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O hilemorfismo ou a teoria metafísica aristotélica da composição de matéria e forma está muito presente no pensamento escotista, como nos demais autores medievais. Dado que é impossível que um composto seja formado de alguma coisa e de nada, Escoto pergunta-se se existe a matéria primeira, isto é, se nos seres submetidos à geração e corrupção há uma realidade positiva, alguma entidade real, dotada de ser próprio e distinto realmente do ser da forma. E responde positivamente, pois o composto não seria composto se não se compusesse ao menos de dois elementos; e, por outro lado, a matéria não seria um desses elementos se não tivesse uma realidade positiva e própria, pois para ser sujeito requer-se que seja algo e possua entidade própria. Com isto se julga interpretar corretamente o pensamento de Aristóteles, pois a matéria aristotélica é receptáculo da forma, e se aquela não fosse algo não poderia ser recebida por esta. É impossível,

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De lib. arbitr., III, 1, 2. 193

QQMet., IX, q. 15, n. 41: “Si autem intelligitur rationalis, id est cum ratione, tunc voluntas est proprie rationalis. Et ipsa est oppositorum, tam quoad actum proprium quam quoad actus inferiorum; et non oppositorum modo naturae, sicut intellectus non potens se determinare ad alterum, sed modo libero potens se determinare. Intellectus autem proprie non est potentia respectu extrinsecorum, quia ipse, si est oppositorum, non potest quis determinar; et nisi determinetur, nihil extra poterit”.

Para mais detalhe sobre esta temática ver, por exemplo, Cruz GONZÁLEZ AYESTA, “Introducción, traduccion y notas” in JUAN DUNS ESCOTO, Naturaleza y voluntad, Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis, IX,

150 segundo o pensamento de Aristóteles, reduzir a matéria a simples potência objectiva; é necessário que seja uma potência subjetiva, isto é, sujeito. Se a matéria é uma das causas do ser requer-se que seja algo, pois o nada nada causa. O gerável não pode ser simples e, por isso, está composto de matéria e forma. Por isso diz Escoto: “A matéria tem uma certa realidade fora do entendimento e da causa, e é em virtude desta realidade que ela pode receber as formas substanciais que são simples atos”194. A matéria possui uma certa atualidade ainda que seja mínima entre todos os seres, e tenha,

por isso, a máxima potencialidade. O Doutor Subtil acentua ainda que a matéria é uma realidade distinta da forma e que é algo positivo. A matéria primeira não pode ser considerada como possibilidade de ser, como um ente em potência, como a simples condição positiva de todas as coisas, mas como algo já existente ainda que com existência mínima. Encontrando-se no patamar mais inferior da hierarquia dos seres, é, contudo, um ser195.

A matéria é essencial e constitutivamente determinável, e a forma é essencial e constitutivamente determinante. Em virtude desta complementaridade, a matéria e a forma se unem com vínculo substancial.

Para Escoto não parece impossível que a matéria primeira exista sem forma alguma, pois Deus tem a possibilidade de fazer com que exista a matéria em estado puro. Mas na nossa realidade, no mundo tal como o conhecemos, essa possibilidade está excluída. Uma vez mais joga um papel determinante a verdade de fé no ato criado de Deus ao qual não se pode sacrificar a teoria aristotélica. Que Aristóteles interprete a matéria primeira como pura possibilidade e que lhe negue qualquer realidade independentemente da forma é compreensível porque ignorava o dogma da criação. O que Escoto faz, neste ponto, é adaptar o conceito aristotélico de matéria primeira às exigências da criação.

Escoto faz sua a doutrina comum da composição hilemórfica (matéria e forma) dos seres materiais. Concebe, porém, a matéria não como pura indeterminação (pura potência), mas como dotada de ato próprio, possuindo já uma certa atualização pela qual se distingue do nada e se constitui matéria apta a receber ulteriores perfeições.196

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Ox. II, d. 12, q. 1, n. 13 (Wad. XII 505) citado em MERINO, João Duns Escoto, p. 85 195

Cf. MERINO, João Duns Escoto, pp. 84-87. 196 Cf. F

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Matéria

O problema da matéria coloca-se na análise do individual concreto e mais prementemente quando se pergunta porque é que na união de várias formas com a matéria o resultado final não é um mero agregado de realidades parcialmente autónomas mas um indivíduo dotado de uma precisa unidade própria. Por outro lado, qualquer mudança requer um substrato onde essa mudança ocorre, ou, dito de outro modo, na mudança, seja ela substancial ou acidental, deve haver algo que permaneça o mesmo, suportando a passagem de um modo a outro, de uma forma a outra, e tal realidade é a matéria197. Sendo certo para Escoto que em qualquer caso de mudança deve haver alguma matéria, para haver uma mudança acidental tem de haver também uma potencialidade subjetiva, ou seja, um substrato que receba essa mudança e onde essa mudança se dê. Todavia, “Escoto rejeita o alinhamento simplista da relação entre matéria e forma com a relação entre potência e ato. Assim, a matéria é um ser que é ela mesma «causa e princípio» de seres, um ser que subjaz à mudança substancial”198.

Importa saber se, previamente separada das formas que ela possa porventura receber, a matéria possui uma entidade ou uma realidade própria, pela qual ela possui uma inteligibilidade enquanto matéria mais do que a inteligibilidade sobre qualquer das entidades compostas ou se, por outro lado, a matéria acrescenta uma inteligibilidade à forma que a informa.

Com raízes no pensamento teológico o mestre franciscano remete, em certa medida, para a matéria como termo do ato voluntário do criador e que é uma ideia exemplar no intelecto do criador.

Dado que a matéria é algo, ela é ato. A matéria tem a máxima potencialidade e menor atualidade. Uma vez que ela é receptáculo de todas as formas substanciais (atos absolutamente simples) e também acidentais, ela está eminentemente em potência a respeito dessas formas. Ou dito de outro modo: “a matéria é o ser cujo ato consiste em estar em potência com respeito a todos os atos”199. Note-se também que a sua potencialidade não consiste em não ser nada, mas em não possuir por si mesma nenhuma determinação específica. É evidente que a matéria não pode ser um nada, porque do nada nada vem, o nada nada pode receber e ela é causa do composto, a causa

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Lect., II, d. 12, q. un., n. 29. Ver ARISTÓTELES, Phys. I, 7 (190a14-21); De gen. et corr., 1.4 (319b-320a7);

Metaph., XII, 1-2 (1069b3-9) e XII, 2-3 (1069b32-1070a2).

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KING, Peter, “Scotus on Metaphysics”, in WILLIAMS, Thomas, The Cambridge Companion on Duns Scotus, Cambridge University Press, Cambridge 2003, p. 86, nossa tradução.

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152 material. Em termos aristotélicos ela é o receptáculo da forma, ora se fosse nada como poderia receber a forma? Por isso a matéria tem uma entidade própria à parte da forma. O mesmo diz Agostinho: “julgava inexistente o que estava privado de toda a forma do que concebia um ser entre a forma e o nada, que não fosse nem forma nem nada, um ser informe próximo do nada”200.

A matéria é o princípio de potencialidade no ente composto e, ao mesmo tempo, está dotada de uma atualidade que lhe é própria. Como conciliar estas duas posições? Duns Escoto distingue entre dois tipos de potencialidade, a potencialidade objectiva, se o seu todo for meramente possível, algo que ainda não é, um não ente; totalmente em potência de existir num tempo futuro; aquilo que é uma potência objectiva é um não ente porque não é um ente real; e a potencialidade subjetiva, algo possível de se pensar como existente mas que realmente não existe, ou seja, o sujeito com potencialidade para sofrer alteração ou mudança já existe, mas o efetivar da potencialidade ainda não existe.

A matéria está em potência subjetiva da forma porque é o sujeito da mudança. Mais ainda, a matéria está em potência de toda a forma, mas por isso mesmo deve ter à sua volta uma entidade capaz de receber a forma e deve ser por isso dotada de um certo grau de atualidade dado que a mudança não se dá se não existir um substrato201. Em suma, “a matéria é uma entidade positiva que está em potência para ser aperfeiçoada noutra entidade. Para Escoto não é contraditório que a matéria tenha uma certa atualidade e a potencialidade de receber outra forma. Segundo o binómio ato-potência, a matéria é já em ato sem que seja totalmente atualizada por conservar grande potencialidade. A matéria é tida como um ente realmente existente e por isso é objeto próprio do intelecto mas a pergunta mantém-se: como se pode conhecer a matéria prima que é por definição a matéria com o mínimo de atualidade, e, por isso, de forma? Para Escoto ela é conhecível como privada de forma. A matéria é conhecível precisamente enquanto pertence à forma, enquanto seja princípio potencial realmente existente”202.

Porém, Escoto argumenta que a matéria não pode ser simplesmente identificada com a potência subjetiva, dado que a matéria permanece uma vez atualizada a potência modal subjetiva. A matéria é algum ser positivo no qual a potência modal subjetiva reside. Escoto rejeita o paralelo simplificado da relação entre matéria e forma com a relação potência e ato. Ele sustenta que é uma e

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Conf. XII, 6, 6: “Quiddam inter formam et nihil nec formatum nec nihil, informe proper nihil”. 201

Cf. Lect., II, d. 12, q. un., n. 1-81 (XIX 85) Utrum in substantia generabili et corruptibili sit aliquia entitas

positiva distincta a forma quae dicatur esse matéria. n. 10: “(…) circa istam quaestionem tria concurrunt

declaranda: primo quod materia est, secundo quale esse habeat et quale ens sit, et tertio quod realiter sit a forma diversa”.

202 A

153 a mesma coisa que permanece, sustenta, toda e qualquer mudança substancial: não apenas existe a matéria, mas existe a matéria prima – isto é, matéria em potência não apenas para qualquer forma mas para todas as formas.