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Segundo Aristóteles na Metafísica, podemos considerar quatro tipos de afecção: 1. Num primeiro sentido, uma qualidade segundo a qual uma coisa pode alterar-se, por exemplo o branco e o preto, o doce e o amargo, o pesado e o leve, e todas as demais coisas similares, 2. Os atos e as

272

PLATÃO, Fedro, 231d. 273 P

191 alterações de tais qualidades, 3. Em particular as alterações e os movimentos prejudiciais e, sobre tudo, os danos dolorosos, e 4. Também se chama afeição às grandes desgraças e sofrimentos274.

A Retórica de Aristóteles é um texto capital para reconstruir a arquitectónica das paixões segundo o estagirita. Elas jogam um papel determinante na persuasão argumentativa e na consequente capacidade judicativa: “cada um julga o fim segundo as suas disposições”275. Um factor verdadeiramente humano, que não se pode descartar nem menosprezar na tarefa tão antiga e sempre renovada do “conhece-te a ti mesmo”. Este arquétipo da consciência de si está no levantamento das paixões do homem, dos seus estados de alma, nas suas moções interiores.

Ele está consciente que “os factos não se apresentam sob o mesmo prisma a quem ama e a quem odeia, nem são iguais para o homem que está indignado ou para o calmo, mas, ou são completamente diferentes ou diferem segundo critérios de grandeza. (…) As emoções são uma causa que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer”276. E faz uso disso na arte de argumentar e convencer, em ordem a produzir as sentenças desejadas.

Na Ética a Nicómaco, Aristóteles enumera as seguintes afecções: desejo, ira, medo, audácia, inveja, alegria, amizade, ódio, saudade, ciúme, compaixão, e, em geral, tudo o que é acompanhado por prazer ou sofrimento277. Esta listagem não é a única na obra de Aristóteles. No tratado da Retórica temos a seguinte: ira, calma, amizade e inimizade, temor e confiança, vergonha e desvergonha, amabilidade, piedade, indignação, inveja, emulação. Percebemos com isto quer da atenção que as paixões mereceram na antiga Grécia, quer a grande quantidade de estados de alma.

Agostinho

O ambiente intelectual de Agostinho é bastante complexo. Na sua actividade de pensador e de bispo, Agostinho tem de lidar com várias teorias da época que poderiam comprometer a pureza da mensagem evangélica. Por isso, ele debate o tema das paixões com os estóicos e epicuristas. Segundo ele, aqueles, aos quais as paixões nunca atingem, põem na alma o supremo bem do homem e vivem segundo o espírito, e estes, vivem conforme a carne pois colocam o supremo bem do homem na volúpia do corpo, e com eles todo os demais filósofos que, de algum modo, consideram o

274 Cf. A

RIST., Metafísica, V, 21, 1022b15-21.

275

ARIST., Ética a Nicómaco, III. 276

ARIST., Retórica, II, 1. 277 Cf. A

192 bem do corpo como o bem supremo do homem278. Combatendo ainda estas filosofias, escreve: “Se alguém disser que a carne é a causa de todos os vícios porque a alma revestida de carne vive em maus costumes, mostra claramente que não presta atenção a toda a natureza do homem. (…) Estão, por conseguinte, em erro todos os que pensam que todos os males da alma provêm do corpo. (…) Não foi a carne corruptível que tornou pecadora a alma, mas foi a alma pecadora que tornou o corruptível. Embora existam, procedentes da carne, certos impulsos para o vício e até desejos viciosos, não se devem apesar disso atribuir à carne todos os vícios de uma vida iníqua”279.

É evidente para Agostinho que toda a forma de apatia, de libertação das paixões nesta vida, é neste tempo impensável e perversa: inútil tentativa de negar a própria natureza de criatura decaída, por um lado, e renúncia à possibilidade de salvação que só as paixões oferecem, por outro: “Se alguns desses cidadãos parecem dominar e regrar, por assim dizer, tais afectos da alma, tornam-se tão soberbos e arrogantes na sua impiedade que se incham tanto mais quanto menos sofrem. E se outros na sua vaidade (…) se tomam de amores pela sua própria impassibilidade ao ponto de não se deixarem comover nem excitar nem inclinar pelo menor sentimento, perdem toda a humanidade sem atingirem a verdadeira tranquilidade”280.

De facto, contra a doutrina da impassibilidade estóica ou autores cristão sempre defenderam o movimento da alma para a compaixão, sabendo que um dos pontos altos do cristianismo é a Paixão de Cristo. Muito mais belo, muito mais humano, muito mais conforme com os sentimentos de uma alma piedosa é a conformidade com a misericórdia.

A origem destas críticas de Agostinho prende-se, certamente, com a sua própria experiência pessoal, note-se que ele é o iniciador do estilo de escrita das Confissões, e também com a tensão cristã que lhe vem de fé e do contacto com a Sagrada Escritura. Na Bíblia são inúmeros os exemplos de paixões humanas e de atribuição em sentido metafórico dessas atitudes ao próprio Deus.

A tese da subordinação do apetite sensitivo às faculdades superiores, motivo que servia para se opor à tese estóica que retirava as paixões do espaço ético, será repetido por Escoto.

Agostinho estabelece que a alma, imaterial, não será afectada pelo corpo. Para ele a paixão é uma actividade da alma e não será jamais influenciada pelo corpo. Para o Doutor de Hipona, não há paixões na alma em sentido próprio, mas somente uma auto afecção da alma por ela mesma e a

278 DCD, IX, 4. 279 DCD, XIV, 2. 280 DCD, XIV, 9.

193 moção do corpo não será mais que a causa ocasional281. E acrescenta: “Quem é que não compreende que são vícios mais da alma do que da carne o culto dos ídolos, e envenenamento, as inimizades, as dissensões, as inimizades, as intrigas, as heresias, as invejas?”282

Esta separação tão vincada entre alma e corpo a propósito da origem das paixões, prende-se com a temática do pecado das origens e a origem do pecado. Dizer que as paixões são da alma e só muito secundariamente são do corpo, é sublinhar com insistência a responsabilidade do homem pela corrupção em que se encontra por ter cedido às paixões que não provêm do que Deus lhe deu, o corpo, mas de si mesmo e do mau uso da sua liberdade. Se se dissesse que as paixões vêm do corpo poder-se-ia atribuir a responsabilidade do presente estado de sujeição à morte ao Criador do corpo, desresponsabilizando o homem e afastando do juízo moral todo o mérito e desmérito, a recompensa e o castigo.

O enfatizar da dimensão ética das paixões é certamente o traço mais importante e mais evidente que Agostinho transmitiu aos medievais. Mas no aspecto mais global, a sua teoria das paixões, tal como aparece nos livros IX e XIV d’ A Cidade de Deus, lançou as bases e foi a fonte de inspiração para a elaboração da teoria das paixões na época medieval.