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Escoto afirma que o ente é um objeto real (obiectum reale) ou seja, um objeto real para a inteligência. Por outras palavras, que as propriedades possam ser examinadas pela inteligência, e, também, que as suas ‘paixões’ sejam ao menos examinadas, quando não demonstradas.

Fica patente a necessidade de um conceito unívoco de ente que tornasse possível uma metafísica que seja ao mesmo tempo uma ontologia do criado e uma teologia racional. Este conceito unívoco de ente é, contudo, real: “o conceito de ente comum a Deus e à criatura é um conceito real”126. Ou seja, é não só um conceito mental mas permanece ligado à estrutura da realidade.

O ente enquanto ente é independente das realidades efetivas. Ou de forma mais abrangente, ente é tudo o que não repugna ser127. É aquilo ao qual não repugna ser, o que implica dizer que tudo o que é, positivamente, é uma entidade, e por isso a metafísica é “entis inquantum ens, id est, entis secundum suam entitatem”128. Mais, o ente, como aquilo que é possível, e ao qual não repugna o ser, é a última nota de uma essência objectiva, isto é, a quididade de um objecto, seja ele de que modo for. Inscreve-se desta forma a nota da possibilidade no conceito de ente. Pensado de um objeto enquanto pensável, daquilo que a coisa contém virtualmente enquanto pensável, ou do pensável causado pela coisa, enquanto a pensabilidade da coisa é a sua possibilidade. E na possibilidade de ser pensável inscreve-se o ente, precisamente como possibilidade. A par desta possibilidade de ser pensado a neutralidade absoluta do conceito de ente, precisamente por se poder aplicar a tudo o que pode ser ou efetivamente já é, está a não repugnância formal com a totalidade do possível. O conceito de ente na metafísica de Escoto não designa aquilo que tem uma existência actual, realizada efetivamente, mas antes o ser possível, simplesmente possível. Ao mesmo tempo que se algo tem possibilidade de ser, de algum modo tem possibilidade de ser pensado, e se tem possibilidade de ser pensado é porque de alguma maneira já é, e isso que é é o ente como negação do não ser. O não ser não é e por não ser não pode ser pensado129.

O conceito de ente é o resultado de uma abstração e, mais precisamente, de uma abstração última. Isto quer dizer que na maior abstração não há conceito anterior ou mais primitivo que ele.

126

Lect., I, d. 3, p. 1, q. 1-2, n. 126 (XVI 273).

127 Ord., IV, d. 1, q. 2, n. 8 (Wad XVI 109): “Ens, hoc est cui non repugnat esse”. 128

QQMet., Prol., I, q. 1, n. 78. 129

Cf. Ord. I, d. 3, p. 1, q. 1-2 sobre a cognoscibilidade de Deus e se Deus é o primeiro objeto do nosso entendimento.

122 Por isso, o ente não é conhecido em primeiro mas é o primeiro conhecido ou o primeiro conhecível. É também completamente indeterminado e inteiramente determinável.

As duas prioridades (primitas communitatis e primitas virtualitatos) são o resultado que se atinge pela análise, síntese e forma definitiva de juízo. Com a ajuda de uma maior ascensão ou regressiva análise o nosso intelecto chega ao ser e às suas diferenças simples e propriedades, novamente o texto de Escoto:

“Deste modo é manifesto que o ente tem a primazia de comunidade a respeito dos primeiros inteligíveis, isto é, dos conceitos quiditativos de género, espécie e indivíduo, e das suas partes essenciais, e do ente incriado, e tem a primazia de virtualidade (virtualitas) a respeito dos inteligíveis que estão incluídos nos primeiros, isto é, com respeito aos conceitos quiditativos das diferenças últimas e atributos próprios”130.

a) completamente indeterminado (virtualidade) – “o ente diz-se de muitos modos”, o que quer dizer que o ente se predica das categorias, diz-se da substância ou dos acidentes. Porém, tal concepção encontra dificuldade, ao menos para os teólogos, que consideram o ente ao mesmo tempo criado e incriado. Importa por isso ter uma concepção de ente que seja de tal modo generalíssima que seja anterior ou superior a qualquer divisão em género e categoria e que se possa dizer quer de Deus, quer das criaturas, ou seja, do infinito e do finito.

O ente é o indeterminável em absoluto, aquilo ao qual não lhe repugna ser ulteriormente uma essência determinada “ens, hoc est, cui non repugnat esse”. É o que absolutamente exclui a contradição. Por isso, o ente é aquilo que funda e é a possibilidade absoluta ou o “posse esse” ou poder ser de toda a essência e de todo o real possível e de todo o real realizado em máxima virtualidade.

b) inteiramente determinável – o conceito de ente tem um conteúdo de significação objectiva que é absolutamente simples (simpliciter simplex), ou seja, o ente é o único conteúdo objetual que é absolutamente simples ao ponto de repudiar divisão. Como é óbvio, isto não contradiz a característica anteriormente apontada de ser o entre completamente indeterminado. Pois se um diz respeito ao ente na sua máxima virtualidade, o outro diz o ente na sua concretização real.

130

Ord., I, d. 3, p. 1, q. 3, n. 137 (III 85): “Et ita patet quod ens habet primitatem communitatis ad prima inteligibilia, hoc est ad conceptus quiditativos generum et specierum et individuorum, et partium essentialium omnium istorum, et entis increati, – et habet primitatem virtualitatis ad omnia intelligibilia inclusa in primis intelligibilibus, hoc est ad conceptus qualitativos differentiarum ultimarum et passionum propriarum”.

123 Texto fundamental de Escoto para a compreensão do papel do ente na sua metafísica é também o que se segue: “O ente é o objeto primeiro do nosso entendimento porque há nele uma dupla primazia, a saber, primazia de comunidade e a de virtualidade”131. Escoto concede ao ente uma dupla primazia, anterior e fundante de tudo o mais. Na primazia da comunidade o ente está presente como constitutivo de todo o algo como momento ou formalidade que não se identifica com esse algo que o contém; por outro lado o ente faz com que a essência seja o que é. Em tudo o que de alguma maneira é, o ente está presente como a sua formalidade fundamental e não identificada com a própria essência. Uma formalidade fundamental implicada na constituição de tudo aquilo que, de alguma maneira, é propriamente algo. Antes de dizer de alguma coisa que é A, seja o que for A, diz- se que ela é.

Dizer que o ente é simplesmente simples é dizer que ele não se explica por nenhuma outra coisa, tem uma determinação absolutamente comum, ao mesmo tempo uma máxima indeterminação na medida em que, como conceito transcendental, está para além ou aquém de qualquer categoria. Por isso o seu conhecimento é pressuposto como base de todo o conhecimento distinto dos objetos da nossa experiência. De facto, antes de saber se é um homem, um cavalo ou uma pedra, sabe-se primeiramente que é algo, alguma coisa. Deste modo “o conceito predicado quididativamente, que não pode ser analisado em conceitos «anteriores», isto é, ainda mais universais, e que tem de ser pensado como primeiro comum absolutamente, contido em todos os conceitos quididativos e como indeterminado e puramente determinável com respeito aos conceitos determinantes mais específicos, é o conceito de «ente» (ens)”132. À pergunta Quid est? o ente aparece como a primeira resposta, quer no sentido em que “antes” nada mais há que possa ser conhecido, por isso é absolutamente simples, mas também como a última resposta, depois da qual nada há de conhecível, tem por isso a máxima abrangência. Fica claro que “nada é distintamente conhecido que não seja conhecido como ente”133. O ente é conhecido por ele mesmo e não é explicado por nada mais conhecido: “per nihil notius explicatur”134. Ou algo é conhecido distintamente como ente ou simplesmente não é conhecido.

A busca da resolutio dos nossos conceitos, que é a resposta à pergunta Quid est?, faz-se geralmente pela utilização de um conceito mais universal que nos é conhecido, conceito esse que é determinado por um conceito mais específico. Prosseguindo com a pergunta Quid est? a respeito dos

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Ord., I, d. 3, p. 1, q. 3, n. 137 (III 85s): “dico quod primum obiectum intellectus nostri est ens, quia in ipso concurrit duplex primitas, scilicet communitas et virtualitatis”.

132

HONNEFELDER, João Duns Scotus, p. 84. 133

HONNEFELDER, João Duns Scotus, p. 85. 134 Ord., I, d. 2, p. 1, q. 1-2, n. 132 (II 207).

124 conceitos parciais estes mostram-se redutíveis a conceitos parciais ainda mais anteriores. Todavia esta busca da resolutio de conceitos distintos mostra que a composição não pode continuar até ao infinito mas chega a um ponto em que tem de parar, ou seja, num conteúdo absolutamente simples. À pergunta «o que é isso?» o ente responde quer de forma neutra e indeterminada, como um quê, algum ou alguma coisa (in quid) mas também de forma determinada, como um tal, como um «como», um modo como a coisa é em si (in quale). E acrescenta Escoto: “para Aristóteles não é assim, mas segundo ele, o primeiro objeto do nosso intelecto é ou parece ser a quididade sensível, e isto quer no sensível quer no seu inferior, e esta é a quididade abstratível das coisas sensíveis”135.

O primeiro objeto de uma potência deve gozar de primazia de adequação em relação a todos os objetos dessa potência, por isso o primeiro objeto do intelecto deve estar incluído em todos os inteligíveis. Tudo o que pode causar o pensável deve ser incluído no primeiro objeto do intelecto, e donde seja necessário que o pensável ultrapasse a materialidade. Por isso, o primeiro objeto do nosso intelecto também deve ultrapassar o material, ou seja, é um conceito.

Para Duns Escoto, de facto, é ente tudo o que tem um quid (omnes habens quid) ou uma quididade, ou seja, aquilo que responde, a propósito de uma coisa, à questão «o que é isto?». À pergunta «que ente é Sócrates?» não se pode dizer mais que é ente e somente se pode responder como é, e, na verdade, que existe. Por isso a predicação no seu caso não será in quid mas in quale.

Também um quale, tal como a brancura, pode ser considerada como um habens quid, e receber uma definição enquanto que tal, isto é, independentemente da substância na qual está o quale136. Por isso, um acidente não é um ente mas qualquer coisa que está no ente. In quid – diz a natureza essencial de uma coisa; predicar in quid significa predicar essencialmente, ou por outras palavras, predica a coisa que é objeto da predicação e não simplesmente a descrição do modo de ser. Por outro lado, in quale – diz tal ou qual qualidade acidental do que é; na realidade, a diferença individual é um quale, isto é, uma qualidade. Assim, a predicação in quale quid atribui a uma coisa uma qualidade essencial.

Há, invariavelmente, uma preocupação teológica no estudo do ser, da metafísica em geral como se pode deduzir do início do Tratado do Primeiro Principio onde Escoto, ou outro por ele dado que se discute a origem das orações no tratado pois elas são como que resumos e pontes entre as diversas argumentações, diz o seguinte:

135 Ord. Prol., p. 1, q. un, n. 33 (I 1): “Non sic Aristoteles (De Anima, III, 26 – c.6, 430b27-29); sed secundum ipsum, primum obiectum intellectus nostri est vel videtur esse quiditas sensibilis, et hic vel in se sensibilis vel in suo inferior, et haec est quiditas abstatribilis a sensibilibus”.

136 Cf. S

125 “Sabendo que a inteligência dos mortais pode conceber acerca de ti, respondeste, dando a conhecer o teu nome bendito: «Eu sou Aquele que sou» (Ex.3,14). Tu és o verdadeiro ser, tu és o ser todo [tu es verum esse, tu es totum esse]. (…) Ajuda-me, Senhor, a investigar o quanto a nossa razão natural pode chegar a conhecer do ser verdadeiro que és tu, começando a partir do ser, que a ti mesmo atribuíste”137.