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Natureza comum e princípio de individuação

A natureza e as suas identidades são o que fazem com que as substâncias individuais no mundo sejam o mesmo em tipo e o que causa que a mente chegue ao conhecimento desse tipo quando uma natureza é recebida no intelecto. Ou seja, a natureza, e as suas identidades, é o que faz com que as substâncias individuais sejam do mesmo tipo e o que permite à mente conhece-las como da mesma espécie quando as percebe. A natureza é o que faz com que se possa classificar distintas coisas do mesmo modo e é o que permite à mente perceber uma coisa como pertencente a uma espécie determinada e comum a vários indivíduos.

Segundo Duns Escoto a natureza tem uma menor unidade e entidade por si mesma, isto é, não tem, por si mesma, um «isto», ou seja, a sua unidade é um tipo de comunidade. Assim a natureza, por si mesma, pode ser encontrada juntamente com um distinto princípio de individuação, sem contradição. Ela não é atualmente universal quando primeiramente presente no intelecto. Dado que entidade e unidade estão relacionadas como noção transcendente, elas são concomitantes, e a natureza goza de uma unidade que é proporcional à sua identidade.

A natureza tem uma existência real fora da mente precisamente porque tem a sua própria entidade que naturalmente entra na constituição das coisas singulares fora da mente. E porque ela tem a sua própria entidade, tem a sua própria unidade. Esta unidade mínima, contudo, é

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Ord. II, d. 12, q. 1, n. 13 (XII 505): “Quod material dicit entitatem aliquam positivam extra intellectus et causa in suam, secundum quam entitatem, est capax formarum substantialium, quae sunt actus simpliciter”.

155 suficientemente indiferente para permitir que a natureza, por si mesma, se encontre em qualquer princípio de individuação. Uma menor unidade é compatível com a maior unidade204.

O intelecto apreende sempre a natureza como universal, não como singular. Tal como Avicena, Escoto pensa que a natureza nunca existe separada das coisas concretas fora da mente ou trazidas para a mente, e que há, não obstante, uma natural prioridade da natureza no que respeita à sua manifestação quer na mente quer fora dela. Por isso ela goza de um nível ontológico prioritário e de uma identidade que está presente nas coisas singulares fora da mente, onde se encontra no seu estado contraído205.

A natureza de uma coisa é anterior à sua singularidade e universalidade, tal como é anterior à diferença individual. Somente existe o indivíduo e tudo o que existe no indivíduo está individualmente ou individualizado. Isto é importante para compreender a relação existente entre a natureza comum e o singular. A natureza comum não existe como comum no indivíduo, mas que dá- se individualmente em todos os demais, enquanto a natureza individual se dá unicamente no indivíduo. Quando a diferença individual é combinada com a natureza comum, o resultado é o indivíduo concreto que realmente difere de tudo o resto e realmente concorda com outros na mesma espécie.

A tese fundamental de Escoto sobre a natureza comum é que esta tem um certo grau de realidade e de unidade, ambos inferiores aos do indivíduo concreto, mas suficientes para que chegue a ser, por uma parte, objeto de consideração metafísica do entendimento, e elemento constitutivo da substância, por outra. A natureza comum é indiferente ao singular e ao universal, pois não é nem única nem múltipla, nem singular nem universal, já que precede naturalmente todos estes modos de ser. Enquanto não se identifica com nenhum dos modos possíveis de ser, e os precede a todos, a natureza comum possui uma quididade que a faz capaz de ser objeto do entendimento e de ser definida. Esta natureza comum ou específica tem uma quididade e unidade própria e é indiferente à singularidade e à universalidade; pode converter-se em substância concreta e singular ou em conceito universal. Se se vincula ao princípio de individuação, a natureza comum constitui o elemento específico da substância singular. Se se vincula ao entendimento converte-se no objeto do conceito singular.

204

Cf. NOONE, Thimoty, “Universals and individuation”, in WILLIAMS, The Cambridge companion to Duns Scotus, p. 109.

156 O conteúdo da natureza comum desenvolve-se em dois pontos importantes: a substância concreta no contexto da individuação e o conceito universal na sua relação com o entendimento.

A tese escotista sobre a natureza comum, em relação com o entendimento, sintetiza-se deste modo: a natureza comum constitui o fundamento remoto do universal, já que é indiferente tanto à singularidade como à universalidade206. A natureza comum considerada como o existente concreto é o universal físico. Conceptualizada pelo entendimento é o universal metafísico, e aplicada a todos os indivíduos da espécie é o universal lógico. Deste modo, entre a unidade concreta do indivíduo sensível e a unidade universal inteligível da predicação lógica existe a natureza comum, como unidade específica, unidade de essência e de inteligência.

Para Escoto, o fundamento in re do universal não está no indivíduo, mas na natureza comum. Quer isto dizer que entre as coisas reais e concretas há uma certa comunidade ou parentesco físico. A natureza comum possui em si um grau de realidade e de unidade extraída do singular. Como explica Honnefelder, “a natureza comum é ontologicamente anterior aos modos de unidade ou de pluralidade, de singularidade ou de universalidade, do ser fora ou do ser dentro do intelecto, e possui como tal uma entidade própria e um unidade real própria, a qual seguramente é «menor do que a unidade numérica» (cf. Ord. II, d. 3, p.1, q. 5-6, n. 34, VII 404s)”207.

Embora a natureza comum seja por essa mesma razão uma entidade real, um universal extra-mental, não existe separadamente do indivíduo que a contém ou da mente que a toma como objeto de intelecção. A natureza comum não possui uma unidade numérica ou individual. A natureza comum de a não é uma propriedade contável, pois não há mais natureza se houver mais indivíduos

206 No tema dos universais, Escoto preocupa-se em precisar o fundamento objectivo dos conceitos, seguido a sua formulação e sensibilidade oxfordiana. Intui no mundo real uma comunidade que, sem chegar a ser uma universalidade, a prefigura e a fundamenta. Escoto defende um realismo moderado e rejeita explicitamente as soluções extremas do ultrarrealismo e o nominalismo. Para os primeiros existe realmente o que se pode chamar de universal, como a humanidade ou a cavalidade, para os segundos, materialistas, os universais mais não são do que nomes.

207 H

ONNEFELDER, João Duns Scotus, p. 148. Ord. II, d. 3, p.1, q. 5-6, n. 34, VII 404s: “Et sicut secundum illud esse non est natura de se universalis, sed universitas accidit illi naturae secundum primam rationem eius, secundum quam est ibiectum, - ita etiam in re extra, ubi natura est cum singularitate, non est illa natura de se determinata ad singularitatem, sede st prior naturaliter ipsa ratione contraente ipsam ad singularitatem illam, et in quantum est prior naturaliter illo contraente, non repugnat sibi esse sine illo contrhente. Et sicut obiectum in intellectu secundum illam primitatem eius et universalitatem habuit vere esse intelligibile, ita etiam in re natura secundum illam entitatem habet verum esse reale extra animam. – et secundum illam entitatem habet unitatem sibi proportionalem, quae indifferens est ad singularitatem, ita quod non repugnat illi unitate de se quod cum quacumque unitate singularitatis ponatur (hoc igitur modo intelligo ‘naturam habere unitatem realem, minorem unitate numerali’); et licet non habeat eam de se, ita quod sit intra rationem naturae (quia ‘equinitas est tantum equinitas’, secundum Avicennam V Metaphysicae), tamen illa unitas est propria passio naturae secundum entitatem suam primam, et per consequens seque est ex se ‘haec’ intranee, neque secundum entitatem propriam necessario inclusam in ipsa natura secundum primam entitatem eius”.

157 nem é a natureza um tipo especial de indivíduos, não é um universal ou individual geral. Uma natureza é indiferente a estar num indivíduo ou em mais indivíduos, em contraposição com a haecceidade ou identidade individual de a.

Percebemos claramente que o próprio conceito de natureza é problemático. Para Escoto a natureza não é um ser singular dotado de uma unidade numérica, nem um universal sem outra unidade que a sua predicabilidade, mas é algo entre ambos que não se confunde com um nem com outro208. A natureza não é um ser com existência à parte, também não é um simples ser de razão, como um universal lógico, mas é uma entidade, uma realidade, uma formalidade. A natureza comum ou quididade é o objeto do entendimento considerada na sua indiferença essencial com respeito tanto à universalidade quanto à singularidade.

Há nas coisas uma natureza que cada coisa possui em comum com as outras. Ou seja, as coisas têm uma natureza partilhada em comum com outras coisas das quais a ambas se pode atribuir um nome adequado a ambas. Por exemplo a humanidade no homem é comum a todos os homens: “essa natureza comum, em si mesma, não é singular, nem universal, mas é comum na realidade a vários distintos em número e é pensada como universal por cada intelecto – em suma, ela é indiferente a ser realmente como singular ou ser inteligivelmente como universal”209.

A natura communis é uma realidade; tem uma unidade própria ainda que menor que a unidade numérica, distinguindo-se das notas individualizantes mediante uma distinção formal ex natura rei, distinção maior que qualquer distinção lógica. Por isso, a natura communis é, de si, indeterminada tanto à universalidade como à individualidade ou singularidade.

Deste modo, o conceito de «natureza comum» relaciona-se com o modo de compreender quer o problema da individuação, quer a questão dos universais, em que o primeiro converge como o conceito cunhado por Escoto de haecceitas.

A questão metafísica da individuação prende-se com a concepção daquilo que, a partir de uma natureza comum, diferencia os indivíduos entre si. A diferença individual não é entre dois indivíduos mas de um indivíduo a outro e essa diferença é um ato. Platão e Sócrates não diferem um do outro como dois indivíduos distintos por uma diferença que exista entre os dois, mas porque um é este homem aqui e o outro é aquele homem ali, e usamos esta distinção para apontar o que nós, enquanto seres finitos, não podemos descrever mais perfeitamente. Diferem em ato, não em simples relação. Donde a diferença especifica é imanente ao indivíduo. É, por isso, uma entidade positiva,

208

GILSON, Duns Scot, p. 118. 209 P

158 pois contrai ou reduz à singularidade a natureza comum dos indivíduos da mesma espécie, donde a diferença individual é o «ato» da natureza comum, a atualização concreta do comum a indivíduos da mesma espécie210.

Universais

Podemos dizer que o problema dos universais procura examinar a questão de se as coisas das quais temos percepção intelectual e das quais falamos quer na linguagem coloquial do dia a dia, quer nos discursos técnicos, estão realmente fundadas no concreto, essas coisas individuais que percebemos à nossa volta, e se assim é, como é que se fundam.

Entre os textos clássicos ao tempo de Escoto para a discussão da temática dos universais encontravam-se a Isagoge de Porfírio; os De prima philosophia, Logica e De Anima de Avicena e as obras de Aristóteles Metaphysica e De anima, tal como os comentários de Averróis e as interpretações de Godofredo de Fontaines, Tomás de Aquino e Henrique de Gand.

Tratar dos universais é tratar da relação entre o plano da predicação e o estatuto ontológico da coisa. As posições situam-se entre dois extremos: ou a redução a um plano puramente linguístico o que quer dizer que existem apenas entes singulares privados de toda a estrutura metafísica que funda a predicação, e, assim, os universais são meros nomes que por convenção ou natureza podem ser distribuídos a muitos sujeitos mas ontologicamente estranhos a esse atributo, os nominalistas. Outra hipótese, na qual se insere Duns Escoto, é a de que entre linguagem e realidade haja uma correspondência fundada na constituição da própria realidade, distinguindo os planos lógico e ontológico. Efetivamente Avicena já tinha feito um significativo esforço no sentido de formular uma teoria apta a pôr em relação a realidade das coisas com a abstração da linguagem. O mestre franciscano estava a par deste esforço e retém o exemplo aviceneano da “cavalidade”: “E como isso pode ser entendido, pode ser visto também através da palavra de Avicena, Metafísica, V, onde ele teria que "Cavalidade é somente cavalidade, nem de si mesmo um, nem muitos, nem universal, nem particular”211. Procurando compreender esta expressão “Equinitas tantum” podemos dizer que a “cavalidade” não existe nem na mente nem no mundo externo (ipsa enim ex se nec est in existens in his sensibilibus nec in anima) e não é nem um nem muitos (nec est multa nec unum) identifica-se com

210 Cf. S

ONDAG, Duns Scot, p. 128.

211

Ord., II, d. 3, p. 1, q. 1, n. 31 (II 402-402): “Qualiter autem potest intelligi, potest aequaliter videri per dictum Avicennae, Metaphysica, V, ubi vult quod equinitas sit tantum equinitas, nec ex se una nec plures, nec universalis, nec particularis”.

159 a essência tomada em si mesma (in se) que não é nem universal nem singular (nec est universale nec est singulare) e que precede, na ordem do ser, a sua existência quer no mundo externo, quer no entendimento (praecedit in esse et individuum et intelligibile). Se há alguma coisa de comum entre os cavalos reais e o conceito de cavalo é a “cavalidade” entendido como um tipo de definição geral de cavalo precedente às suas possibilidades de realização, quer como ente real quer como conceito mental.

A ideia de Avicena é que esta definição não existe apenas sozinha mas sempre num destes dois modos; ou no indivíduo concreto quando é reunida com as características concretas particulares que acompanham qualquer cavalo real, ou pelo concreto mental de quem pensa um cavalo. A “cavalidade” enquanto tal não é dotada de uma forma de existência autónoma mas é o conteúdo definidor condiviso dos cavalos reais e do conceito de cavalo, por isso a “cavalidade” é indiferente ao singular e ao universal e não é por si nem por muitos212.

Duns Escoto segue a linha de Avicena adaptando-a ao seu próprio realismo moderado. Primeiramente atribuindo uma forma de existência à natureza comum: tudo o que pode entrar na composição com outro não é um puro nada mas deve ser necessariamente qualquer coisa e, portanto, existir. O que não impede que a sua existência parcial seja completada ao adquirir uma forma mais completa de existência quando se contrai no indivíduo concreto ou se generaliza no conceito mental. Há por isso na filosofia do Doutor Subtil uma certa ontologização da natureza comum.

De facto, Escoto também aceita que haja conceitos universais. Um universal existe atualmente na mente como um conceito aplicável a muitas coisas, mas é também garantido por uma natureza comum existente em indivíduos de realidade externa.

O universal em segundo sentido, ou seja, entendido em relação com a forma, isto é, a coisa de segunda intenção causada pelo intelecto e aplicável às coisas de primeira intenção, apela para uma intenção ou noção do intelecto. De acordo com Escoto, o intelecto forma a intenção lógica do universal quando percebe que a natureza do homem, ou de qualquer outra coisa, está fundada quer em muitos indivíduos quer seja praticável de muitos indivíduos e atribui a segunda intenção de espécie a tal tipo de conceito: “Alguma coisa [o termo universal] é entendida em referência ao sujeito, principalmente a coisa de primeira intenção, para a qual a intenção universal apela, e neste sentido de universal é o primeiro objeto do entendimento. Noutro momento, o universal é entendido em relação com a forma, isto é, a coisa de segunda intenção causada pelo intelecto e

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160 aplicável às coisas de primeira intenção, e é neste sentido que os lógicos falam com propriedade dos universais. De um terceiro modo, o universal é entendido em relação com o agregado de sujeito e forma, e isto é um ser acidental dado que combina diversas naturezas, e neste sentido isso não pertence à consideração de nenhum estudo filosófico. Por isso nós só falamos nesta obra dos universais considerados no segundo sentido”213.

Noutro momento aplica Escoto de forma coerente a noção de transcendente a este princípio: “se «uno» é um transcendental convertível com o ser, tudo aquilo que possui um ser por mínimo nível de existência, possuirá um correspondente nível de unidade. Donde, a própria natureza comum é dotada de um certo grau de unidade, ainda que se trate de um grau inferior àquele da unidade numérica que distingue o singular concreto não posteriormente identificado”214. Sublinhe-se que quando Escoto atribui à natureza uma verdadeira existência real fora da mente não quer sustentar que ela possua uma existência independente do seu concomitante, como se fosse um existente no mundo platónico das ideias ao modo do realismo ingénuo. Está também convencido que a natureza comum, que poderá corresponde à espécie no nível imediatamente anterior à da diferença específica, existe sempre ou no indivíduo singular numericamente distinto de outro ou no conceito mental. Assim, a natureza comum é qualquer coisa comum ao indivíduo concreto e ao conceito mental.

A interação entre os conceitos de natureza comum e individualidade define a posição de Escoto quanto aos universais. Ao nível de entidades há somente indivíduos, mas indivíduos de um tipo são essencialmente iguais aos outros. Incitatus, Bucéfalo ou Blan são três cavalos, mas não há tantos tipos animais equinos como há cavalos. Esta própria variedade apela à universalidade. Bucéfalo é um cavalo mas não implica que o cavalo de Aristóteles não seja também ele um cavalo, isto porque, um indivíduo, qualquer que ele seja, tem quer a individualidade quer a natureza comum.

213 In Porph, q. 4 “Utrum universale sit ens: universal est ens, quia sub ratione non-entis nihil intelligitur, quia intelligibile movet intellectum. Cum enim intellectus sit virtus passive, per Aristotelem III De Anima, non operator nisi moveatur ab obiectuo; non-ens non potest movere aliquid, quia movere est entis in actu; igitur nihil intelligitur sub ratione non-entis. Quidquid autem intelligitur, intelligitur sub ratione universalis; igitur illa ratio non est non-ens”. Citado em NOONE, “Universals and Individuation”, 106.

No comentário à obra de Porfírio, Escoto dedica-lhe nove questões seguidas: 4. Se o universal é um ente; 5. Se o universal é por si inteligível; 6. Se o universal tem certas características; 7. Se o universal é objeto deste livro [de Porfírio]; 8. Se o universal é unívoco aos cinco predicáveis; 9. Em que está o universal se no objecto, ou na realidade ou no intelecto; 10. Se é verdade «Homem é universal»; 11. Se a afirmação «Homem é universal» é por si [verdadeira]; 12. Se os universais são somente cinco.

214 A

161 A posição de Duns Escoto sobre esta temática tão complexa e sofisticada, foi resumida por Marilyn McCord Adams215 em seis pontos:

1. uma natureza é comum de si mesma e é comum em realidade 2. individualidade é numericamente uma e particular de si mesma

3. a natureza comum de a e a haecceidade de a existe na realidade como constitutivos de a 4. a natureza é numericamente uma denominativamente e é numericamente muitas em distinção numérica particular

5. a natureza é completamente universal apenas enquanto existe no intelecto 6. a natureza de a e a haecceidade de a não são formalmente idênticas.

Como já vimos, a questão dos universais na relação com o concreto, volta a pôr-se na relação entre o universal, seja ele alguma coisa ou um mero concreto ou nome, e o real concreto e particular. Por outras palavras, o princípio de individuação é o que distingue não apenas Sócrates e Platão da humanidade de que ambos participam, mas, principalmente, o que distingue Sócrates de Platão, sendo os dois homens. O mestre escocês distancia-se da posição que toma a matéria como princípio de individuação (adoptado, por exemplo, por Tomás de Aquino), de circunscrição de uma realidade com fronteiras que impedem a confusão com outra realidade. Escoto afirma que há algo mais que faz mais acertadamente essa individuação. Em termos de metafísica escotista, a matéria é notoriamente insuficiente para conferir individualidade.

Escoto chama universal extra-mental da "natureza comum" (natura communis) ao princípio da individualização da "haecceidade" (haecceitas). A natureza comum é comum na medida em que é "indiferente" a existir em qualquer número de indivíduos. Mas tem existência extra-mental apenas nas coisas particulares em que ela existe, e neles é sempre "contratado" pela haecceidade. Assim, a humanidade natureza comum existe em Sócrates e Platão, embora em Sócrates é feita individual por haecceitas de Sócrates e de Platão por haecceitas de Platão. A humanidade de Sócrates é individual e não se repete, como a humanidade de Platão; humanidade ainda é comum e repetitiva, e é ontologicamente anterior a qualquer exemplificação particular do mesmo.

215

MCCORD, Adams, “Universals”, in Cambridge History of Later Medieval Philosophy, p. 414, citado por VOS, Anthony, Duns Scotus, p. 284.

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Individuação

O princípio de individuação “não consiste na matéria ou na forma. Não é a matéria primeira pois esta é o fundamento indistintivo e indeterminado da realidade e, portanto, não pode ser