• Nenhum resultado encontrado

Apresentemos apenas alguns dados biográficos gerais e mais significativos deste Mestre medieval55. Natural de Gand, no norte da actual Bélgica, este mestre flamengo ficou conhecido como Doutor Solene. Nascido por volta do ano de 1240 e falecido a 23 Junho de 1293, iniciou o seu ensino de teologia em 1275. Pelos finais de 1264 ou princípios do ano seguinte está em Paris a frequentar a Faculdade de Artes. É autor de quinze Quodlibet que se estendem desde o Natal de 1276 ao Natal de 1291 (ou à Páscoa de 1292) e de uma vastíssima obra, designadamente a Summa, projecto de grande envergadura que não chegou a completar.

De destacar o facto de ter feito parte da comissão mandatada em 1277 pelo Bispo de Paris, Estêvão Tempier, para identificar as teses consideradas erróneas veiculadas pela Faculdade de Artes e que viriam a ser condenadas a 7 de março de 1277, pelo mesmo Bispo.

A sua atuação não se restringiu aos meios académicos assumindo também importantes funções junto dos papas e das comissões teológicas para as quais foi convocado, particularmente a que opunha o clero secular às ordens mendicantes na pretensão aos cargos académicos e na habilitação destes últimos para atenderem do sacramento da Confissão.

Mário Santiago de Carvalho resume desta forma os “três mais relevantes aspectos do pensamento de Henrique de Gand: a sua concepção sobre o carácter nuclear da teologia e da informação da fé para o estabelecimento do que é pensável; o papel importante que Avicena desempenha na sua filosofia, designadamente pela relevância da essência sobre a existência, por exemplo no processo epistemológico de cientifização; a crítica ao aristotelismo e ao arabismo presumidamente mais radical”56.

Henrique de Gand parece ser efetivamente o principal dialogante de Escoto – preferimos propositadamente este termo em vez de oponente ou rival, pois o modo reverente como Duns Escoto tem em conta as suas posições mostra a consideração que tem por ele, mesmo que não concorde com algumas das suas teses ou soluções –, mais do que Tomás de Aquino. Na opinião de Dumont “Henrique constitui não apenas uma fonte, mas a fonte, para o pensamento de Escoto. Isto é de facto tão verdade que Escoto parece ser o primeiro pensador escolástico maior a basear explicitamente a sua principal obra no exame sistemático de um contemporâneo. Em muitas

55

Colhemos estas informações gerais sobre Henrique de Gand em CARVALHO, Mário Santiago de, “Henrique de Gand, 1293-1993”, in Mediaevalia – Textos e estudos 3 (1993) 9-23.

56 C

55 questões importantes, Escoto desenvolve a sua própria posição como uma reação crítica à de Henrique, frequentemente depois de uma extensa leitura, análise e refutação do pensamento do Henrique. É o caso, por exemplo, de alguns assuntos fundamentais tais como a relação da fé com a razão, conhecimento natural de Deus, a natureza dos conceitos transcendentais, o primeiro objecto do entendimento, necessidade e contingência, as ideias divinas, criação, iluminação, causalidade da vontade, relação das virtudes e numerosos pontos da teologia trinitária”57. Talvez isso merecesse da

nossa parte um levantamento das suas posições como fizemos para outros autores medievais. Porém, optámos por uma metodologia diferente em que nos interessa principalmente o modo como o Doutor Subtil o lê e a resposta que dá aos seus argumentos, isto independentemente de fazer uma leitura acertada ou não, o que aqui não é objeto do nosso estudo.

Para esta temática da fruição Henrique de Gand é por diversas vezes referido. Detemo-nos num ponto significativo: a necessidade de fruir de Deus. Para tanto, recorremos ao texto da Reportatio (Reportatio I-A, d. 1, p.2, q. 1, nn. 24-26).

Identifica-se o que dizem alguns (dicunt aliqui) com o que é dito por Henrique de Gand. Partimos do princípio que é correta esta inferência, pois assim o afirma os editores desta questão, o que também se pode comprovar pelas notas na edição crítica dos outros comentários.

Está em questão saber se é necessário que a vontade frua de Deus uma vez apreendido obscuramente e de modo universal (an Deo apprehenso obscure in universal necesse sit voluntatem frui). Alguns dizem que sim. Segundo Escoto esta será, então a resposta do Doutor Solene e isto por três motivos. Primeiro fazendo o paralelo entre o modo como o intelecto assente necessariamente aos primeiros princípios especulativos e o modo como a vontade necessariamente assente nos fins últimos. Segundo, a vontade necessariamente quer aquilo em virtude do qual quer o que quer que seja que quer (voluntas vult necessario illud cuius participatione vult quidquid vult) porque isso é maior que tudo o mais que seja apetecível, ou seja, a vontade quer necessariamente aquilo pelo qual tudo o mais é querido e sendo o bem a participação do bem supremo tal bem supremo é querido quando se querem os bens participantes. Por outras palavras, ao querer-se o que participa quer-se o que é participado. Terceiro, a vontade não pode não quer aquilo em que haja alguma malícia ou defeito de bem quer na coisa quer no conhecimento e o fim último, uma vez apreendido não pode ser concebido como defeito de bem ou como malícia, por isso tem de ser necessariamente fruído quando apreendido obscuramente e em geral.

57 D

56 Por estas três razões, identificadas com a opinião de Henrique de Gand, necessariamente se frui do fim último, ou seja de Deus, uma vez apreendido obscuramente e em geral.

Porém, não é esta a opinião de Escoto. Quanto ao primeiro argumento o Doutor Subtil divide em dois a semelhança entre o modo como os princípios teoréticos funcionam no intelecto e os fins na prática, ou seja na vontade. A primeira diz respeito à ordem de existência entre as verdades nos raciocínios e os bens nas coisas. Quanto à verdade, assim como elas têm uma ordem essencial entre elas, principalmente pela participação na primeira verdade, assim também na bondade. E isto pode também ser dito relativo à potência. De facto, a dissemelhança está em que o intelecto que sempre atua numa ordem determinada, e que, por isso, não pode falhar no entendimento do primeiro princípio no qual a verdade primeiramente reside, difere da vontade que pode falhar no querer um bem maior porque não tende necessariamente para o último fim. Quanto ao segundo argumento, Escoto rejeita por ser falsa a premissa maior, isto é, que a vontade queira necessariamente o bem participado em todo o bem que participa, se assim fosse a potência da visão necessariamente veria Deus ao ver as coisas que participam dele. A dificuldade está no modo como se entende a participação, usado de forma equívoca: se for de modo efetivo o argumento de Henrique é verdadeiro, se for de modo formal o argumento é falso. Quanto ao terceiro argumento ele é rejeitado por assentar num falso pressuposto, de facto, tudo o que a vontade quer querê-lo contingentemente e não por necessidade, qualquer que seja o tipo de bem, em geral ou em particular. Escoto, contudo, não rejeita definitivamente a hipótese de que perante um bem sem defeito de bondade a vontade seja incapaz de um ato de rejeição, que é um ato contrário ao ato de querer. Mas admitindo como mais provável que diante do bem perfeito a vontade não o rejeite, daqui não se conclui que necessariamente o queira ou que seja incapaz de o não querer, porque não é a mesma coisa não rejeitar ou querer.

57

B. João Duns Escoto

Feito o anterior percurso pelos principais autores medievais que tratam a questão da fruição, num levantamento genealógico que remonta a Agostinho como marco de referência e ponto de partida para as Sentenças de Pedro Lombardo, vejamos agora como este tema é tratado pelo nosso autor, João Duns Escoto. Percorremos as três partes que dividem a primeira distinção do comentário ao primeiro livro das Sentenças (Ord. I, d. 1), leremos também o texto da Reportatio I-A e apresentaremos ao final um quadro sinóptico onde faremos ainda referência ao texto da Lectura que optamos por não considerar.

SOBRE A FRUIÇÃO

Ord. I, d. 1

PARTE PRIMEIRA –SOBRE O OBJETO DA FRUIÇÃO

Questão I: Se o objeto da fruição por si é o fim último I. Resposta à questão

II. Resposta aos argumentos principais Questão II: Se o fim último tem uma só razão de fruir

I. Resposta à questão

a) Sobre a fruição do viandante quanto à sua possibilidade

b) Sobre a fruição do compreensor falando quanto à potência absoluta de Deus

c) Sobre a fruição do compreensor falando quanto à potência da criatura d) Sobre a fruição do compreensor e do viandante falando de facto II. Resposta aos argumentos

a) Aos argumentos principais b) Às razões opostas

PARTE SEGUNDA –SOBRE A FRUIÇÃO EM SI

Questão I: Se a fruição é um ato elicitado pela vontade, ou é uma paixão recebida na vontade

I. Resposta à questão

II. Resposta aos argumentos principais

Questão II: Se ao fim apreendido pelo intelecto é necessário que a vontade frua dele I. Resposta à questão

a) Opinião de outros

b) Impugnação da opinião de outros c) Opinião própria

d) Impugnação da opinião de outros II. Resposta aos argumentos principais

58

PARTE TERCEIRA –SOBRE O SUJEITO DA FRUIÇÃO

Questão I: Se o fruir convém a Deus Questão II: Se o viandante frui Questão III: Se o pecador frui Questão IV: Se os brutos fruem Questão V: Se todas as coisas fruem

I. Resposta às questões em conjunto II. Resposta aos argumentos principais