão se solidificando e se espraiando no espaço. Em razão do cruzamento das famílias ditas “tradicionais”, aquelas que chegaram primeiro ao local, foi proposto por Cláudio que se realizasse uma “árvore genealógica” da localidade, pois segundo ele quase todas as pessoas derivam de três ou quatro famílias iniciais.

Sobre os territórios, importa perceber que não há apenas as disputas, mas também relações de cooperação, pois os grupos se definem pelas relações que estabelecem ao longo do tempo, “tecendo seus laços de identidade na história e no espaço, apropriando-se de um território (concreto e/ou simbólico), onde se distribuem os marcos que orientam as suas práticas sociais” (HAESBAERT, 2006, p. 93). Essa perspectiva fornece importantes elementos para compreender como se estrutura o territóriona área e como as relações sociais são atravessadas pela dinâmica dos processos territoriais.

Um olhar sobre a emergência e o curso dos movimentos sociais urbanos em Fortaleza confirma que a territorialização é um processo relacional por excelência, pois boa parte das grandes manifestações de protesto sempre ocorreram em face de alguma intervenção direta do Poder Público, na maior parte das vezes envolvendo a remoção de moradores, tanto no Poço da Draga quanto no Lagamar, localidade estudada na minha dissertação (GOMES, 2013). A territorialização ocorre também no

plano interno das localidades, onde se formam microterritórios e multiterritorialidades, conforme se verá.

As dimensões do tempo e do espaço estão atreladas, de modo que compreendo aqui a relação entre a memória (no eixo das temporalidades) e a territorialidade (no eixo do espaço). De acordo com os autores estudados, a memória possui sua característica individual e coletiva, e no Poço da Draga eram fartos os exemplos de que isto ocorre: as histórias de vida, sempre que narradas nas entrevistas ou rodas de conversa, entrelaçavam fatos da vida particular com os eventos coletivos. A memória no Poço é diretamente ligada ao território porque os laços afetivos que vem sendo construídos com a localidade passam diretamente por ele, pela apropriação de onde se mora, pela relação com a praia e com o mar.

A ligação particular com o território sempre me causou surpresa, principalmente ao considerar a precisão com que a maioria identifica suas casas, áreas e microterritórios em qualquer mapa ou fotografia aérea. Conhecem o desenho das casas, as unidades vizinhas e muitos outros referentes espaciais, mesmo em escalas muito pequenas. Foram vários os exemplos disso ao longo da pesquisa, mas principalmente durante a realização do Censo de que falarei no quinto capítulo

Nesse sentido, o termo “territorialidade” possui uma significação mais ampliada, permitindo dar conta de modos de apreensão do território mais fluídos, não necessariamente formais, dotados de limites físicos. O território pode ser simbólico, como já se discute há muito tempo pelas Ciências Humanas.

Falar de território é falar de campos de força, na acepção discutida por Rogério Haesbaert (2004; 2006; 2008) e Marcelo Lopes de Souza (2013). O território não se confunde com o espaço, com o suporte material que na verdade é apenas um dos elementos que o compõem. O território compreendido dessa forma é a espacialização das relações sociais. Neste sentido, Bourdieu é um autor de referência para analisar os campos de disputas territoriais, a partir das categorias estratégia, disputas simbólicas e violência simbólica. O poder e a violência simbólica são afirmados e exercidos através do espaço e das diferenciações territoriais: os agentes são vistos positiva ou negativamente em razão de seus microterritórios possuírem ou não determinados capitais. As hierarquias sociais são reproduzidas no espaço e, por sua vez, as diferenças atribuídas aos territórios constroem, afirmam ou ressignificam as distinções sociais.

Raffestin ressalta que a territorialidade humana não se compõe apenas de “relações com territórios concretos, mas também por relações com os territórios abstratos como línguas e religiões” (1993, p.266). Nesta pesquisa, como será visto, foi considerado o território correspondente à localidade do Poço da Draga, e alguns moradores relataram que o mar também é parte da territorialidade, constituindo um lugar não apenas para os pescadores.

Ainda na compreensão cultural do território, outro autor que forneceu importante luz para a pesquisa foi Joel Bonnemaison (2002). Segundo ele, todos os indivíduos e grupos territorializam: todos possuem o que ele chama de “território- portador”. Afirma que para que haja coerência e coesão dentro do grupo, da etnia e mesmo da cultura, é essencial a existência do “território-portador” (BONNEMAISON, 2002, p.91). Neste sentido, os lugares guardam forte correspondência com os indivíduos, e a própria paisagem de determinado povo é fortemente afetada – “carregada de afetos”.

Sobre a aproximação entre as noções de identidade e de território, destaca- se que os geógrafos foram responsáveis por muitas pesquisas, interessando-se sobremaneira pelo que denominaram “identidade dos lugares” (BOSSÉ, 2004). Muitos se perguntaram a respeito do que os lugares podiam representar para a formação das consciências individuais e coletivas.

Teorizando sobre a possível existência de uma “identidade territorial”, Haesbaert afirma: “a identidade territorial é uma identidade social definida fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta” (2008, p. 172). "Territorialização" em sentido estrito diz respeito à apropriação e ao controle do espaço através da presença física dos agentes. O autor fala em quatro grandes objetivos ou “fins” para a territorialização ao longo do tempo: a) abrigo físico, fonte de recursos materiais ou meio de produção; b) identificação ou simbolização de grupos através de referentes espaciais (a começar pela própria fronteira); c) disciplinarização ou controle através do espaço (fortalecimento da ideia de indivíduo através de espaços também individualizados); d) construção e controle de conexões e redes - fluxos, principalmente fluxos de pessoas, mercadorias e informações (HAESBAERT, 2008, p. 5).

Conforme Haesbaert (2008), todo território é, em diferentes medidas, funcional e simbólico, vez que o domínio sobre ele se dá tanto para a realização de

funções (econômicas, por exemplo) quanto para a produção de significados (a exemplo da identidade). Para ele, os territórios considerados como “tipos ideais” seriam mais “funcionais” ou “simbólicos” de acordo com o predomínio destas características. No entanto, com relação a alguns grupos socialmente vulneráveis, chamados pelo autor de “hegemonizados” ocorre um fenômeno particular:

Para os “hegemonizados” o território adquire muitas vezes tamanha força que combina com intensidades iguais funcionalidade (“recurso”) e identidade (“símbolo”). Assim, para eles, literalmente, retomando Bonnemaison e Cambrèzy (1996), “perder seu território é desaparecer”. O território, neste caso, “não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas ao ser”. É interessante como estas dimensões aparecem geminadas, sem nenhuma lógica a priori para indicar a preponderância de uma sobre a outra: muitas vezes, por exemplo, é entre aqueles que estão mais destituídos de seus recursos materiais que aparecem formas as mais radicais de apego às identidades territoriais (HAESBAERT, 2008, p.4).

Para Haesbaert, muito se falou em “desterritorialização” no que concerne à expulsão ou o deslocamento de grande número de pessoas em razão da realização de grandes obras ou eventos. Ademais, para Souza

[...] uma territorialização ou desterritorialização é sempre e em primeiro lugar, um processo que envolve o exercício de relações de poder e a projeção dessas relações no espaço [...] envolve, não raramente, também o uso da violência, como exemplificado por fenômenos como migrações forçadas após uma conquista militar, remoções de favelas, despejo de famílias sem-teto de uma ocupação, e assim sucessivamente (SOUZA, 2013, p. 102).

Neste sentido, a desterritorialização afirmada em larga escala seria a perda do território de origem e, com isso, evidentemente se perderia também parte da identidade de um grupo, vez que “perder seu território é desaparecer” (HAESBAERT, 2008). Haesbaert aponta, no entanto, que apesar das remoções novos e múltiplos territórios estão constantemente sendo formados e ressignificados, razão pela qual o termo “desterritorialização” não dá conta de explicar os fenômenos da contemporaneidade.

Isto porque a realização de grandes obras e as remoções normalmente promove situações de “des-re-territorialização”, que são processos de reconstrução de territorialidades e de fronteiras (HAESBAERT, 2006; RAFFESTIN, 1988). A

respeito do Acquario, no Poço da Draga não houve anúncio de remoção, mas é

Como foi mencionado, o Poço da Draga é um espaço cuja ocupação é objeto de disputa com o Poder Público e com um grupo privado, a Indústria Naval do Ceará S.A. (INACE), evidenciando a centralidade da dimensão territorial para a vida dos moradores. Além das ameaças de remoção por conta de obras públicas, a

vizinhança da INACE traz à memória aremoção de algumas famílias nos anos 1980 para o Conjunto Palmeiras, desconstituindo a anterior Praia Formosa, que compunha para eles o Poço da Draga.