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De fruitione comprehensoris loquendo potentia absoluta Dei 8 (nn 34-50)

Questão II – Se o fim último tem somente uma razão de fruível

B. De fruitione comprehensoris loquendo potentia absoluta Dei 8 (nn 34-50)

Quanto à potência absoluta de Deus dizem alguns que é impossível que algum compreensor frua da essência e não frua da pessoa. Isto porque não é absolutamente possível que algum entendimento veja a essência divina não vendo a pessoa. Tal visão, a da essência, não pode ser, diz Escoto, uma visão confusa. Ver a essência e não ver a pessoa, o que é impossível, ou ver a pessoa e não ver a essência, seriam modos de visão confusa. E tal visão confusa é inconveniente.

Analisando mais detalhadamente a visão (n. 35) diz Escoto que é do existente enquanto existente e enquanto presente a quem o vê. O Doutor Subtil faz aqui uma importante distinção para a sua teoria do conhecimento: a visão e a inteleção abstracta. Se a visão é do existente enquanto existente e presente, a abstração pode ser do existente enquanto ausente como também do não existente. Por outras palavras, há uma diferença entre a intuição e a abstração, tal como na parte sensitiva há distinção entre o ato da vista e o ato da fantasia (sicut in parte sensitiva est distinctio

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n. 33: “Similiter, licet Pater dicatur correlative ad Filium et ideo non possit intelligi in quantum Pater non intelecto Filio, non tamen dicitur relative ad Spiritum Sanctum in quantum Pater; ergo erit possibile concipere Patrem ut Patrem et frui eo, non concipiendum vel fruendo Spiritu Sancto”.

67 inter actum visus et actum phantasiae). O conhecimento intuitivo da essência divina e o conhecimento abstrativo são diferentes.

Quem vê a essência divina vê a pessoa divina e quem vê a pessoa divina vê a sua essência. Donde se conclui que a pessoa não difere da sua essência em Deus, porque, como diz Escoto: “a essência divina não existe a não ser na pessoa” (n.35: essentia divina non exsistit nisi in persona), dado que o conhecimento intuitivo que não pode dar-se sem a visão e esta sem a pessoa, difere do conhecimento abstrativo a que o entendimento do viandante pode chegar, ainda que tal ideia da divindade não seja coincidente com a essência. Mas acresce-se a dificuldade da mesma essência divina se dizer em três pessoas distintas, o que poderia implicar que a visão distinta da essência implicasse a visão das pessoas. Há, de facto, uma distinção de pessoas entre si, ainda que a essência não esteja mais numa do que na outra, mas vendo a essência então ver-se-ão também as pessoas, donde parece não ser possível ver uma sem que se vejam as outras.

Duns Escoto rejeita que não se possa conhecer com conhecimento intuitivo algum objeto em que haja várias coisas distintas pela natureza da coisa. Pois, ainda que as pessoas divinas se distingam por natureza, a essência que é vista não se distingue ou divide nelas, por isso, a pessoa pode ser vista distintamente sem que sejam vistas aquelas coisas que subsistem nela. Importa recordar que estamos a tratar da potência absoluta de Deus, ou seja, no campo da possibilidade ou da não contradição onde esta é apenas o único limite à soberana disposição da vontade divina.

Outro argumento contra, quanto à possibilidade de que algum compreensor frua da essência e não frua da pessoa, funda-se na própria fruição relacionada com a vontade. Quanto à fruição, que depende da vontade, esta última não pode abstrair o seu objeto mais do que lhe é mostrado pelo intelecto, por isso, se o entendimento não pode mostrar distintamente a essência sem a pessoa, ou uma pessoa sem a outra, então a vontade também não pode fruir distintamente. Está em causa, novamente, a relação entre fruição, vontade e entendimento. Ficou claro que a vontade não pode abstrair o seu objeto mais do que lhe mostra o entendimento, assim também a vontade não pode ter um ato distinto da parte do objeto se não se supõe distinção real ou de razão da parte do objecto. Aqui importa sublinhar uma vez mais a diferença entre uma distinção real, uma coisa ser realmente distinta da outra, uma quase possibilidade física de separação, e a distinção de razão enquanto trabalho do entendimento. A distinção entre ente e essência é, pelo menos quanto a Deus, uma distinção de razão e não uma distinção real, pois se fosse real seria possível ver a pessoa e não ver a essência e vice-versa. A isto responde Escoto (n. 47) que o entendimento pode mostrar à vontade algum objeto primeiro e neste objeto primeiro algo por si objeto e não primeiro. Novamente uma importante distinção. O “objecto primeiro” (obiecto primo) é tudo aquilo a que se determina o ato da potência, ou seja, tudo aquilo para que se dirige ou busca (um telos) o ato da potência, seja do

68 entendimento seja da vontade (tudo aquilo em direção ao qual se determina o ato da potência: totum illud ad quod teminatur actus potentiae). É tudo aquilo para que tende ou o que realiza, no sentido de dar termo ou fim. O “objecto por si” é o que está inclui por si no objeto terminante primeiro (quod includitur per se in obiectum terminante primo), isto é, aquilo que está por si incluído no objeto primeiro enquanto objeto primeiro terminante. Se bem entendemos, ainda que o “objecto primeiro” e “objecto por si” possam distinguir-se ou por razão ou realmente, e possam não coincidir, todo o objeto primeiro inclui um objeto por si e o objeto por si pode não ser o primeiro. Donde (n. 47), não é necessário que a vontade queira todo o objeto primeiro que lhe é mostrado mas que pode querer o objeto primeiro que lhe é mostrado e não querer o que se mostra naquele primeiro mostrado. Porque a vontade não abstrai o universal do particular mas à vontade o entendimento mostra vários objetos e o entendimento conhece várias coisas incluídas no primeiro objecto, cada uma das quais assim mostrada as pode quer a vontade.

O exemplo não é de Escoto mas parece-nos apropriado: e entendimento patenteia uma noz; enquanto objecto, porque desejado, é objeto primeiro, mas não se deseja toda a noz mas apenas a parte comestível, o miolo. A casca, enquanto incluída no objeto primeiro é desejada mas não por si mesma. O objeto por si desejado, ou desejado por si mesmo, é simultaneamente a noz, como num todo e antes da divisão, e o miolo.

Há aqui uma distinção real entre uma e outra parte, o que permite um desejo diferente quanto é diferente a realidade. Por isso, não é necessário que a vontade queira todo o objeto mostrado pois pode querer o primeiro objeto mostrado e não querer o que se lhe mostra naquele primeiro mostrado.

Aplicando isto à visão de Deus, podemos dizer que o entendimento apreende indistintamente (sem distinção) a essência e a pessoa, pois entre uma e outra não há distinção real nem de razão. O não haver distinção real é notório. E que não haja distinção de razão prova-se porque o entendimento não compreende distintamente nem apreende distintamente uma coisa ou outra (n.39: quod non sit [distintio] rationis, probatur quia intellectus nos distintive comprehendit vel non distincte apprehendit hoc et illud). De facto, a vontade não abstrai o universal do singular, mas conhece as várias coisas incluídas num primeiro objeto particular e cada uma dessas coisas particulares as pode querer a vontade, e basta que sejam concebida no primeiro objecto, sendo suficiente um distinção de razão. Não assim no caso da essência e existência divina.

Respondendo ainda à questão se é possível fruir de uma pessoa e não da outra, sendo que as três têm uma e a mesma essência, a quietação que a fruição procura tanto é dada pelo Pai como pelo Filho, “pois o que se aquieta primeiro em algum objeto aquieta-se naquele no qual está

69 enquanto adequado” (quod enim quietatum primo in aliquo obiecto, quietatur in illo in quocumque est secundo illum modum). Por isso, o fruir da essência ou fruir da pessoa é segundo a mesma quietação.

Depois desta discussão Escoto sintetiza a sua opinião em dois parágrafos (n.42 e 43). Falando da potência absoluta de Deus, diz o franciscano que não há contradição em que seja possível da parte do entendimento e da parte da vontade que termine o ato na essência e não na pessoa, ou numa pessoa e não na outra. Ou seja, Duns Escoto admite que o entendimento veja a essência e não a pessoa, ou uma pessoa e não a outra, e que a vontade frua da essência e não da pessoa ou de uma pessoa e não da outra. Isto quanto à potência absoluta de Deus.

Não deixa de ser significativo que Escoto afirme a possibilidade de fruir da essência e não da pessoa. Se para Duns Escoto a essência é anterior à pessoa, porque a essência fundamenta a relação e tem por si mesma uma existência formal em si mesma, então, “a prioridade da essência a respeito das pessoas articula-se pelo significado de instantes de natureza. No primeiro instante de natureza, a essência tem per se existência e perfeição infinita. A perfeição infinita de essência divina é comunicada a sujeitos (supposita) individuais apenas no segundo instante de natureza. Deste modo, a ideia que a essência divina é, de algum modo, anterior às pessoas, como sua instanciação pode explicar porque é que Escoto diz que os bem-aventurados podem, embora apenas de potentia absoluta, fruir da essência separadamente das pessoas”67.

Na continuação da exposição da opinião própria, o Subtil argumenta com a distinção entre objeto primeiro e objeto segundo, dizendo que um ato tem um primeiro objeto do qual depende essencialmente (n.43: aliquis actus habet primum obiectum a quo essentialiter dependet), e do mesmo modo tem um objeto segundo: qualquer ato tem um objeto segundo do qual não depende essencialmente, mas para o qual tende em virtude do objeto primeiro (n.43: et habet obiectum secundum a quo essentialiter non dependet sed tendit in illud virtute primi obiecti). Por isso, não dependendo do segundo pode permanecer no primeiro, e permanecendo no primeiro, mudando o segundo, o ato permanece o mesmo. Se bem entendemos, e com o nosso exemplo da noz, continuamos a querer a noz mesmo não lhe querendo a casca, e não é por não lhe querermos a casca que queremos de outro modo a noz. O querer ou não querer a casca é, de algum modo, indiferente para querer a noz. Assim como é diferente a visão da essência divina e aquilo que nela se vê sendo a mesma visão, também não há contradição entre o ato de visão da essência, que tem razão de primeiro objecto, e o ato de visão ou fruição quanto à pessoa.

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KITANOV, Severin Valentianov, Beatific enjoyment in scholastic theology and philosophy: 1240-1335, Helsinki 2006, p. 185-6.

70 Resumindo, Duns Escoto entende que não há contradição em que seja possível, tanto da parte da vontade como do entendimento, que a essência divina sem a pessoa, ou uma pessoa sem a outra, seja o termo do seu ato. Isto é, que o entendimento veja a essência divina e não a pessoa, ou que veja uma pessoa e não a outra, e também que a vontade frua da essência divina e não da pessoa ou de uma pessoa e não da outra. Sustenta esta posição a distinção entre objeto primeiro e objeto segundo. A essência tem razão de objeto primeiro e a pessoa tem razão de objeto segundo. Quanto à possibilidade de fruir de uma pessoa e não fruir da outra, o que segundo a potência absoluta de Deus é possível, e tendo em consideração a definição de pessoa, é perfeitamente coerente. Note-se que cada pessoa é distinta da outra na base de um modo irrepetível ou incomunicabilidade formal. Por isso, uma pessoa divina distingue-se da outra tendo por base uma propriedade absoluta, uma haecceidade que diz algo de excepcional e único. De facto as coisas são um pouco diferentes.