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Dentro do tópico da identidade e distintividade no pensamento metafísico de Escoto, sobressai aquilo que se chamou de distinção modal que significa uma distinção menor que a distinção formal, mas mesmo assim real161. A principal intuição por detrás da distinção formal de Escoto é, regra geral, que a inseperabilidade existencial não inclui identidade na definição, sustentada pela convicção de que isto é um facto acerca do modo de ser das coisas mais do que do modo como as concebemos162. Dado que as realidades distinguidas por meio de distinções formais são existencialmente inseparáveis, elas são realmente idênticas.

O mestre escocês ultrapassa a dificuldade inerente ao facto de o conceito unívoco de ente aplicado a Deus e à criatura afirmando que, como em toda a natureza, os seres podem distinguir-se na base de uma diferença não quiditativa. Significa isto que uma natureza possa manter o mesmo conteúdo formal mas em tempos diferentes variar no modo de possui-lo. Escoto chama a esta diversificação distinção modal163.

Importa compreender melhor de que fala Escoto ao tratar da variação do modo de uma mesma coisa. As formas são, segundo a interpretação da ciência aristotélica, qualidades porque descrevem como um corpo é de modo diferente da quantidade. Quando um corpo altera as suas características isto dá-se porque a forma qualitativa precedente é substituída por uma sucessiva,

159 F

REITAS, “O conhecimento filosófico de Deus segundo J. Duns Escoto”, p. 2543-254. 160

Cf. FREITAS, “O conhecimento filosófico de Deus segundo J. Duns Escoto”, p. 250. 161

Cf. Ord., I, d. 8, p. 1, q. 3, nn. 138-140 (IV 222-223). n. 138: “Respondo quod quando intelligitur aliqua realitas cum modo suo intrinseco, ille conceptus non est ita simpliciter simplex quin possit concipi illa realitas absque modo illo, sed tunc est conceptus imperfectus illus rei; potest etiam concipi sub illo modo, et tunc est conceptus perfectus illius rei (…) [n.139] Requiritur ergo distinctio inter illud a quo accipitur conceptus communis et inter illud a quo accipitur conceptus proprius, non ut distintio realitatis et realitatis sed ut distintio realitatis et modi proprii et intrinseci eiusdem”.

162

Cf. KING, Peter, “Scotus on Metaphysics”, in Williams, op. cit., p. 25ss. 163

Cf. ALLINEY, Guido, Giovanni Duns Scoto, Introduzione al pensiero filosofico, Edizioni di Pagina, Bari 2012, p. 56.

137 qualitativamente igual mas quantitativamente diferente. Há assim um fluxo na forma e é esse fluxo que permite a mudança. O importante é que segundo a teoria do fluxo das formas, que permite a interpretação da mudança e do movimento, a qualidade pode sofrer variações quantitativas, sem que com isso se dê uma substituição da forma mas apenas uma intensificação ou afrouxamento da forma já presente. Uma variação de intensidade é possível ainda que, sob alguns aspectos, impossível de quantificação; ou seja, são mudanças não mensuráveis. O que efetivamente muda é o grau da forma que pode acrescer pelo ajuntar-se de partes ou diminuir pela subtração.

O exemplo típico de Escoto é o da cor branca164 não na sua variação quantitativa do número de corpos brancos mas na intensidade ou modo de ser branco num determinado corpo qualitativamente considerado mas de forma não mesurável. Se se diz que um objeto branco pode intensificar o grau da própria brancura sem que haja em algum momento uma mudança formal, então trata-se de um diverso modo com que seja possível a própria característica formal e por isso se pode falar de distinção modal entre diversas intensidades da cor branca que o objeto possui. A brancura manifesta-se sempre com um certo nível de intensidade mas nada impede de se pensar a cor branca na sua tonalidade pura sem atender à saturação e intensidade com que é percebida. De facto, o conceito de branco permanece inalterável em todas as cores brancas que percebemos que se distinguem, não por uma diferença qualitativa, como o branco se distingue do vermelho, mas por diferença quantitativa, como o branco do gelo se diferencia do branco do mármore165.

Com um interesse claramente metafísico, Duns Escoto vai mais além da física aristotélica. Mas o mesmo procedimento dá-se agora no caso do ente. Analogicamente à cor, também no ser se pode assumir uma gradatividade ou graduação na intensidade sem um acrescento de forma e sem alteração no género ou espécie. Trata-se de distintos modos intrínsecos de ser. Como afirmou Pedro Parcerias: “na ontologia de Duns Escoto, o que caracteriza o conceito metafísico como tal é a sua intensidade ou a sua possibilidade de intensidade, porque a exterioridade da diferença sempre afirma o ente entre o infinito e o finito como graus de entidade e como modos de ser”166. O mesmo se diga do conceito de ente no diferente modo infinito ou finito de ser, onde o infinito não diz um

164

Cf. Quodl. V, n. 9 e Ord., I, d. 3, p. 1, q. 1-2, n. 58 (III 40): “Sicut albeo intensa non dicit conceptum per accidens sicut albedo visibilis, immo intensio dicit gradum intrinsecum albedinis in se”.

165

Cf. ALLINEY, Giovanni Duns Scoto, p. 59. Mais explicitamente Ord., I, d. 8, p. 1, q. 3, n. 139 (IV 222): “Exemplum: si esset albedo in decimo gradu intensionis, quantumcumque esset simplex omni modo in re, posset tamen concipi sub ratione albedinis tantae, et tunc perfecte conciperetur conceptu adaequato ipsi rei, – vel posset concipi praecise sub ratione albedinis, et tunc conciperetur conceptu imperfecto et dificientes a perfectione rei; conceptus autem imperfectus posset esse communis albedini et alii, et conceptus perfectus propius esset”.

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PARCERIAS, Pedro M. G., “Heterogeneidade e afirmação do ente: Duns Escoto e a estrutura da ontologia”, in

138 acidente do sujeito mas indica a intensidade de ser desse sujeito. Daqui se conclui que “ente” é um conceito absolutamente simples. Retomaremos mais adiante a diferença entre finito e infinito.