• Nenhum resultado encontrado

A resolução do conhecimento confuso: ente como o primeiro conceito conhecível distintamente

Trata-se aqui da própria possibilidade de conhecimento. Embora seja verdade que o nosso intelecto deve ser movido por objetos materiais não se deve concluir daí que o conceito de ser, assim obtido, seja válido apenas com relação às coisas sensíveis. Procura-se, por isso, um conceito de ser que ultrapasse o ponto de partida, isto é, os objetos:

“No conhecimento intuitivo, o objecto concorre imediatamente com o intelecto como causa parcial para produzir a intelecção intuitiva; embora pois, o objecto cause a espécie, ela não é a causa parcial com o intelecto, com respeito ao conhecimento intuitivo, porque se assim fosse, visto que a espécie pode permanecer quando está ausente, poderia existir um conhecimento intuitivo da coisa, ela mesma ausente, o que é falso; e embora o nosso intelecto possa ter um conhecimento intuitivo do objecto, contudo, ele não ocorre por meio da espécie, mas estando o objecto presente, presente na própria existência”238.

Do que desta passagem importa reter por agora é a relação da coisa com o conhecimento: o objeto concorre como causa parcial com o intelecto para o processo de conhecimento. Se o objeto é causa parcial, ou co-causa, tem alguma potência ativa tal como o intelecto tem alguma potência passiva, como já ficou dito a propósito do primeiro objeto do nosso conhecimento.

Para o comum dos escolásticos, o ente diz-se de tudo quanto existe ou pode existir em realidade. Simplesmente a noção de ente atinge em Escoto um grau de abstração anteriormente desconhecido. Com efeito, o ente enquanto ente (ens inquantum ens) é concebido na sua pura formalidade, independentemente não só de qualquer determinação categorial, mas ainda dos seus modos intrínsecos (finito ou infinito). Equivale, por isso, a entidade pura e diz-se de tudo o que é inteligível em si mesmo. Absolutamente indiferente à natureza das coisas, constitui, por isso mesmo, uma verdadeira noção transcendental.

Por um lado, contra os excessos do iluminismo agostiniano (Henrique de Gand) para o qual Deus constitui objeto primeiro da inteligência e, por outro lado, contra as insuficiências do empirismo aristotélico (Egídio Romano, Godofredo de Fontaines) que propõe como tal a quidditas rei materialis, Escoto sustenta, pelo contrário, que o objeto primeiro da inteligência na ordem da

238

Lect. III, d. 14, q. 3, n. 165 (XX 357): “in cogitatione intuitiva obiectum immediate concurrit ut causa partialis cum intellectu ad eliciendum intellectionem intuitivam: licet enim obiectum causet speciem, tamen species non est causa partialis cum intellectu respectu cognitionisintuitivae, quia si sic, cum species possit manere quando res est absens, posset esse cognitio intuitiva de re, ipsa absente, – quod falsum est; et ideo licet intellectus noster posset habere cognitionem intuitivam de obiecto, non tamen per speciem, sed cum obiecto exsistente, praesent in propria exsistentia”; também Ord. III, d. 14, q. 3, nn. 108-118 (IX 465-471).

171 adequação ou proporção (primum in ordine adaequationis) é o ser enquanto ser. A ele, com efeito, se acha naturalmente ordenada a intencionalidade da inteligência, enquanto só por ele as demais coisas se tornam inteligíveis. Deste modo o ser, precisamente porque incluído em todas as coisas, define o horizonte ou capacidade operativa da inteligência enquanto é ele que fornece o ângulo ou perspectiva de acesso ao vasto panorama da realidade. Graças a ele nenhuma realidade é excluída: por ele se transcende o mundo da experiência e se abre caminho para a metafísica e para o Ser infinito239.

Pese embora Escoto não ter escrito um tratado específico sobre o conhecimento humano, esta problemática está patente na sua obra, designadamente no comentário ao primeiro livro das Sentenças, distinção terceira, parte primeira, onde trata da cognoscibilidade de Deus240. Como já dissemos, o ente é o primeiro objeto do nosso entendimento. Também já se sublinhou a importante relação entre ente possível, ou não ter contradição, com o ente pensável. A isto se acrescente que “todo o intelecto, por sua natureza, é sobre todo o ente”241. E isto de dois modos: o entendimento, ex ratione sui ou ex ratione potentiae pode chegar ao fundo mesmo do ser de cada ente concreto, e pode chegar ao fundo de todos e cada um dos modos concretos em que se realiza o ser. O que quer dizer que é capaz de intuir, ex natura sua, a índole interna de toda a essência ut haec do que há. A intuição é a dimensão mais profunda e última da inteligência ex ratione sui242, como veremos.

Entre a corrente platónico-agostiniana, que exagera o papel e eficiência da alma no conhecimento, e a corrente aristotélico-tomista, que acentua a passividade das faculdades espirituais em favor da eficiência do objecto, Escoto adopta uma posição própria. O conhecimento resulta da sinergia causal do espírito e do objeto que concorrem, cada um com a sua actividade específica, para a produção de um mesmo efeito. Espírito e objeto encontram-se, deste modo, numa relação de subordinação essencial porque, embora um (espírito) seja relativamente mais perfeito que o outro (objecto), cada um é perfeito e independente na sua esfera, e ambos concorrem necessariamente para a produção do efeito comum. Graças a esta sinergia subordinada, uma causa inferior pode participar ativamente na produção de um efeito superior243.

O nosso processo de conhecimento é um desenvolvimento ou passagem de um estado de indeterminação a um de determinação. O conhecimento inicial, mas mesmo assim confuso, é chamado simplex intelligentia porque recebe apenas alguma coisa, algo, antes de dizer, ou poder

239

Cf. FREITAS, “João Duns Escoto”, p. 235.

240 Ord. I, d. 3, p. 1, qq.1-4 (III 1-172): De cognoscibilidade Dei. 241

Ord. II, d. 3, q. 8, n. 16: “Omnis intellectus, secundum se, est totius entis”. 242

MANZANO, “El ser objeto de nuestra metafisica”, p. 64. 243 Cf. F

172 dizer, o que é. Neste sentido os conceitos ou juízos aparecem posteriormente ou numa fase posterior da nossa cognição.

Há, efetivamente, no processo de conhecimento, diversos problemas que se prendem com a relação entre cognição sensorial e cognição intelectual, o papel do objeto atingido e a faculdade de intelecção na causalidade natural o necessária e, ainda, a relação entre o intelecto e a sua expressão na linguagem.

No conhecimento confuso aquilo que é experimentado pelos sentidos e apreendido pelo intelecto na sua especificidade de species specialissima, isto é, na sua realização plenamente determinada, na natureza especifica efetivamente realizada244.

De herança aristotélica e diferentemente das doutrinas platónicas do conhecimento, os medievais afirmavam que nada há no intelecto que não tenha passado pelos sentidos, o que merece algumas considerações e ressalvas. Porque “embora quanto à origem do seu conhecimento, o intelecto esteja dependente dos dados que provêm dos sentidos, a quididade da coisa sensível não pode ser o primeiro objeto do intelecto, pois o ente é mais comum do que o sensível – é porque transcende a física, que a metafísica se institui como ciência de direito, ultrapassando os limites da sensibilidade”245. Conhecendo por conceitos, isto é, pensando, a ciência constrói-se esquecendo as singularidades, produzindo conceitos a partir dos objetos captados sensivelmente ou presentes na mente enquanto “fantasmas” que se apresenta ao intelecto como pensável.

A tese, em parte, subscrita por Escoto pelo modo finito e actual como o homem conhece em que a coisa que se conhece é con-causa do conhecimento. A corporeidade, expressão dessa finitude humana, significa em primeiro lugar a necessidade de entender a partir do ente material. Mas por outro lado o entendimento humano, enquanto humano, pode entender as essências imateriais e inteligíveis sem o concurso do corpo, o que será plenamente realizado na visão beatífica, in patria.

O entendimento humano é, secundum se, um entendimento finito, mas antes de mais humano, à maneira do homem, ou seja, unido a um corpo e, por isso, limitado no seu exercício pela corporeidade e pela representação do real (fantasma) e pelo próprio real enquanto intramundano, deste mundo no qual o homem se insere e do qual faz parte. Daí que, o entendimento humano não consiga chegar à quiditas rei materialis mas se detenha na quiditas accidentis sensibilis, a quididade

244

Cf. Ord. I, d. 3, p. 1, q. 1-2, n. 73 (III 50): “His praeintellectis, primo ponam ordinem originis in cognitione actuali eorum quae concipiuntum confuse, – et quoad hoc dico quod primum actualiter cognitium confuse, est especies specialissima, cuius singulare efficacius est fortius primo movet sensum, et hoc, supposito quod sit in debita proportione praesens sensui”.

245 P

173 das coisas sensíveis246. A finitude da potência significa que conhecemos sempre abstrativamente e que não possamos intuir plenamente a omnímoda inteligibilidade nem do ser ut entitas nem da essência que, pela entidade, é. Este modo de conhecer finito decorre da finita condição do homem no seu ser pro statu isto247.

A passagem do não-saber ao saber começa com aquilo que Escoto chama de um “conhecimento confuso”248. E entende-se por conhecimento confuso o nosso conhecimento

ordinário: “no conhecimento confuso o objeto experienciável pelos sentidos é apreendido primeiramente no contorno de sua species specialissima, ou seja, de sua natureza específica plenamente determinada de acordo com a qual exerce sua efectividade (cf. Ord. I, d. 3, p.1, q. 1-2, n. 73, III 50)”249.

A inteligência humana está naturalmente ordenada a conhecer o ser na sua totalidade. Só o nada lhe escapa e, precisamente, por não ser. Esta «capacidade nativa» de conhecer tudo o que pode ser conhecido foi profundamente valorizada pelos autores escolásticos e por Escoto em particular.

Neste processo de conhecimento, compreendido como passagem duma potência a ato, para o qual se requer uma causa ativa proporcionada, nem só o objeto considerado em si mesmo nem a potência intelectiva são por si suficientes. Mas, tidas como co-causas ambas concorrem juntamente para o ato de conhecer. Na tentativa de compaginar os dois princípios de conhecimento e salvaguardando a dignidade do homem que poderia ficar comprometida numa visão aristotélica que desse mais importância ao objeto e reduzisse o processo de conhecimento do homem a um mero mecanismo registador de factos e acontecimentos, Escoto constrói a sua teoria inovadora das causas

246

Cf. Quodl., XIV, 45: “Contudo, o filósofo que diria que este estado é simplesmente natural ao homem por não ter experimentado nem concluído com razão convincente a experiência de outro estado, afirmaria acaso que o objecto adequado do entendimento humano absolutamente, pela natureza da potência, é a quididade dos seres sensíveis, a única que, como se pode perceber, é o adequado neste estado” (Tamen

Philosophus, qui statum istum diceret simpliciter naturalem homini, nec alium expertus erat, nec ratione cogente conclusit, diceret forte illud esse obiectum adaequatum intellectus humani simpliciter ex naturalibus potentiae, quod percepit sibi esse adaequatum pro statu isto).

247 A propósito do pro statu isto, o actual estado do homem, tema que diz mais diretamente à antropologia que à metafisica, mas que em Escoto tem a sua relevância em ambos os campos, escreve ele: “Mas qual é a razão deste estado? Respondo. «status» não parece ser senão outra coisa que a ‘permanência estável’, assinalada pelas leis sapientes” (Ord. I, d. 3, p. 1, q. 3, n. 187 (III 113): Sed quae est ratio huius status?

Respondeo, «Satus» non videtur esse nisi ‘stabilis permanentia’, firmata legibus sapientiae. Firmatum, est autem illis legibus, quod intellectus noster non intelligat pro statu isto nisi illa quorum species relucent in phantasmata, et hoc sive propter poenam peccati originalis, sive propter naturalem concordantiam potentiarum animae in operando, secundum quod videmus quod potentia superior operatur circa idem circa quod inferior, si utraque hebebit operationem perfectam).

248

cognitio confusa, cf. Ord. I, d. 27, q. 1-2, n. 74 (VI 92). 249 H

174 eficiente parciais. Porém, destas duas causas, a inteligência e o objecto, a principal, a mais ativa, numa palavra, a mais perfeita, é a inteligência, não só porque de sua natureza é mais perfeita do que o objeto material, mas ainda porque o conhecimento depende sobretudo da nossa faculdade250. Aqui o mestre franciscano segue o bispo de Hipona que diz: “Resulta daí claro que tudo quanto conhecemos gera, em nós e juntamente connosco, o conhecimento de si; de facto, o conhecimento nasce de ambos, do cognoscente e do conhecido”251.