• Nenhum resultado encontrado

Feitas estas considerações e distinções, Escoto retoma os cinco argumentos principais (nn. 1- 5) que advogam que o objeto da fruição por si não é o fim último, e rebate-os.

1. A grande quantidade de bens invisíveis a fruir implica, como consequência, que não se frua somente do fim último.

Resposta: [n. 18] Escoto começa por fazer uma distinção entre amor ao honesto (amore honesti) e amor do útil e do deleitável (amorem utilis et delectabilis). E interpreta a sentença de Agostinho “fruendum est boni invisibilibus” como estando a referir-se ao primeiro modo, o amor honesto, ou aos bens invisíveis que se dizem no plural não pela pluralidade de essências mas pela pluralidade de perfeições que se podem fruir em Deus. Ou seja, se bem entendemos, o franciscano interpreta esta frase do Bispo de Hipona quer no que diz respeito ao que deve ser fruído com amor honesto e não como a algo útil ou prazenteiro, e a pluralidade dos bens, boni invisibilibus, não que sejam muitos mas porque são muitas as perfeições de Deus onde o homem pode descansar.

63 2. O segundo argumento diz que a finita capacidade de fruir, derivada da finita razão ou natureza do sujeito, faria com que este se saciasse apenas em bens finitos.

Resposta [n. 19]: para responder a esta objecção Escoto analisa a relação entre a natureza do objeto e o seu termo, que podem ser de semelhança ou de proporção. Neste tema entre a potência e o objeto não existe relação de semelhança mas de proporção, pelo que uma potência finita pode ter como correlato um objeto infinito. Mas, quanto ao que sacia é o adequado em razão do objeto e não em adequação real, e tal adequação segue a proporção e a correspondência.

3. Em terceiro lugar, e na continuação do número anterior sobre as potências que são a alma, corpo e Deus, diz Escoto que Deus é Aquele que por sua natureza infinita frui de coisa infinita, ou seja, de si mesmo, o corpo em capacidade menor frui de coisas corporais e a alma, intermédia entre o corpo e Deus, frui de coisas infinitas não fruindo apenas de Deus.

Resposta [n. 20] continuando a argumentação da resposta anterior sobre a proporção entre o objeto e o que o aquieta, o Doutor Subtil afirma que nada é maior que o objeto proporcional da alma, ainda que ela, porque finita, só possa ter atos finitos. O exemplo oferecido para ilustrar o que se afirmou é eloquente, está de acordo como o modo de argumentar de Escoto que, com frequência, o usa: trata-se do cado da visão. Imaginado um objeto com dez graus de brancura visto por alguém que apenas consegue perceber um grau e visto por outro capaz dos dez, diríamos que este segundo, mais perfeito, perceberá perfeitamente aquele objeto branco em todos os graus da sua brancura perceptível. Mas supondo um terceiro, mais perfeito e agudo que o segundo, ele veria mais perfeitamente aquele objeto branco. Diz Escoto que não há excesso da parte daquilo que é para ser visto (ex parte visibilis), do objeto em si que é o que é, nem dos graus do objeto que não se alteram em função daquele que o vê. O excesso estaria da parte dos que vêm e dos atos de ver. Mais adiante trataremos especificamente do objeto adequado a uma potência quando analisarmos o objeto próprio e adequado do intelecto no capítulo da Metafísica, na segunda parte do nosso trabalho.

4. Em quarto lugar, quanto à matéria e forma, duas considerações: qualquer forma sacia a capacidade da matéria e por isso qualquer objeto sacia a capacidade da potência; e toda e qualquer potência tem uma forma que a sacia, um modo de realização que lhe é próprio, como em repouso que se mantém naturalmente e de forma não violenta nem impedida.

Resposta [n. 21]: não há uma única forma determinada que sacia a matéria de um modo total extensivamente, porque são tantos os apetites da matéria quantas as formas que recebe. Por isso nenhuma forma pode saciar por si todos os apetites da matéria a não ser a «forma perfeitíssima». E entende-se por «forma perfeitíssima» aquela que inclui todas as formas, como um objeto que inclua todos os objetos e tal objeto aquieta perfeitamente todos os objetos. Escoto

64 admite que possa haver um objeto que, de algum modo, reúna em si todas as formas, um objeto que aquiete perfeitamente a potência da matéria tanto quanto esta possa ser aquietada. Seria como que um objeto infinito, porque se o finito não recebe senão forma finita, tem uma infinita possibilidade. Não estamos certo de até que ponto isto – a infinita possibilidade de formas para a matéria – não poderia ser um argumento para rejeitar metafisicamente a matéria como princípio de individuação dos entes. Se bem entendemos, porque a matéria pode assumir diversas formas, e isso de modo não violento – porque se assim não fosse mudaria de forma logo que possível, como um grave que cai quando é largado e não repousa enquanto não descansa o mais perto possível do centro, e estaria por si a passar rapidamente de uma forma a outra – qualquer forma sacia de modo estável essa porção de matéria que se mantem nessa forma se não for extrinsecamente alterado. A diversidade de objetos, ou entes como conjugação do par aristotélico matéria e forma, diz que a cada porção de matéria corresponde uma determinada forma e uma determinada forma sacia, na medida em que realiza, uma determinada matéria. Mais, a matéria por si mesma não está determinada a uma forma específica, como é patente de modo particular na matéria prima; mais adiante voltaremos a este conceito. Como afirma Escoto “a matéria prima por si não se inclina a nenhuma forma, e, por isso, repousa naturalmente sob qualquer [forma]; não repousa violentamente, mas naturalmente, por razão da indeterminada inclinação a qualquer [forma]”64.

5. Por último, o assentimento no primeiramente verdadeiro é mais firme que ao verdadeiro, e o mesmo seria para a vontade que adere mais firmemente ao primeiro bem que às coisas boas.

Resposta [n. 22]: o intelecto, por si e segundo o seu poder não consegue assentir mais ou menos firmemente a uma verdade que a outra desde que se mostrem com igual grau de verdade. O que quer dizer que é o grau de veracidade que move mais ou menos o intelecto a aderir-lhe e não o ser verdade nas premissas ou na conclusão. Nas próprias palavras de Escoto: “o entendimento assente a qualquer verdadeiro segundo a evidência que o próprio verdadeiro é capaz de por si produzir no entendimento, e, por isso, não está no poder do entendimento o assentir mais ou menos firmemente ao verdadeiro, mas somente segundo a proporção do próprio verdadeiro que move”65.

O modo de assentimento da vontade, porém, é diferente. A vontade não é movida pela bondade (pois assim como o objeto do intelecto é a verdade o da vontade seria a bondade, ou o verdadeiro está para o intelecto como o bom estaria para o querer) e por isso, está em seu poder

64

n. 21: “materia autem prima ad nullam formam inclinatur sic determinate, et ideo sub quacumque quiescit; non violenter sed naturaliter quiescit, propter indeterminatam inclinationem ad quamqumque”.

65

n. 22: “intellectus assentit cuilibet vero secundum evidentiam ipsius veri quam natum est facere de se in intellectu, et ideo non est in potestate intellectus firmius vel minus firmiter assentire vero sed tantum secundum proportionem ipsius veri meventis”.

65 assentir mais ou menos a um bem, ou mesmo não assentir, independentemente do modo como esse bem é visto – note-se que o exemplo da brancura e do que a vê, é um exemplo de natureza, pois a vista não pode não ver, se não estiver impedida, aquilo que está para ser visto. A conclusão é taxativa e será explicada mais adiante: o consequente da objecção não é válida porque não é válido o paralelismo entre entendimento e vontade.