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b) Suma Teológica (STh, I-II, q 11: De fruitione, quae est actus voluntatis)

Nesta questão Tomás de Aquino está a tratar dos atos humanos e, por isso, não tem em consideração se Deus frui.

a. 1: Se o fruir é próprio da potência apetitiva

a. 2: Se o fruir convém só à natureza racional ou também aos animais brutos a. 3: Se a fruição é só do fim último

a. 4: Se a fruição é só do fim possuído

São, efetivamente, quatro pequenas questões que compilam o pensamento de Aquino sobre a fruição no que diz respeito ao homem. Por uma questão de brevidade do nosso trabalho não investigamos mais no que se refere à possibilidade de em Deus haver ou não fruição, e o mesmo se diga em relação com as naturezas angélicas.

a. 1 – Se o fruir é próprio da potência apetitiva (Utrum frui sit actus appetitivae potentiae) Para sustentar que «não», a resposta de Aquino será pela positiva, aponta três argumentos: 1. quanto ao que dá origem ao termo fruição, o fruto colhido, sendo o maior fruto a beatitude; 2.

51 quanto ao fim próprio que é a perfeição, e daí todas as potências poderiam fruir; 3. quanto ao deleite incluído na fruição que remete para a potência apreensiva.

Assim, há relação entre fruir e fruto (fruitio et fructus), sendo o fruto o último que se espera da árvore e o que colhemos com certa suavidade. Esta referência ao fruto não a tínhamos encontrado antes nos autores que vimos, e remete para dois aspectos significativos: o ser último e o aquietar o apetite. Mais ainda, a fruição tem íntima relação com o amor ou deleite (amor vel delectatio), que se sente diante do fim desejado. Argumenta o Angélico ser a fruição da potência apetitiva por ser o fim e o bem o objeto dessa potência, que se move para tal.

a.2 – Se o fruir é próprio só do homem (Utrum frui conveniat tantum rationali creaturae, an etiam animalibus brutis)

Aquino responde que a fruição não é exclusiva do homem, mas faz a distinção naquilo que constitui a fruição, ou seja, o fim e o conhecimento do fim. Por isso, a fruição diz-se perfeita quando suportada pelo conhecimento do fim desejado, e isto é próprio do homem, não dos irracionais ou das bestas. A fruição que é possível às demais criaturas é imperfeita. O que se confirma com Agostinho: “não é absurdo pensar que também os brutos fruem do alimento e de qualquer outro prazer corpóreo” (83 Quaestion., q. 30).

A autoridade de Agostinho diz que a fruição perfeita é dos homens: “os homens somos os que fruímos e utilizamos” (De doct. christ., I, 22). Porém, a fruição não se refere necessariamente ao fim último, mas ao que é considerado como fim por cada um. O fim último não pode ser conseguido pelos brutos mas somente pelo homem que, pelo conhecimento da ideia universal do bem e do fim, pode fruir dele, ainda que haja um instintivo desejo de bem que o apreende e move na aquisição do desejado.

Tal apetite natural, que existe predominantemente nos seres privados de razão, está sujeito ao que é sensitivo, e isto visa o fim como algo que superiormente impera neles movendo-os.

a.3 – Se há fruição só do fim último (Utrum fruitio sit tantum ultimi finis)

Continuando a explorar o sentido de fruto (aquilo que é último e que aquieta o apetite pela doçura e deleitação) Tomás de Aquino distingue quanto ao fim: um fim absoluto e um fim relativo. É absoluto quando não se refere a outra coisa; relativo se se refere a certas coisas para além dele. Fruto será o do primeiro sentido, isto é, absoluto. Por isso se chama propriamente fruto, do qual

52 fruímos em sentido próprio, como aquilo que é absolutamente último, e em que nos deleitamos a título de fim derradeiro.

Quanto ao fim este tem dois significados: por um lado a coisa mesma e por outro a sua aquisição. Em Deus, porém, coincidem o fim último e a realidade buscada por último, pois Deus não é diferente da fruição dele mesmo.

Mas o fruto é também o que traz consigo algum deleite e o que não comporta esse deleito, mesmo que seja por outro, não é fruído. Fruímos das coisas conhecidas nas quais descansa a vontade com delícia. Tal descanso absoluto é apenas no fim último, pois enquanto algo falta não se descansa, como acontece no movimento local na relação com o repouso. Aparece pela primeira vez esta referência ao movimento já insinuado na física dos corpos que procuram o seu lugar, os pesados para baixo e os leves para cima. Escoto dará maior atenção ao paralelismo da fruição com a física, ou o movimento dos corpos e desta comparação tirará maiores conclusões.

a.4 – Se a fruição é só do fim possuído (Utrum fruitio non sit nisi finis habiti)

Se a fruição é só do fim já possuído, o Doutor angélico responde positivamente pela relação entre fruição e fim último, ainda que este fim possa ser possuído de um duplo modo: perfeitamente quando possuído não só intencionalmente mas também efetivamente; imperfeitamente quando é possuído o fim na intenção ou em esperança. Sobre a intenção tratará na questão seguinte que aqui não nos ocupa (STh I-II, q. 12: De intentione; o tender para outra coisa com a ação do que move e o ato de mover para um fim que é um ato da vontade). Acompanhando esta distinção, será perfeita a fruição que seja do fim já realmente possuído e a imperfeita do fim intencionalmente possuído. Esta posse intencional do fim chama-se fé pois, como diz o Apóstolo: a fé é a posse dos bens prometidos (cf. Heb. 11, 1). Das coisas ainda não possuídas há esperança. Tais virtudes teologais são uma posse antecipada, necessariamente imperfeita, dos fins prometidos. Há, por isso, uma fruição própria mas imperfeita por causa do modo imperfeito como se consegue esse fim e isto não é o mesmo que uma posse intencional.

A definição de «fruição» em S. Tomás é, uma vez mais, agostiniana: “aderir com amor a uma coisa por ela mesma” (De doctr. christ., I, c. 4 e De Trin., X, c. 10), e este Padre da Igreja é abundantemente citado quer na obra que dá início a toda esta questão da distinção entre usar e fruir, o De doctrina christiana: “os homens são os que desfrutam e utilizam” (I, 22), quer no De Trinitate, para sustentar que a fruição seja um ato da potência apetitiva que implica o conhecimento: “desfrutamos das coisas conhecidas nas que descansa comprazida a vontade” (X, 10), e também no

53 De octaginta tribus quaestionibus, q. 30, para a distinção entre fruição perfeita e fruição imperfeita, como é o caso dos animais que disfrutando do alimento têm algum tipo de prazer corporal.

No uso do texto bíblico continua presente a passagem de S. Paulo a Filémon, 20: “Itaque, frater, ego te fruar in Domino” com a explicação que Agostinho oferece desta passagem no De doctrina christiana: “quando gozas do homem em Deus, mais gozas de Deus do que do homem, porque gozas pelo que chegaras a ser feliz, e te alegrarás de ter chegado a ele, que é o objeto em quem puseste a esperança do que está para vir. Por isso S. Paulo diz a Filémon: Irmão eu gozo de ti no Senhor. Se não tivesse acrescentado no Senhor, mas tivesse dito apenas gozo de ti, nele teria posto a esperança da sua felicidade”52. Elucida Tomás: “como se dissesse que fruiu do irmão, não a título de termo mas de meio”53. Isto diz-se para responder à pergunta se só há fruição no fim último, defendendo que pode haver um tipo de fruição, ainda que imperfeito, nos meios, quando fruímos do fim.

Interessante é também o modo como Aquino recorre a Boécio para a definição de beatitude: “a felicidade é o estado acabado em que se reúnem todos os bens”54. Este texto, de facto, é determinante para diversos temas e, entre eles, o da verdadeira felicidade face aos bens de fortuna que podem oferecer uma felicidade aparente e transitória.

Os frutos do Espírito Santo são assim chamados porque são certos efeitos do Espírito Santo em nós. Distintos dos dons do Espírito de Deus, os frutos do Espírito, tal como estão referidos pelo Apóstolo S. Paulo na carta aos Gálatas 5, 22, são: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio (assim citados por Tomás de Aquino: caritas, gaudium, pax et huiusmodo). Para Tomás de Aquino estes frutos não têm natureza de fim último pelos quais fruamos enquanto tal, embora nos agradem.

Os temas principais e recorrentes na argumentação de Aquino dizem respeito à relação entre usar e fruir e destes com as potências do homem, mormente a inteligência ou a vontade. Ponto importante é o conceito de fim último e de felicidade. Quanto ao objeto da fruição e do uso a principal preocupação do Doutor Angélico é saber se somente Deus deve ser fruído.

Sublinhamos ainda a particularidade da argumentação de Tomás de Aquino que, parece-nos, está na relação entre fruir e usar com as faculdades da alma.

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De doct. christ., I, 33, 37: “Cum autem homine in Deo frueris, Deo potius quam homine frueris. Illo enim frueris quo efficeris beatus; et ad eum te pervenisse laetaberis, in quo spem ponis ut vénias. Inde ad Philomonem Paulus: Ita, frater, inquit, ego te fruar in Domino. Quod si non addidisset, in Domino, et te fruar tantum dixisset, in eo constituisset spem beatitudinis suae”.

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STh I-II, q. 11, a.3: “Ut sic frater se frui dixerit non tantum termino, sed tanquam medio”. 54 De consol., III, pr.2: “beatitudo est status omnium aggregatione perfectus”.

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