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À continuação do comentário, Duns Escoto trata então dos argumentos contra em quatro artigos.

Art 1.: Onde se pergunta se a vontade frui do fim apreendido obscuramente e em geral pelo intelecto. A este artigo Escoto responde negativamente, pois assim como a vontade não frui necessariamente das coisas ordenadas ao fim, assim também não frui necessariamente do fim apreendido obscuramente e em geral (n. 143).

Esta é a opinião de outros (Henrique de Gand e Tomás de Aquino) que defendem que a vontade necessariamente frui do fim apreendido obscuramente e em geral, como é concebido comummente na bem aventurança. O que provam por três razões:

1. Primeiramente mais um argumento do mundo da física: “Como é o princípio nas coisas especulativas, assim é o fim nas práticas” (Arist., Física, II). Isto implica que se o entendimento, por necessidade, dá assentimento aos princípios especulativos, do mesmo modo, a vontade, por necessidade, dá assentimento ao fim último nas coisas práticas (n. 83).

Mas esta argumentação não colhe para o Doutor Subtil. Por isso, Duns Escoto rejeita a comparação entre o movimento da física e o da vontade por comportar muita falsidade, porque dele

78 se concluiria que assim como assentimos necessariamente nas conclusões por causa dos princípios, assim também assentiríamos necessariamente nos meios ordenados ao fim por causa do fim, o que é falso. Porém, comparados quanto à potencialidade, assim como há ordem naquelas verdades em si, assim também há ordem entre os bens, e como aquelas verdades são conhecidas ordenadamente, também os bens devem ser ordenadamente queridos. O mesmo já não vale quanto à necessidade de modo de atuar do intelecto e da vontade considerados como potências absolutas. Porque não é necessário que a vontade observe nos seus atos a ordem que as coisas amadas devem ter pela sua natureza. O que se explica porque no entendimento há necessidade pela evidência do objeto que causa necessariamente o assentimento do intelecto, mas nenhuma bondade do objeto causa necessariamente o assentimento da vontade, antes a vontade livremente assente a qualquer bem, e tão livremente assente a um bem maior como a um menor (n. 147 como resposta ao n. 83).

2. Em segundo lugar (n. 84) este artigo (que a vontade por necessidade frui do fim apreendido obscuramente e em geral) é sustentado, segundo alguns, pela afirmação de que a vontade necessariamente quer aquilo por cuja participação quer quando quer; sendo que nenhuma outra coisa é querida senão enquanto é um bem, e mais ainda o bem como fim último, como parece provar-se por Agostinho que diz: “tira este bem e aquele bem (…) e vê, se podes, o próprio bem, o bem de todo o bem”79 (n. 84).

Escoto rejeita esta opinião porque não reconhece necessidade no modo de operar da vontade, pois ela não quer nada necessariamente (n. 148). E por isso, não é necessário que queira necessariamente aquilo em razão do qual quer todas as outras coisas. Também é falso que tudo quanto quer o queira por virtude ou participação do último fim, pois pode entender-se a virtude ou participação de duas maneiras: a) aquilo que pode ser entendido como eficiente ou contendo virtualmente o que se deseja; e neste caso não é necessário que se queira o maior como contendo o menor, como não é necessário que primeiro se veja Deus com os olhos corporais se se vê, por exemplo, o calor que é uma certa participação de Deus como causa eficiente. b) Entendendo a virtude e participação do segundo modo, isto é, acerca da participação daquilo como de nos primeiro objeto querido, então é falso que se queira necessariamente aquilo em razão do qual quer todas as outras coisas, porque, de facto, qualquer coisa que se queira não se quer por causa de Deus enquanto querido, se assim fosse todo o ato da vontade seria uso actual, remetendo qualquer coisa querida ao primeiro objeto querido.

79 3. Finalmente, e em terceiro lugar (n. 85), dizem que a vontade não pode não querer algo se não aquilo no que há algum defeito de bem ou alguma razão de mal, o que não acontece no fim último, donde a vontade frui necessariamente de um fim apreendido obscuramente em geral.

É clara a posição de Escoto sobre a vontade na sua simultânea dependência e independência face ao intelecto (dependência na medida em que só se pode querer uma coisa enquanto conhecida, independência na medida em que se pode agir contrariamente à lógica binária e natural da razão). Sendo certo que, como afirma Agostinho, “nada está tanto no poder da vontade como a própria vontade”80 então, o ato da vontade está mais no poder da vontade que qualquer outro ato e, por conseguinte, o ato da vontade está no poder da vontade não só mediatamente, mas também imediatamente. Ou seja, o ato de entendimento acerca do fim está no poder da vontade e, consequentemente, também o ato da vontade; porém, está no poder da vontade o querer ou não querer o fim mediante o ato do entendimento. Isto é patente porque no poder da vontade está o afastar o entendimento da consideração do fim, dado que ele se apresenta obscuramente, e feito isto, a vontade não quereria o fim, pois não pode ter um ato acerca daquilo que ignora. Assim, a vontade não frui do fim com necessidade absoluta, mas apenas com necessidade condicionada. E justifica-se: enquanto considera o fim e, por conseguinte, o seu querer, se oferece confusamente outra coisa, cuja consideração é mandada pela vontade, e assim indiretamente afasta o entendimento da consideração do fim. No momento em que se afasta dessa consideração cessa com prioridade de natureza a consideração e, com posterioridade de natureza, a própria volição. A isto acrescenta-se as distrações que os fantasmas podem trazer, como diz Agostinho: “Não procures saber o que é a verdade; logo se vão interpor a cerração das imagens corporais e as nuvens dos fantasmas, e hão-de perturbar a claridade que no primeiro instante brilhou para ti, no momento em que eu dizia: verdade”81. Ou seja, se por um lado o desvio da atenção pela consideração de outra coisa desvia o querer, porque a vontade impele à intelecção daquele objeto a que esteja mais inclinada, também o que vem à imaginação, e que não está no poder da vontade controlar ou remover, desviam da consideração do fim último e, por conseguinte, da sua fruição.

Note-se ainda que a potência livre por participação não tende mais ao objeto perfeito que a outro objecto, e o mesmo acontece com a potência livre por essência. Mas não há outra diferença entre o fim querido e outras coisas queridas senão a diferença de perfeição do objecto. Tomemos para tanto o exemplo: a vista, que é potência livre por participação (enquanto o seu agir está sob o

80

Retract., I, 9 e 22. 81

De Trin., VIII, 2, 3: “Noli quaerer quid sit veritas, statim enim se opponent caligines imaginum corporalium et nubila phantasmatum et perturbabunt serenitatem quae primo ictu diluxit tibicum dicerem, veritas”.

80 império da vontade) não vê mais necessariamente o belíssimo que o menos belo; por isso vê igualmente um e outro e dum e doutro se afasta de modo contingente. Porém, se isto é válido também para a potência cognitiva já não o é para a apetitiva, dado que o belíssimo visto deleita mais que o menos belo.

De facto, para Escoto, ainda que não haja defeito algum de bem ou malícia (porque o objeto de querer não é o mal ou o defeituoso), pode, contudo, não querer aquele bem perfeito, porque está em poder da vontade não só o querer deste ou de outro modo, mas também o querer ou não querer, porque a sua liberdade é de fazer ou de não fazer (n. 149). O que se pode entender das palavras de Agostinho anteriormente citadas: “nada está tanto no poder da vontade como ela mesma” (Agost. Retrat. I, 9 e 22). Poderia ainda dizer-se que a própria vontade por algum querer elícito governa a ação da potência inferior ou a proíbe, mas não pode suspender todo o querer, porque então não quereria nada e quereria tudo ao mesmo tempo. Mas pode suspender deliberadamente o querer a respeito de alguma coisa de modo a querer-não, fazer agora alguma coisa até que se mostre mais claramente. E este querer-não é um ato deliberado e escolhido.

A este artigo responde Escoto que como a vontade não frui necessariamente das coisas ordenadas ao fim, assim também não frui necessariamente do fim apreendido obscuramente e de modo universal (n. 143).

Art. 2. No segundo artigo diz-se, mais uma vez Henrique de Gand, que a vontade pode não fruir do fim apreendido assim obscuramente em particular. O que pode provar-se porque pode fruir de algo que sabe ser incompatível com tal fim, como é claro daquele que peca mortalmente (n. 86).

Porém, pelo que foi dito em relação ao artigo 1, a razão de que no fim último não há defeito algum de bem nem alguma malícia, parece concluir de maneira igualmente eficaz a respeito do fim apreendido em particular. Mais ainda, se os bens criados são bens por existirem e por participação, mais verdadeiramente são bens por participarem do fim último em particular (n. 135).

Em resposta a este artigo, se a vontade frui do fim aprendido obscuramente e em particular, Escoto aceita a opinião que diz que à vontade não é necessário que frua do fim apreendido obscuramente e em particular.

Art. 3. O fim claramente visto como quem tem a vontade elevada sobrenaturalmente, como aqueles que tem uma vontade perfeita pelo hábito sobrenatural. Diz-se que necessariamente frui do fim assim visto, isto é, claramente, pela seguinte razão: não se encontra no fim nenhuma razão de

81 mal nem mesmo algum defeito de bem, e isto vê-se no fim com visão prática; e acrescenta-se aqui que é tanta a conexão ou a necessidade da conexão, que Deus não pode de potência absoluta, separar a visão prática de si da fruição (n. 87).

A isto o Doutor Subtil responde que a vontade elevada não frui necessariamente, quanto dela depende, do fim assim visto (n. 145).

Art. 4. Quanto ao fim claramente visto por quem não tem o hábito sobrenatural na vontade (supondo que Deus se mostra ao entendimento não dando algum hábito sobrenatural à vontade) dizem alguns, designadamente Godofredo de Fontaines, que: a) É absolutamente impossível que a vontade não elevada pela caridade frua do fim ainda que visto, porque o fazer pressupõe o ser; logo o fazer sobrenatural pressupõe o ser sobrenatural; porém, a vontade de que se trata não tem ser sobrenatural, logo não pode ter um ato sobrenatural; b) Se assim fosse a vontade poderia ser bem aventurada o que é falso, porque então a caridade não seria necessária para a bem aventurança da vontade; c) Isto provam porque fruir do fim visto em particular parece ser a bem aventurança ou incluir formalmente a bem aventurança. E, ainda, se dada a visão necessariamente se dá a fruição, não havendo uma também não há a outra, donde se conclui que a visão é causa da fruição (nn. 88- 90).

Mas contra isto pode argumentar-se que, se aquilo por que alguém pode agir simplesmente é a potência, então a vontade não pode ter pelas suas forças naturais nenhum ato acerca do fim visto, mas pode se tiver caridade. Porém é falso que a caridade ou é simplesmente a potência volitiva acerca daquele objeto ou parte da potência volitiva. Do mesmo modo, se o objeto amável aproximado ou apresentado menos suficientemente à vontade pode suficientemente determinar o ato da vontade, mais ainda se o mesmo objeto é aproximado ou apresentado mais perfeitamente; por isso, se um bem obscuramente apreendido pode ser querido pela vontade não elevada pelo hábito sobrenatural, muito mais o pode ser com algum ato da vontade face ao mesmo objeto claramente visto.

Mais ainda. Quando se diz que a vontade assim poderia ser bem aventurada, digo que não, pois como afirma Agostinho: “o bem aventurado tem tudo quanto quer e não quer nada de mal”. Ou seja, é bem aventurado o que tem tudo quanto pode querer ordenadamente, e não só tudo quanto agora quer em ato; porque então algum viandante poderia ser bem aventurado por aquele momento quando pensa apenas numa coisa tida ordenadamente. Mas a vontade pode querer ordenadamente ter a caridade, porque pode querer ter não só a substância do ato de fruir, como também ter a

82 fruição agradável a Deus (n. 155). Assim, o mestre Franciscano é da opinião que a vontade não elevada sobrenaturalmente pode fruir daquele fim último (n. 146).