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PARTE II – RISCOS E AMEAÇAS DIFUSAS: DESAFIOS À VERTENTE POLÍTICA DA ALIANÇA ATLÂNTICA

3. Proliferação de Armas de Destruição em Massa

3.2.1. Os Arsenais Nucleares Existentes

Mas, se até mesmo os adeptos mais representativos da Structural Deterrence

Theory reconhecem a existência das armas nucleares como o único requisito para que o

seu uso – deliberado, não autorizado ou acidental – seja possível, torna-se inevitável considerar que, num mundo nuclear, a possibilidade de uma catástrofe atômica é uma variável sempre presente413.

Apesar do frágil equilíbrio inerente às relações indo-paquistanesas, do impacto desestabilizador que o arsenal atômico “secreto” israelense tem sobre a segurança no Oriente Médio, ou da irresponsável postura nuclear mantida, especialmente durante a década de 90, por países como a França, nenhum desses fatores representa risco proporcionalmente equivalente ao dos arsenais nucleares mantidos pela Rússia e pelos EUA. Isto é assim não apenas em razão da sua incomparável dimensão, o que os torna especialmente capazes de infligir devastação a toda a Humanidade, mas, também, das rivalidades que marcam a sua ‘história nuclear’ comum e que – através da manutenção de

412 Neste sentido, Julian Robinson ensina que: “‘Nonproliferation’ is itself another technical term that is

problematic in its application to CBW (chemical and biological weapon), for international law is now either approaching or, depending on one´s view, has long since reached the point at which any possession of CBW is illegal”. ROBINSON, Julian P. Chemical and Biological Weapons. In BUSCH, Nathan E; JOYNER, Daniel H.

(edts). Combating Weapons of Mass Destruction. Athens, Georgia: University of Georgia Press, 2009. Cap. 4, p. 74.

413Acerca da intensidade e frequência dos conflitos armados, Raymond Aron afirma que se pudéssemos optar por ou (1) viver em mundo convencional com elevada probabilidade de verificação de conflitos menores entre grandes Potências; ou (2) em um mundo nuclear no qual existisse uma ínfima possibilidade de que Estados nuclearmente armados viessem, em um confronto total, a extinguir a maior parte da vida humana na Terra, a escolha por aquela primeira opção parece ser, portanto, uma consequência lógica e natural. Todavia, a doutrina afirma que a liberdade de escolha possui uma essência semi-utópica, na medida em que “[a]ttempts at disarmament in the past have always failed, but the attempt

at atomic disarmament had even less chance of success because the nature of the weapons aroused additional obstacles to an agreement and even more to the supervision of such an agreement”. O mesmo

posicionamento foi defendido, mais recentemente, por Kenneth Waltz, em cuja opinião aquela escolha

“effectively disappeared with the production of atomic weapons by the United States during World War II”.

Veja, respectivamente, ARON, Raymond. On War. Tradução para o inglês de Terence Kilmartin. Lanham: University Press of America, 1985, pp. 14-16; e WALTZ, Kenneth N. More may be better. In SAGAN, Scott D.; WALTZ, Kenneth N. The Spread of Nuclear Weapons: A debate renewed. 2nd ed. New York: W. W. Norton & Company, 2002. Cap 01, p. 35

políticas nucleares que em nada contribuem para a estabilidade de suas relações ou, tampouco, da segurança internacional – continuam a se verificar hodiernamente.

A Crise dos Mísseis414, de outubro de 1962, que exerceu um tremendo impacto na elaboração do Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares e que se encontra na base do processo de relaxamento das tensões (détente) entre a URSS e os EUA, traduz- se, talvez, no maior exemplo de uma situação na qual as complexas relações externas (intergovernamentais) e internas (institucionais), americana e soviética, levaram os dois países à beira de um confronto nuclear, que poderia ter resultado tanto de decisão política deliberada, quanto de ação não autorizada ou acidental.

Mesmo que seja possível argumentar que as relações de dissuasão mútua impediram o uso deliberado do armamento nuclear durante aquela crise, pelo menos dois episódios relatados por Scott D. Sagan, talvez o mais respeitado teórico pessimista da atualidade, demonstram o quanto estivemos próximos de assistir a uma guerra nuclear iniciada por um primeiro ataque não autorizado e/ou acidental. Em sua obra The Spread

of Nuclear Weapons, escrita em coautoria com Kenneth Waltz, Sagan exemplifica415: “A second safety problem occurred at Malmstrom Air Force Base in Montana at the height of the crisis, when officers jerry-rigged their Minuteman missiles to give themselves the independent ability to launch missiles immediately. This was a serious violation of the Minuteman safety rules, but when an investigation took place after the crisis, the evidence was altered to prevent higher authorities from learning that officers had given themselves to launch an unauthorized missile attacks”.

E ainda:

“A third incident occurred on October 28, when the North American Air Defense Command (NORAD) was informed that a nuclear-armed missile had been launched from Cuba and was about to hit Tampa, Florida. Only after the expected detonation failed to occur was it discovered that a radar operational had inserted a test tape simulating an attack from Cuba into the system, confusing control room officers who thought the simulation was a real attack”.

Infelizmente, episódios como os descritos acima – nos quais erros de cálculo humano ou falhas mecânicas induziram as superpotências a situações de emergência

414 Neste episódio, descrito por Arthur Schlesinger – historiador e assessor do Presidente J. F. Kennedy – como “the most dangerous moment in human history”, a humanidade esteve muito próxima de assistir novamente a utilização de uma arma nuclear. Confira SCHLESINGER, Arthur apud CHOMSKY, Noam. Failed States: The abuse of power and the assault on democracy. Londres: Hamish Hamilton, 2006, p. 8.

415 Confira SAGAN, Scott D. More will be worse. In SAGAN, Scott D.; WALTZ, Kenneth N. The Spread of Nuclear Weapons: A debate renewed. 2nd ed. New York: W. W. Norton & Company, 2002. Cap 02, p. 76. O negrito é nosso.

putativa, onde estiveram disponíveis opções de retaliação nuclear – não representam a exceção, mas a regra durante os 45 anos da Guerra Fria416.

O fim da Guerra Fria representaria uma melhora qualitativa nas relações EUA- Rússia e reduziria, de forma significativa, o risco dos dois países se envolverem, de forma premeditada e deliberada, num confronto nuclear. Todavia, apesar das melhorias verificadas, as chances de um ataque nuclear acidental ou não autorizado persistem hodiernamente417.

Essa possibilidade é devida, principalmente, ao estado de prontidão e alerta (hair-trigger, high-alert) de grande parte das armas nucleares russas e americanas, ajustadas, ainda nos dias de hoje, aos padrões da Guerra Fria, permitindo-lhes realizar um ataque nuclear em larga-escala – do momento da ordem ao lançamento de mísseis balísticos – em menos de 15 minutos418. Tal nível de prontidão e alerta aumenta consideravelmente o perigo de uso nuclear não autorizado ou acidental, uma vez que dificulta a detecção de falhas na cadeia de comando, além de reduzir o tempo hábil para que autoridades políticas e militares possam, de forma prudente, tomar decisões vitais419.

416 Pelo menos 18 outras situações de falhas humanas e mecânicas que quase levaram os EUA e a URSS a um conflito nuclear podem ser consultadas em PHILLIPS, Alan F. 20 Mishaps that Might Have Started a Nuclear War. Nuclear Age Peace Foundation, 1998. Disponível em: <http://www.wagingpeace.org/articles/1998/01/00_phillips_20-mishaps.php>. Acesso em Junho de 2013. Outro famoso incidente não incluído na lista elaborada por Alan Phillips ocorreu em 26 de Setembro de 1983, quando o Tenente-coronel Stanislav Petrov, responsável pela gestão de um desses sistemas na região sul de Moscou, recebeu a leitura da presença de cinco mísseis no espaço aéreo soviético – o que revelava um provável ataque nuclear americano. Sem qualquer evidência que fundamentasse o seu argumento e em violação dos procedimentos padrão soviético, Petrov informou a seus superiores que a leitura dos cinco mísseis (capazes de transportar, hipoteticamente, 10 ogivas cada) era, na verdade, um alarme falso. Mais tarde, após uma falha mecânica ter sido confirmada por autoridades soviéticas, Petrov, justificando a sua correta decisão, viria a afirmar que decidiu ignorar a leitura do radar porque lhe parecia ilógico que os EUA atacasse a URSS utilizando apenas cinco mísseis balísticos. Confira LUNDGREN, Carl. What are the Odds? Assessing the probability of a nuclear war. In The Nonproliferation Review. Vol. 20, nº 02 (2013), pp. 365-366.

417 NUNN, Sam. The Cold War’s Nuclear Legacy Has Lasted Too Long. In Financial Times. Dec. 6, 2004. Disponível em: <http://www.nti.org/analysis/opinions/cold-wars-nuclear-legacy-has-lasted-too- long/>. Acesso em: Julho de 2013.

418 MACNAMARA, Robert S. Apocalypse Soon. In Foreign Policy. Nº, 148 (2005), pp. 30 e 31.

419 SHULTZ, George P; NUNN, Sam; KISSINGER, Henry. Toward a Nuclear-Free World. In The Wall Street

Journal. January 15, 2008. Disponível em: <http://

http://online.wsj.com/articles/SB120036422673589947>. Acesso em: Julho de 2012. Considerando, ainda, os perigos inerentes ao elevado nível de prontidão e alerta das armas nucleares russas e americanas, os autores reconhecem ainda que “cyber-warfare pose new threats that could have disastrous

consequences if the command-and-control systems of any nuclear-weapons state were compromised by mischievous or hostile hackers”.

A situação é agravada pela adoção de políticas nucleares, oficiais ou de facto, extremamente contraproducentes por ambos os Estados420. Entre elas incluem-se estratégias de first-use421 – pela qual, ambos os Estados se reservam a prerrogativa de

responder a um ataque armado convencional com o emprego de armas nucleares – e de

Launch-on-Warning422 que, de modo a resguardar os seus sistemas de comando e controle

e assegurar a total capacidade de retaliação, impõe que o contra-ataque deva ser lançado antes que o ataque iminente se concretize.

O elevado nível de prontidão e alerta das armas nucleares russas e americanas é um legado da Guerra Fria e constitui grave risco à segurança internacional. Bastaria a redução destes níveis – através de medidas como a separação das ogivas nucleares operacionais dos mísseis intercontinentais –, garantindo às autoridades políticas mais tempo em uma situação de crise, para reduzir drasticamente as chances de uma guerra

420 Enquanto a política nuclear russa, após o fim da Guerra Fria, revelou-se essencialmente reativa, resultando de imperativos de ordem estratégica que afetavam diretamente a sua segurança nacional, a política nuclear americana da última década, principalmente durante o governo bush, pode ser descrita como irresponsável. O antigo Secretário de Defesa norte-americano, Robert S. Macnamara, classificou tal política como “immoral, illegal, militarily unnecessary, and dreadfully dangerous”. MACNAMARA, Robert S. Apocalypse Soon. In Foreign Policy. Nº, 148 (2005), p. 29.Por um lado, foram desenvolvidos planos militares que enfraqueciam a distinção entre armas convencionais e nucleares, na medida em que consideravam o emprego de ‘pequenas’ armas nucleares táticas para destruir instalações subterrâneas em Estados como Irã e Coréia do Norte. Tais planos, integrados sob a designação de CONPLAN 8o22, revertiam, na prática, a declaração tantas vezes realizada após a Guerra Fria, pela qual os EUA e demais membros da OTAN, reconheciam as armas nucleares como “weapons of last resource”. Confira ARKIN, William. Not Just a Last Resort? In The Washington Post. May 15, 2005. Disponível em: <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2005/05/14/AR2005051400071.html>. Acesso em: Julho de 2012. Por outro lado, o governo Bush caracterizou-se por uma lógica de ‘dois pesos, duas medidas’, pela qual se revelava conivente com as forças nucleares de Estados como Israel, Paquistão e Índia, considerados por Washington como aliados no combate ao terrorismo globalizado, ao mesmo tempo em que adotava uma postura belicista em relação as pretensões nucleares de países como o Irã e a Coréia do Norte. FERGUSON, Charles D.; HAM, Peter van. Beyond the NRA Doctrine. In The National Interest. Jan./Feb., 2007, pp. 55-56.

421 A URSS iniciou, a partir da primeira metade da década de 70, uma política de no first-use, que foi revogada, contudo, em 1994. Essa mudança na doutrina nuclear russa deu-se em parte como resposta as políticas que antecederam a expansão da OTAN para o leste europeu, e parte em decorrência da percepção de que as armas nucleares ainda compunham um relevante fator para a sua segurança. Por outro lado, a

deterrence nuclear ocidental sempre esteve assente na ameaça credível de que seus governos fariam uso

de armas nucleares, ainda que em resposta a ataques convencionais. Confira MCCGWIRE, Michael. The Rise and Fall of the NPT: An opportunity for Britain. In International Affairs. Vol. 81, nº 1 (2005), p. 119. 422 Os EUA e a Rússia, ainda que não reconheçam publicamente, mantêm uma doutrina de lounch on warning. Confira BLAIR, Bruce et al. Smaller and Safer: a new plan for nuclear postures. In Foreign Affairs. Vol. 89, nº 05, (2010), p. 9. Na opinião de Sam Nunn, o fato de haver uma vantagem americana no que concerne ao estado das forças nucleares estratégicas, faz com que a Rússia esteja mais inclinada a iniciar um contra-ataque ao primeiro alarme de mísseis nucleares disparados em sua direção. Uma vez que os sistemas de aviso prévio (early system warning) pertencentes à Rússia se encontram em péssimo estado de conservação, a ocorrência de um alarme falso revelar-se-ia catastrófica. NUNN, Sam. The Cold War’s Nuclear Legacy Has Lasted Too Long. In Financial Times. Dec. 6, 2004. Disponível em <http://www.nti.org/analysis/opinions/cold-wars-nuclear-legacy-has-lasted-too-long/>. Acesso em: Julho de 2013.

acidental ou não autorizada423. Outra solução passa por uma mudança doutrinária na política nuclear das duas Potências, de forma a substituir o Launch-on-Warning por um sistema que obrigue a ambos os países somente iniciar a ação retaliatória após a detonação das ogivas lançadas em um ataque – Retaliatory Launch Only on Detonation (RLOAD)424.

Acrescente-se que a manutenção desses gigantescos arsenais repercute de forma negativa no regime-jurídico internacional de combate à proliferação nuclear, na medida em que removem a autoridade moral de países como os EUA para opor-se aos Estados que, em violação daquelas normas, desenvolvem programas nucleares com finalidade militar. Inegável é o fato de que os EUA e Rússia possuem, nos dias de hoje, número de armas nucleares muito superior do que requer suas respectivas seguranças nacionais.

O New Strategic Arms Reduction Treaty, celebrado pelas duas Potências, em Abril de 2011, em nada altera o nível de prontidão e alerta das suas armas estratégicas e, tampouco, revela-se como um passo significativo no sentido do desarmamento nuclear total imposto pelo TNP, e mantem, em matéria de deterrence, os mesmos velhos padrões da Guerra Fria425.