• Nenhum resultado encontrado

Nesta terceira e última parte trataremos temas onde, parece-nos, os pressupostos metafísicos se conjugam com a fruição. São eles: a beatitude, as paixões, paixões e corpo, conhecimento e ação e o paradoxo da vontade.

Importa, desde logo, justificar os temas e a relação que neles se dá entre fruição e metafísica. Quanto ao primeiro, é por demais óbvio, depois do que se viu quanto ao fim da fruição; no segundo e terceiro queremos deixar explícito o que se tratará no quarto, a saber, que a fruição se relaciona com a vontade como ato deliberado livre, não de natureza. Levando estas teses ao limite somos confrontados com a possibilidade de um não querer a beatitude, o que em Deus é o seu modo de ser e em nós a causa final. O que justificará a sua relação com a metafísica é que o tratamento destas questões se coloca na máxima abstração, recuando, tanto quanto possível, e recusando uma abordagem casuística ou moralizante. Contudo, um certo modo “fenomenológico” de tratar as questões complementa a sua abordagem: parte da realidade, eleva-se no pensamento e volta à realidade com a força de uma proposta de transformação e enobrecimento. Independentemente deste ou daquele modo como as coisas acontecem, abstraindo o mais possível, há um modo pragmático, diríamos incarnado, como elas são tratadas e um fundo prático donde a problemática emerge e para o qual retorna.

Os temas da pessoa, da vontade e do fim (sujeito, exercício da faculdade e objeto da fruição) entrecruzam-se com os princípios metafísicos do ente e da caridade, os quais fazem também que a teologia seja uma ciência prática. Somos, por isso, levados a pensar que seja a fruição a chave hermenêutica que impede que a metafísica fique suspensa num olimpo do pensamento alheado da realidade do próprio homem, sem razões para grandes perguntas vitais, como são a identidade pessoal, fatalismo, tempo, Deus, ser e nada, livre arbítrio, determinismo, universais, possibilidade e necessidade.

A – Beatitude

Vejamos agora um importante tema relacionado necessariamente com a fruição: a beatitude ou felicidade. Este tema tem para Duns Escoto, como para a maioria dos autores medievais, uma particular importância. Tomás de Aquino, por exemplo, ao colocá-la no frontispício

186 do seu tratamento sobre os atos do homem na Summa (STh I-II, q. 1-5) marca a orientação definitiva do ser humano e o critério de toda uma ética que se orienta na busca desse fim maximamente desejado. O tema, porém, não é novo e foi largamente debatido na antiguidade clássica e teve em Agostinho um desenvolvimento em clave cristã que se tornou para os autores posteriores incontornável. Prevalece em todos eles que o homem, por natureza, deseja ser feliz e que essa felicidade, ainda que possível no presente estado, só é definitiva e estavelmente alcançado na eternidade, na fonte máxima dessa felicidade almejada.

Entende-se por felicidade aquele bem que exclui qualquer tipo de defeito, imperfeição, deficiência ou falta e, por isso, é perfeito e completo. Tal felicidade tem o carácter das coisas últimas que exclui qualquer tipo de dependência ou ordenação a outra coisa mais completa que não ela própria. Ela vale por si mesma e não como intermédio para outra ou em função de algo maior. Esta felicidade prende-se com o bem, objeto da vontade, com a sua posse e com a ausência de qualquer tipo de mal que é um defeito ou uma falha no bem devido.

Para Escoto o homem, a nossa vontade, aspira à felicidade de modo instintivo, necessário, incessantemente, intensamente e em concreto. O modo necessário diz a inclinação da natureza à sua perfeição e se se remover esta inclinação remove-se a própria natureza, pois a felicidade não é outra coisa que a inclinação da natureza à sua perfeição ou máxima realização. O modo como a vontade se inclina à sua perfeição é intenso, ou seja, é constante e permanente, numa palavra, é constitutivo.

Mais ainda, a vontade aspira à perfeição de um modo concreto e real nas coisas concretas que a aperfeiçoam. Esta perfeição é maior nas coisas concretas que nas abstractas ou genéricas que são fruto e objeto do intelecto e da especulação. A felicidade efetiva é maior do que a genérica ou não “encarnada”. Pelo que seria impossível não aspirar a essa felicidade em concreto. Aqui está patente uma linha franciscana e escotista da metafísica que defende a preponderância ontológica do real face ao abstracto. De facto, para estes autores, e seguindo um longa tradição, o concreto, o que existe na realidade, é melhor do que aquilo que existe apenas na mente, porque a existência concreta e real confere maior peso que ao simplesmente pensado. Em termos anselmianos o que existe na realidade é maior que o pensado tal como o objeto é maior que o conceito, a coisa é maior que a ideia que dela se possa exprimir.

Neste ponto do desenvolvimento da questão da fruição e da sua relação com a felicidade, e é bom recordar que estamos na primeira distinção do comentário ao primeiro livro das Sentenças, tem contornos de análise dos princípios gerais prévia ao tratamento dos casos particulares, ou seja, é uma verdadeira abordagem filosófica pelos princípios, uma abordagem metafísica, prévia e para além das realizações factuais.

187 Nessa busca pelo concreto a vontade tende necessariamente à felicidade concreta que a perfeiçoa e à qual necessariamente se conforma. Isto não invalida, contudo, que o intelecto procure e tenha como fim uma felicidade em abstracto, desejando-a com a mesma força que a vontade deseja a felicidade concreta. Com isto não se quer dizer que a vontade aspire somente à felicidade concreta, ela deseja uma e outra, a concreta e a abstracta, mas desejando a maior deseja mais a concreta por ser mais perfeita.

Retomando a relação entre vontade e intelecto, sem cair em radicalismos voluntaristas, a vontade tem para com o intelecto uma particular e estreita relação conservando, em definitiva, a sua autonomia que se diz na liberdade com que atua. A vontade move-se segundo o conhecimento que se tem do objeto e por isso ela requer a operação do intelecto, inclusive para aspirar necessariamente à felicidade concreta, encaminhando-o a pensar essa mesma realidade.

O termo que até aqui tem causado algum incómodo é o de “necessidade”. Dizer que a vontade necessariamente aspira à felicidade e que se assim não for se destrói a sua natureza requer esclarecimento e análise a fim de salvaguardar a autonomia e a liberdade da própria vontade subtraindo-a aos determinismos de um intelectualismo. A vontade aspira à felicidade em concreto e em abstrato de modo contingente, mesmo quando o intelecto não duvida daquilo em que se pode encontrar a felicidade em concreto, mesmo quando há o auxílio da fé para aquilo que acreditado como máxima felicidade, a fruição da Trindade, que se pode alcançar por uma vida virtuosa. Assim, o desejo explícito da felicidade que acredita conveniente seguir a inclinação natural, somente é capaz de influenciar a vontade mas não de a determinar. Desejando efetivamente a felicidade esse desejo não é da ordem da necessidade, pois a vontade pode querer ou não querer um determinado objecto. E mesmo que se lhe mostre com a máxima evidência o que seria mais desejável, ela pode permanecer impassível frente a esse objecto.

Entre todos os objetos que o homem pode desejar há um que é essencial e simplesmente, de forma absoluta, supremo, porque todos os objetos lhe estão essencialmente ordenados não permitindo que se caia, diríamos nós, numa nihilística redução ao infinito buscando sempre um mais perfeito a que mais alguma perfeição se possa acrescentar ou algum defeito se possa colmatar. Porém, este bem supremo é infinito, e não seria supremo se não fosse infinito. Tal bem é desejado por si mesmo, não por causa de outro e, por não ser por causa de outro, ele é infinito. Tal bem supremo, como já vimos, pode chamar-se de fim último da vontade, uma vez que é por mor dele que se deseja tudo o mais. Num salto, talvez demasiadamente rápido, atribui-se o nome de Deus a esse fim último, dado ser, por definição, a reunião de todos os bens e a ausência de qualquer mal.

188 Se nenhuma natureza intelectiva recebe a sua perfeição última e se a sua completude não possuir o bem supremo que deseja, ela, por si mesma, não pode ser feliz. Ainda que o desejo de felicidade seja já uma felicidade em si, sempre a vontade criada necessita de algo extrínseco que deseja e, por isso, ainda lhe falta. E é tanto mais feliz quanto mais plenamente possui esse bem sem falha alguma de perfeição, pois sem este bem a sua natureza volitiva permanece imperfeita.

Escoto não tem dúvidas que toda a nossa volição se orienta principalmente para o fim último que é o alfa e ómega, o princípio e o fim ao qual se deve tributar toda a honra e glória (cf. Apocalipse de S. João). Mas isto é um dado da fé, ou seja, fazer coincidir o fim último com Deus é algo que se prova pela fé e do qual se deduz que todo o homem, por sua natureza de criatura, deseja o Criador. Pela razão pode afirmar-se com segurança que o homem é naturalmente inclinado a amar o bem infinito, independente do auxílio sobrenatural da graça, e por esse desejo não pode descansar perfeitamente em nenhum outro bem.

Continuando num registo de fé, ou da revelação, a vontade por quanto se esforce por repousar fora de Deus não encontra o verdadeiro repouso. Só Ele pode satisfazer plenamente tal desejo de felicidade e as coisas finitas, ainda que satisfaçam momentaneamente, não conseguem plenificar o homem. O auxílio da graça para atinar com tal fim e dele plenamente gozar é imprescindível. Ainda que naturalmente possamos ter algum ato de amor, mesmo para com o que é distinto de Deus, a nossa natureza é incapaz de alcançar contemplá-lo somente com as suas forças270. Afirmado isto de modo tão claro e evidente, ficam afastadas as suspeitas de uma heresia voluntarista ao jeito de Pelágio com que tantas vezes uma errada compreensão da filosofia de Escoto o acusou.

Se é permitido um breve resumo sobre a natureza da felicidade e procurando não trair a mente do nosso autor, diríamos que ela condiz com a natureza do homem, e o homem no seu todo, na maximização de todas as suas potencialidades, e é não apenas um convite mas um desejo constitutivo que, porém, não obriga dada a possibilidade de ser rejeitada por causa da condição livre do homem que perante um bem apreendido como tal pode, mesmo assim, ter um ato de recusa ou mesmo não ter ato algum. A felicidade desejada, como impulso do coração inquieto, atrai sem impor, propõe sem obrigar no respeito da liberdade do agente.

270

Cf. Quodl. XVII, n. 5: “plures actus dilectionis, ad quos naturaliter inclinamur, possumus potestate naturali elicere, licet non omnes, quia ad perfectissimum circa ultimum finem est inclinatio naturalis, licet ad illum non possit natura attingere ex se”.

189

B – Paixões

Como se pode facilmente constatar, as emoções exercem uma poderosa influência na vida do homem, quer elevando-o aos mais altos graus intelectuais e morais, quer precipitando-o na vil baixeza. Emoções negativas estão associadas a baixeza/maldade, vícios e fraqueza moral. Devem ser evitadas sempre que possível. Por outro lado, emoções positivas são um encorajamento a ações morais e virtuosas.

A temática das paixões não é só uma herança do pensamento grego e o fruto da análise do comportamento humano, no seguimento da máxima do pórtico de Delfos: Conhece-te a ti mesmo, mas surge, na época medieval, também como consequência da leitura e meditação do texto bíblico. Assim, podemos identificar estas várias fontes, ou pontos de partida, para uma análise, descrição e compreensão das paixões: a experiencia pessoal e comunitária (a convivência ética dos homens em sociedade), o pensamento grego, mormente o de Aristóteles, os Padres da Igreja, designadamente Agostinho, as traduções árabes e a Sagrada Escritura naquilo que ela tem para dizer sobre o homem.

Há, pois, uma preocupação muito concreta e não meramente académica no estudo das paixões. No ambiente de cristandade esta preocupação além de teórica, e mais do que a busca dos ideais de sabedoria e virtude, insere-se num horizonte escatológico de bem-aventurança. Na medievalidade a preocupação pelas paixões prende-se, pois, com a atitude religiosa da identificação com Cristo, exemplo do homem perfeito, na sua tensão com a eternidade de quem quer tomar parte no Reino dos Céus, a cidade de Deus. As categorias de pecado, mérito, pena ou castigo, influenciaram, invariavelmente, não só a leitura das paixões como também modelaram os comportamentos sociais, morais e religiosos. Por isso, a análise das paixões vem acompanhada com a reflexão sobre as virtudes e os vícios, numa palavra, da ética. Além disso, a análise das paixões da alma surge na medievalidade também como uma necessidade para a correta administração do Sacramento da Reconciliação que depois do Concílio IV de Latrão (1215), passou a ter uma obrigatoriedade anual271.

No autor que aqui nos ocupa, o primário interesse pela questão das paixões é claramente teológico. Ele queria esclarecer a doutrina teológica do derradeiro gozo (fruitio) e da pena eterna,

271

Acerca da dimensão psicológica da Penitência veja-se ANCIAUX, Paul, La theologie du Sacrément de Pénitence

190 passando pela análise da moralidade dos atos, do comportamento virtuoso onde se jogam as paixões e os vícios.

A filosofia das paixões na época medieval dá-se na necessidade de elaborar uma síntese entre o pensamento de Agostinho, Aristóteles e Galeno. E joga-se no esforço por compatibilizar a participação da alma e do corpo nos fenómenos das paixões, pois, se por um lado a posição de Agostinho sublinha as paixões como algo exclusivamente da alma, Aristóteles está numa posição mais intermédia dando abertura à explicação fisiológica ou pelo menos à participação do corpo nos seus mecanismos. Galeno e as suas traduções e interpretações árabes chegaram ao ocidente medieval por via dos tradutores de Toledo no século XI contribuindo decisivamente para a síntese tomista e escotista.