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PARTE II – RISCOS E AMEAÇAS DIFUSAS: DESAFIOS À VERTENTE POLÍTICA DA ALIANÇA ATLÂNTICA

3. Proliferação de Armas de Destruição em Massa

3.1.1. Armas Químicas

Armas químicas são aquelas que, através do emprego de substâncias tóxicas, buscam, no curso de uma ação ofensiva, causar danos físicos ou psicológicos a potenciais inimigos340. Isto implica que os efeitos produzidos por este tipo de armamento não decorrem de propriedades explosivas – muito embora explosivos convencionais possam ser utilizados para dispersar agentes químicos sobre uma determinada área –, mas da potencialidade tóxica de seus agentes341, que se classificam, de modo geral, em asfixiantes, vesicantes, nervosos e sanguíneos.

339 ROBINSON, Julian P. Chemical and Biological Weapons. In BUSCH, Nathan E; JOYNER, Daniel H. (edts). Combating Weapons of Mass Destruction. Athens, Georgia: University of Georgia Press, 2009. Cap. 4. pp. 74 e ss.

340 OTAN. Handbook on the Medical Aspects of NBC Defensive Operations, "Part III - Chemical". 1 February 1996, p. ‘1.1’. Disponível em <http://www.fas.org/irp/doddir/army/fm8-9.pdf>. Acesso em Abril de 2012. É interessante notar que estão excluídas desta noção os agentes antimotim, de fumaça, assim como os herbicidas e outras substâncias utilizadas em atividades agrícolas, de pesquisa, médica, farmacêutica ou outras, desde que realizadas com fins pacíficos.

341 CIRINCIONE, Joseph et al. Deadly Arsenals: Nuclear, biological and chemical threats. Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 2005, pp. 6 e 7.

Enquanto os agentes asfixiantes atuam nas vias respiratórias, atacando o tecido pulmonar e causando edema, geralmente levando a morte, os agentes vesicantes, por sua vez, costumam causar queimaduras ou empolamento em qualquer parte do corpo com que entram em contato e afetam, em regra, olhos, membranas mucosas, pulmões, pele e, inclusive, a medula óssea342. Estes agentes foram os primeiros a serem utilizados nos conflitos armados modernos343 - tendo sido amplamente empregados durante a I Guerra Mundial - e são, por isso, ordinariamente designados ‘armas químicas clássicas’344.

Os agentes nervosos345, por sua vez, foram desenvolvidos pelos alemães durante a década de 30, período considerado como o início da ‘era moderna’ do armamento químico346. Extremamente perigosos – quando comparados aos agentes asfixiantes e vesicantes –, estes agentes costumam interromper a transmissão dos impulsos nervosos, dando azo ao colapsamento do sistema nervoso central e a consequente perda da coordenação muscular, o que acarreta sufocamento, convulsões e, na maioria das vezes, morte.

Embora não tenham sido utilizadas em combate durante a II Guerra Mundial, estas substâncias se revelaram extremamente eficientes quando empregadas contra pessoas desprotegidas, desempenhando um papel central na política nazista de extermínio de judeus.

Durante a segunda metade do século XX, os EUA e a URSS viriam a realizar investimentos maciços em programas químicos, aprimorando os agentes gasosos já existentes, desenvolvendo outros novos e armazenando-os em gigantescos arsenais.

342 OTAN. Handbook on the Medical Aspects of NBC Defensive Operations, "Part III - Chemical". 1 February 1996, pp. ‘3.1’ e ‘4.1’.

343 O emprego de substâncias tóxicas e venenosas em combate é tão antigo quanto à própria História da humanidade. Todavia, seria apenas com a revolução industrial do século XIX, que estas substâncias passariam a ter um propósito tático no campo de batalha. Confira ROBERTS, Brad. Controlling Chemical Weapons. In Transnational Law and Contemporary Problems. Vol. 2 (1992), p. 436.

344 CIRINCIONE, Joseph et al. Deadly Arsenals: Nuclear, biological and chemical threats. Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 2005, p. 7.

345 Os principais agentes nervosos são o GA (Tabun), GB (Sarin), GD (Soman), GF (Cyclosarin) e VX (methylphosphonothioic acid). É interessante notar que os agentes ‘G’ são não-persistentes, isto é, dissipam-se minutos após a introdução da substância química em um determinado ambiente, enquanto o agente ‘V’ é persistente. Para maiores informações sobre as substâncias tóxicas utilizadas como armas químicas, inclusive sobre suas características físicas e químicas, medidas de descontaminação, entre outros, confira OTAN. Handbook on the Medical Aspects of NBC Defensive Operations, "Part III - Chemical". 1 February 1996.

346 CIRINCIONE, Joseph et al. Deadly Arsenals: Nuclear, biological and chemical threats. Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 2005, p. 7.

Além disso, a proliferação de armas químicas não ficaria restrita a uma perspectiva vertical, tendo ocorrido, naquele mesmo período, um aumento exponencial do número de países que dispunham de tais capacidades. Efetivamente, da década de 60 até o início dos anos 90, o número de países detentores de armamento químico passaria de cinco para vinte347, tendo havido indicativos do possível uso destas armas em inúmeros conflitos ao redor do globo348.

Todavia, o uso de substâncias químicas em combate é considerado duvidoso. Embora seja indiscutível que possuam alguma utilidade tática349, por serem extremamente dependentes de elementos não sujeitos a qualquer controle, como, por exemplo, condições atmosféricas ou características geográficas do terreno, foram, por isso, reputadas como militarmente instáveis350.

Outro elemento que diminui consideravelmente as eventuais vantagens táticas decorrentes do emprego de armas químicas é a existência de uma grande variedade de defesas passivas contra este tipo de armamento – luvas, máscaras e outros equipamentos de proteção – capazes de minimizar consideravelmente os efeitos de um ataque desta natureza. Estas defesas, embora diminuam a eficiência das tropas em combate, garantem um alto nível de proteção contra agentes químicos de toda espécie.

Além disso, em uma comparação ao nível de volume, as armas químicas apresentam um potencial de letalidade muito inferior às nucleares ou biológicas, somente tendo efeitos equiparáveis se utilizadas em quantidades infinitamente superiores. Na

347 ANON apud HAINES L. P. Controlling the Possession and Use of Biological and Chemical Weapons. In Australian Defence Force Journal. Nº 99 (1993), p. 43.

348 Suspeita-se que, durante a Guerra Fria, armas químicas tenham sido utilizadas em diversos conflitos menores, entre eles, Afeganistão, Chechênia, Laos, Bruma, Sri Lanka, Iêmen e na antiga Iugoslávia. Confira WESTON, Burns H et al. International Law and World Order: A problem-oriented coursebook. 4th ed. St. Paul: Thomson West, 2006, p. 464. Todavia, somente se pode confirmar seu uso em duas situações: (i) pelas forças armadas egípcias durante a guerra civil iemenita, em 1966; e (ii) pelo Iraque durante o conflito com o Irã, entre 1983 e 1988. ROBINSON, Julian P. apud ROBERTS, Brad. Controlling Chemical Weapons. In Transnational Law and Contemporary Problems. Vol. 2 (1992), p. 435. Ademais, embora substâncias químicas desfolhantes ou herbicidas tenham sido amplamente utilizadas durante a Guerra do Vietnã, este não é um exemplo corrente em livros ou artigos científicos sobre o tema. Tal omissão justifica-se pelos obstáculos enfrentados pela comunidade internacional, face às ressalvas de determinados países, em incluir estas específicas substâncias nas normas internacionais de proscrição das armas químicas.

349 A utilização de substâncias químicas persistentes pode tornar insustentável a permanência prolongada de tropas em determinadas áreas, enquanto a de agentes não persistentes pode ser utilizados para ultrapassar defesas inimigas, permitindo, imediatamente, a ocupação do território pelas forças atacantes. 350 Veja, por exemplo, PANOFSKY, Wolfgang. Dismantling the Concept of ‘Weapons of Mass Destruction’. In

Arms Control Today. Vol. 28, nº 03 (1998). Disponível em: <http://www.armscontrol.org/act/1998_04/wkhp98>. Aceso em: Abril de 2012. Para esta doutrina,

verdade, “in some battlefield scenarios, chemical weapons might be no more effective than

the same weight of conventional high-explosive munitions, even when used against unprotected people351”.

Mas se as armas químicas são tão desinteressantes do ponto de vista tático, como explicar, então, a atração que exercem sobre diversos Estados e, principalmente, a sua rápida proliferação durante a segunda metade do século XX?

Podemos tentar responder a esta questão sob dois prismas distintos. O primeiro, de natureza estratégica, passa, necessariamente, pelas suas faculdades dissuasoras352; enquanto, o segundo, relaciona-se com o seu baixo custo de produção.

Considerando a primeira dessas perspectivas, poderemos compreender porque as principais Potências da Guerra Fria, embora possuíssem outros recursos com capacidade destrutiva muito superior, mantiveram, durante aqueles anos, um gigantesco arsenal químico.

Na verdade, ambos os EUA e a URSS – e, possivelmente, outras potências coadjuvantes da Guerra Fria, tais como a Inglaterra, a França e a China – justificaram a posse de seus arsenais sob o pretexto da dissuasão e da retaliação em mesma espécie. Buscava-se, assim, desenvolver capacidades que permitissem dissuadir ou retaliar, em

mesma espécie, eventuais ataques químicos direcionados contra seus respectivos

territórios – evitando, deste modo, o recurso às armas nucleares e o consequente escalonamento do conflito353.

351 U. S. CONGRESS, Office of Technology Assessment. Proliferation of Weapons of Mass Destruction: Assessing the risks (OTA-ISC-559). Washington, DC: U.S. Government Printing Office, 1993, p. 9. O reduzido potencial para causar baixas, civis ou militares, desqualifica as armas químicas para serem classificadas como ‘armas de destruição em massa’, tendo alguma doutrina proposto que elas sejam designadas por ‘armas de destruição indiscriminada’ ou ‘armas de terror’. Confira PANOFSKY, Wolfgang. Dismantling the Concept of ‘Weapons of Mass Destruction’. In Arms Control Today. Vol. 28, nº 03 (1998). Disponível em: <http://www.armscontrol.org/act/1998_04/wkhp98>. Aceso em: Abril de 2012. 352 A capacidade dissuasora – que, em maior ou menor escala, é inerente a qualquer tipo de armamento -

parece ter sido reconhecida nas armas químicas já durante a II Guerra Mundial. Assim, L.P. Haines explica que “it is widely believed that the reason Germany did not use chemical weapons during World War II was

the deterrent effect of what they understood to be the Allied Chemical Weapons Inventory”. HAINES, L.P.

Controlling the Possession and Use of Biological and Chemical Weapons. In Australian Defence Force Journal. Nº 99 (1993), p. 46.

353 O antigo arsenal químico americano é apontado como peça fundamental para a estratégia da ‘flexible

responses’ da Aliança Atlântica, sem o qual, caso viesse a se concretizar um ataque químico soviético, uma

resposta nuclear seria inevitável. HAINES, L.P. Controlling the Possession and Use of Biological and Chemical Weapons. In Australian Defence Force Journal. Nº 99 (1993), p. 46.

Essa mesma percepção de que as armas químicas possuíam, afinal, uma utilidade estratégica, foi fundamental para a sua proliferação entre os chamados países em desenvolvimento. Regiões periféricas ao epicentro do conflito militar-ideológico, tais como a Ásia Meridional, a península coreana e, principalmente, o Oriente Médio, em razão de suas respectivas rivalidades locais, mostraram-se especialmente suscetíveis a competição armamentista.

Assim, a proliferação química ocorreu como parte de um processo de robustecimento militar mais amplo, responsável pelo aumento de tensões regionais e indicativo de que, caso um conflito armado viesse a ocorrer, teria proporções sem precedente. Neste sentido, o desenvolvimento e uma maior facilidade de acesso a sistemas de mísseis balísticos de médio e longo alcance – outra faceta daquela corrida armamentista regional – revelou-se um componente extremamente desestabilizador, operando, em situações de acirramento nas relações político-militares, como um incentivo à realização de ataques preventivos354.

Ademais, o binômio ‘armas químicas’ e ‘mísseis balísticos’, vez que possibilitava a remessa de substâncias mortíferas para grandes centros urbanos e populacionais, parecia atribuir aos detentores daquelas tecnologias um grande poder de barganha política. O ‘clube’ químico passava, então, a ser erroneamente compreendido como um ‘clube’ nuclear de segundo escalão.

De fato, o baixo custo da produção e armazenamento das armas químicas355, somado a percepção de sua utilidade estratégica, renderiam a elas a designação de “poor

man’s atomic weapon356”.

A proliferação química foi, no entanto, consideravelmente reduzida - ou revertida - durante a década de 90. Com o fim das hostilidades entre o Ocidente e os países do leste europeu, inserida em um projeto maior de controle armamentício, foi celebrada, em Setembro de 1992, a Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção,

354 Confira ROBERTS, Brad. Controlling Chemical Weapons. In Transnational Law and Contemporary Problems. Vol. 2 (1992), p. 439.

355 O Professor Brad Roberts enfatiza a inexistência, até o início dos anos 90, de um instrumento jurídico multilateral que proscrevesse internacionalmente as armas químicas, salientando, ademais, que grandes corporações, por repetidas vezes, negociaram materiais e substâncias com Estados que, notoriamente, desenvolviam programas químicos com finalidade militar. Veja, ROBERTS, Brad. Controlling Chemical Weapons. In Transnational Law and Contemporary Problems. Vol. 2 (1992), p. 441.

Armazenagem e Utilização de Armas Químicas e sua Destruição, que, como veremos em

ponto específico, promoveu grandes avanços no campo do desarmamento.

No entanto, as substâncias químicas continuam a ser um risco tangível a segurança internacional, seja pelos prováveis programas militares desenvolvidos secretamente por alguns países, seja por que constituem a ‘arma de destruição em massa’ de eleição das organizações terroristas357.