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Se a fruição é um ato elicitado pela vontade, ou é uma paixão recebida na vontade

capaz de, pela vontade, aderir a um bem que lhe seja próprio por causa desse mesmo bem. Colhendo as melhores argumentações das autoridades de Agostinho e Aristóteles, Escoto procura definir a fruição quanto ao significado do nome e dos conceitos. A sentença agostiniana “fruir é aderir por amor a alguma coisa por razão dela mesma” (De doctr. christ. I, c.4 n. 4) serve a Duns Escoto para apontar o fim último do homem, como realização plena da pessoa, e sobrepor a ciência prática que dá esse conhecimento, a Teologia, à que não consegue, pela sua própria natureza, descrever quer esse fim último quer os meios para o alcançar, isto é, a Filosofia. Que a fruição seja um ato da vontade e não meramente um deleite passivo é claro para Escoto: a vontade ama a Deus com ato de escolha, ato elícito (voluntas actu elicito amat Deum). Ato esse que tanto pode ser lícito, quando é por causa do próprio Deus, como ilícito ou perverso quando é por outra razão. De um modo ou de outro fruir é sempre um ato da vontade – livre escolha e adesão – que de modo algum dispensa a inteligência. Na fruição, e note-se que é o primeiro tema a ser tratado neste Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, estão em jogo os principais temas da filosofia de Escoto: a possibilidade de um conhecimento de Deus; a felicidade como posse do fim último e do absoluto fruível, que coincide com o próprio Deus; o modo livre e contingente do agir da vontade, contraposto ao atuar necessário e natural do intelecto; a motivação pela caridade; a eticidade dos atos na responsabilidade pessoal e a necessidade da Graça para alcançar o fim maximamente fruível.

Questão I: Se a fruição é um ato elicitado pela vontade, ou é uma paixão recebida na

vontade

Nesta primeira questão é inquirido se a fruição é um ato escolhido (elicitus) pela vontade ou uma paixão recebida na alma, ou seja, um deleite (n.62). O mesmo é perguntar se a fruição é um ato da potência apetitiva ou alguma coisa que se abate sobre a alma do sujeito, isto é, uma paixão.

73 Partindo do princípio que a fruição é algo da vontade, Escoto pergunta se é efetivamente uma fruição, como algo ativo, ou uma deleitação (delectatio) passiva.

1. Começa por dizer que é um deleite e justifica-o com a imagem do fruto, a última coisa que se espera da árvore que se come por causa do deleite que produz, passando-se o mesmo para as coisas espirituais, ainda que o deleite se siga a um ato de vontade, como diz Aristóteles na Ética, X, c.4, onde o Filósofo trata do prazer que leva a actividade a um maior grau de completude.

Mais adiante, no n. 74, contra este argumento, diz Escoto que o fruto é o último que se espera da árvore, não para o possuir corporalmente mas para tê-lo pelo ato da potência que o alcança como objecto. Assim, se se diz fruto daquilo de que se há-se fruir, o deleite não é fruto, mas aquilo último que se há de esperar; mas também não será fruir se o primeiro com que alcanço o esperado enquanto esperado é fruir.

2. Que seja um deleite (n. 63) prova-se também pela autoridade de Paulo na Carta aos Gálatas, cap. 5 onde o Apóstolo afirma: “Os frutos do Espírito são a paz, o gozo, etc.” (Fructus autem Spiritus est caritas, gaudium). E, segundo Escoto, todas estas coisas são paixões e principalmente o gozo (gaudium) que é a deleitação. Não sendo atos são consequências de atos, como parece, que têm o Espírito Santo como fonte, origem e dador desses frutos que se fazem sentir na alma.

A este argumento contrapõe-se (n. 75) a autoridade (Escoto não identifica quem seja) que diz “não são frutos os atos, mas as paixões”, donde fruir não é deleitar-se porque o fruto é objeto da fruição.

A argumentação contrária, que a fruição seja um ato da vontade e não meramente um deleite passivo, é bastante contundente: a vontade ama a Deus com ato de escolha, ato elícito (voluntas actu elicito amat Deum). Ato esse que tanto pode ser lícito, quando é por causa do próprio Deus, como ilícito ou perverso quando é por outra razão ou razão de outro bem. De um modo ou de outro fruir é sempre um ato da vontade.

Para dar resposta à questão Escoto analisa os próprios conceitos e o significado do nome (n. 65). Quanto ao conceito, assim como no entendimento há dois atos de consentir num juízo – são eles a) o assentimento que se dá a algo verdadeiro em razão de si, como um princípio, b) o assentimento que se dá a algo verdadeiro não em razão de si mas como conclusão por causa de outro verdadeiro – assim também na vontade há dois modos de consentir no bom: a) um por razão do próprio bom, por causa dele mesmo e b) o assentimento que se dá a algo bom por causa de outro que se lhe refere, tal como se assente numa conclusão por causa do princípios dos quais recebe veracidade. Resumindo: assim como na mente há uma dupla afirmação, ou em razão de si ou em razão de outro, também na

74 vontade há uma dupla persecução do fim ou adesão a ele: por razão de si mesmo ou por razão de outro.

Contudo, há uma dupla diferença neste paralelo entre a razão e a vontade. 1. Os atos do entendimento distinguem-se pela natureza dos objetos, pois é distinta a evidência de verdade entre os princípios e as conclusões enquanto têm distintos objetos que lhes correspondem e os causam. Na vontade a distinção não provém da distinção de objetos mas do próprio ato da potência livre, variando no modo como se relaciona com o mesmo objecto. É diante do mesmo objeto que a vontade atua diferentemente preferindo-o ou não. O que muda não é o objeto mas o modo como esse objeto pode ser querido ou não. 2. A segunda diferença diz respeito ao modo como o assentimento é dado. No caso do entendimento ele só pode ser de duas maneiras: ou se consente ou não, não havendo espaço para uma evidência média. O mesmo não acontece no assentimento da vontade que tem um assentimento médio ou seja, pode mostrar-se à vontade algo de bom absolutamente apreendido sem ser por razão de si ou por razão de outro. Face a esse bem absolutamente apreendido a vontade pode ter um ato indeterminado, sem que seja necessariamente desordenado. Face a um tal objeto a vontade pode ter algum ato de quere-lo absolutamente sem relação a outro ou sem fruição por razão de si. Mais ainda, pode determinar que o entendimento inquira que tipo de bem é esse e o modo como deve ser desejado para dessa forma assentir nele. A diferença está na liberdade da vontade que é distinta da necessidade natural do entendimento face a um objecto. Noutras passagens Escoto esclarece a diferença entre potência natural, ou segundo a natureza, e potência livre que não está determinada mas que pode determinar-se a opostos70. Intelecto e vontade são duas faculdades racionais da alma, mas enquanto a primeira age de modo natural, isto é, determinado ao objecto, a outra, ao invés, age de modo livre (appetitus cum ratione liber); sendo de todo indeterminada, ela pode agir ou não agir, ou agir em sentido contrário: a escolha ou a recusa, mesmo diante do sumo bem, dependendo exclusivamente de si, e isto simplesmente quia voluntas est voluntas, não necessita de nada extrínseco a ela71. O nosso teólogo acentua fortemente o contraste entre aquilo que é natural e aquilo que é voluntário; para ele, de facto, a liberdade não é oposta à necessidade, mas à natureza72, isto é, à causa determinante. Ora a vontade pode autodetermina-se a fazer o contrário, a inteligência ao contrário é orientada numa só direção; a causalidade da vontade, portanto, goza de uma flexibilidade racional muito maior do que aquela do apetite sensitivo ou da faculdade da inteligência.

70 Cf. Ord., III, d. 17, q. un.; QQMet, IX, q. 15; Quodl., XVI. 71

Cf. QQMet., IX, q. 15, nn. 20-41; Report., II, d. 25, q. un, n. 20. 72

Esta tese é particular importante para Escoto e aclarada no comentário à Metafisica de Aristóteles, QQMet., IX, q. 15.

75 Disto se conclui que o ato perfeito é aquele ato de assentimento, e por isso mesmo livremente consentido, ao bem por razão desse mesmo bem. Mas ao ato perfeito segue-se o deleite, conforme atesta Aristóteles Ética c. 4; donde, ao ato de querer o bem por razão de si, ato perfeito, segue-se algum deleite. Assim sendo, Escoto considera então quatro modos de entender a fruição: o 1º a que chama «uso» é um ato imperfeito, pois o bem que se deseja é por causa de outro bem e não por causa dele mesmo; o 2º modo é «fruição» como um ato perfeito onde se deseja um bem por causa do próprio bem; o 3º é «ato neutro» (outra passagem Escoto debate o que seja isso de um ato neutro como algo que, por ausência de uma recta intencionalidade, ou meramente por hábito, mesmo um ato bom, mas sem a recta intenção, não é nem meritório nem condenável); por último e em 4º lugar fruição pode entender-se também por «deleite», que não é propriamente, segundo Escoto, um ato mas a consequência do ato73.

Claramente não convém ao «uso» ou «ato neutro» a designação de fruição. Quanto ao significado do nome ou a qual destes atos se adequa realmente o nome de fruição, importa recorrer às autoridades. Para já é claro que para o Doutor Subtil a questão reside apenas em saber se «fruição» se pode também aplicar ao deleite. A sua resposta é que embora algumas autoridades pareçam dizer que fruir é somente o ato perfeito ou apenas o deleite, e para outras que é ambas as coisas, pode concluir-se que a fruição é a junção de várias coisas, não sendo de todo inconveniente que o mesmo nome possa remeter para diferentes realidades.

Porém, segundo Agostinho, fruição é apenas o ato e não a consequência do ato. E cita-se a sentença que vai ser frequentemente repetida para distinguir «uso» de «fruição»: “Toda a perversidade, a que se chama vício, é usar das coisas que se devem fruir e fruir das que se devem usar”74.

A perversidade está no ato ilícito da vontade e, por conseguinte não no deleite consequente. De facto, pode dar-se um deleite como consequência de um ato mau, entendendo por ato mau, como já vimos, a escolha de um bem não por causa dele mesmo. Escoto não afasta a hipótese de poder haver um deleite no uso. Como consequência do ato o deleite não está em poder do agente pois este apenas pode dominar o próprio ato e não as consequências que daí advêm, mesmo aquelas

73 “Habemus igitur quantum ad propositum quattuor distincta: actum imperfectum volendi bonum propter aliud, qui vocatur usus, et actum perfectum volendi bonum propter se, qui vocatur fruitio, et actum neutrum, et delectationem consequentem actum” Ord. I, d. 1, p. 2, q. 1, n.68 (II 51).

76 que o afectam propriamente, pois “o pecado enquanto pecado está formalmente no poder de quem peca”75.

Paralelamente à citação agostiniana anteriormente feita há outra não menos importante nem menos vezes repetida: “fruir é aderir por amor a alguma coisa em razão de si mesma”76. Tal adesão parece dar-se pela potência motiva do que adere. Contudo Agostinho parece dizer que o deleite somente se dá no maximamente deleitável: a Trindade “o completo gozo é fruir da Trindade”77, donde gozo é formalmente o deleite, isto é, fruir essencialmente.

Porém, pode dar-se duplo significado ao «fruir», primeiramente como deleite pois “Fruímos das coisas conhecidas, nas quais a vontade se deleita por razão das coisas conhecidas” (De Trinit., X, 9), já que o ato da vontade pressupõe o objeto conhecido, e se o deleite fosse acidental não estaria na definição. Depois, fruir entende-se também como o sumo prémio ou bem aventurança que inclui ambas as coisas, o deleite e o ato.