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Tonha: a companheira nas brincadeiras da infância e o lugar da projeção

Tonha, por sua vez foi representada por Magdalena Antunes como sendo a “negrinha”, e este é o adjetivo constantemente utilizado na memorialística para se referir à menina que viveu junto com ela nos seus primeiros anos de infância, sendo a sua companheira fiel nas brincadeiras e de quem muito lembrava quando estava internada no Colégio de São José em Recife. Em Menino de engenho, José Lins do Rêgo também faz a referência aos “moleques” que eram os companheiros de Carlinhos em suas brincadeiras no engenho Santa Rosa, entre eles o Moleque Ricardo (RÊGO, 2010).

Por ter nascido poucos anos após decretada a Lei do Ventre Livre, Tonha não era cativa, mas morava nos fundos do engenho da família Antunes com sua avó Tetê, que ainda não havia sido alforriada. Tonha era filha de mãe escrava que foi morta no poder de outro senhor, passando a ficar sob os cuidados da avó, que conseguiu ficar com a menina, o que Magdalena Antunes identificou como um ato de benevolência de seus antigos senhores.

Quando brincava com Magdalena Antunes de “dona de casa”, Tonha escolhia sempre o papel de senhora, momento em que invertia os papéis com sua ama e tomava ares de nobreza, ameaçando sua escrava com cocorotes caso esta não arrumasse a casa de bonecas conforme seu gosto (ANTUNES, 2003). Tonha também era companheira de Magdalena nas

corridas de cavalo. Nos serões, quando Patica se reunia com as crianças para a contação de histórias, Tonha se fazia presente, esparramada no chão do alpendre, cuidando para não perder qualquer detalhe da história que era narrada. Assim escreveu Magdalena Antunes:

Nos lances aterradores, de passagens de jiboias engolindo incautas crianças, fantasmas de um olho só, no meio da testa, correndo pelos desertos a fazer penitência, as crianças ficavam de olhos esbugalhados e cabelos em pé. Nesta altura, cutucava-me a Tonha: - Sinhá Lica, estou toda arrepiada! Mas, os seus grandes olhos de jabuticaba cresciam mais e arredondavam-se, oscilando como pêndulo de relógio, de um lado a outro, quando nas novelas aparecia um “lobisomem” e Patica, encarando-a sisuda, dizia: “Era o homem que comia barro...” (ANTUNES, 2003, p. 81)

Seu maior sonho era ir visitar a cidade encantada de “Olindra”, onde tudo era fantástico e fabuloso, lugar este para onde desejava viajar com sua companheira de aventuras nas asas de um pássaro gigante que vira no livro de leitura de Magdalena Antunes. “O cérebro da inteligente negrinha já elaborava o avião...” (ANTUNES, 2003, p. 157). Assim ela confidenciou a Magdalena Antunes quando esta a interrogou sobre de onde ela havia ouvido falar da existência da cidade mágica: “Já vi perfeitamente a cidade de „Olindra‟, em livros da estante do Doutô da Meira. Quando vou lá com Tetê, minha avó, levá presente da Sinhazinha pra mulhé do douto, assim que eu tenho uma escapula, rumexo nos livro!” (ANTUNES, 2003, p. 82).

Em um dia, a menina Tonha fugiu do engenho, prometendo a Magdalena Antunes trazer-lhe um saquinho de brilhantes pois, segundo o imaginário da menina em relação à cidade, suas ruas eram ladrilhadas com esse minério. Quando a ausência da menina foi notada pela avó Tetê, todo o engenho Oiteiro se colocou em polvorosa. O coronel Antunes levantou da mesa e expediu ordens aos cavaleiros, que se dividiram em diferentes direções no sentido de reencontrar Tonha. Já tarde da noite, Magdalena Antunes é acordada com ruídos no quintal: bater de cancela, trotar de cavalos e gritos. Era Tonha que havia sido capturada e estava sendo castigada pelo mal feito. Assim Patica tentou acalmar Magdalena que do quarto ouvia tudo aflita:

É a negrinha apanhando pancada para não ser tão cavilosa... Pois não é que a pegaram já perto de santa Cruz dos Gois? [...]. - Que invenção é essa de cidade de Olindra? - Tudo astúcia daquela sirigaita... Foi só pra levar uma boa sova... Nunca houve essa tal cidade de Olindra... Ó! Negrinha terrível, já ia passando do engenho das Imburanas. Eu só estou a cadência da descarada sair sozinha, no escuro, pelas estradas desertas! E, abanando a cabeça: não nega que tem raça dos negros fujões... Mas a dormente é mesmo um demoinho... Pois não estava enchendo a cabeça da menina de quanta estrepolia havia? Durma, Sinhá Lica, durma... [...] (ANTUNES, 2003, p. 86; grifos meus).

A partir da citação acima, a violência sofrida pela menina Tonha foi vista com bastante naturalidade pela escrava Patica, que em nenhum momento se compadeceu de sua irmã de cor. Apesar de a velha escrava ter ficado impressionada com a coragem da menina em ter saído no escuro da noite, aprovou a repreensão sofrida afirmando que Tonha pertencia a uma raça que cita em tom de desprezo – “a raça dos negros fujões” – e por tal motivo merecia sofrer a surra. Magdalena Antunes, por sua vez, não intercedeu pela menina que havia saído do engenho para buscar os brilhantes destinados a ela, ouviu do quarto os gritos e as pancadas que Tonha levava, mas lamentou: “Fechei os olhos. Havia perdido o primeiro saquinho de brilhantes com que a sorte me acenava... E Tonha, a sua primeira miragem, que redundou em pancadas” (ANTUNES, 2003, p. 87).

Patica, nas narrativas de Magdalena Antunes, sempre aparece em contraposição a Tonha, mansa e serviçal, jamais indo de encontro às vontades senhoriais; tanto é que a escrava morre em 1919, aos noventa anos, ainda na casa de seus antigos donos, mesmo já sendo livre pela lei imperial de 1888. Ou seja, Patica viveu trinta anos “liberta” na casa dos Antunes e a eles servindo. Mas de fato, quais as perspectivas de vida para uma ex-escrava com idade avançada no mundo do trabalho livre de então? Quando foi liberta, Patica tinha sessenta anos, uma idade em que o vigor corporal já não é o mesmo de antes, sobretudo para uma escrava que teve uma vida atribulada de trabalho, como foi o seu caso. Certamente ela tinha a noção de que, fora da fazenda onde havia passado maior parte de sua vida, não havia mais possibilidades para ela.

Já Tonha é quem traz para a casa dos Antunes as notícias dos debates abolicionistas, que estavam sendo travados no país e que repercutiam nas ruas, nos cafés, nas vendas e no mercado de Ceará-Mirim. Das ruas da cidade, as notícias reverberavam nas fazendas entre os escravos. “Falavam de homens chamados José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e principalmente um poeta, Castro Alves, todos falando e escrevendo a favor dos escravos!” (ANTUNES, 2003, p. 96). Assim Magdalena Antunes escreveu: “Tonha chegava, esbaforida, da feira dos sábados, e desabafava: - Sinhá Lica, é verdade mesmo... Eu ouvi se dizê no mercado, que um tá de Joaquim Quimbuco é o mais danado de todo a favô dos nego” (ANTUNES, 2003, p. 96). Em outro momento: “A Tonha vinha me contar: „Sinhá Lica‟, os negos está tudo dizendo na cozinha que vai tudo se libertá. Cada quá vai para onde quisé... A Emília dixe que vai pro Pará... Minha avó Tetê já dançou na cozinha, dizendo que vai pro sertão e me carrega!” (ANTUNES, 2003, p. 95).

É justamente a “menina insolente e atrevida” que, mesmo sem entender o que de fato estava acontecendo, aparecia enquanto um contraponto à velha Patica, cuja postura de

passividade em relação à possibilidade de liberdade foi ridicularizada pelas outras escravas da casa. Sobre isso Magdalena Antunes escreveu: “Patica também vai? Ela estalava a língua: Quá! Deixá Sinhá Moça, nunca... As negas da cozinha manga dela” (ANTUNES, 2003, p. 95). Após a abolição, Tonha de fato foi embora com sua avó do engenho Oiteiro para o sertão, tal como tantos outros escravos que festejaram a nova condição de vida longe da servidão, para a tristeza de Magdalena Antunes.

Na escrita de Magdalena Antunes, Tonha representava a liberdade que ela própria não tinha usufruído em sua condição social de menina da elite que precisava atender a certas expectativas ligadas à sua classe, ainda mais sendo ela filha de um coronel. Embora não fosse escrava, sua posição dentro dessa sociedade vetava sua presença em determinados lugares e exigia sua presença em outros tais como na Igreja. Magdalena Antunes lamentava o fato de não poder circular livremente pelos engenhos e fazendas vizinhas, bem como pela cidade, e se mostrava enciumada pela abertura que Tonha possuía em espaços que ela só conhecia devido às narrativas na menina. Assim ela escreveu:

Como eu lhe invejava a feliz liberdade de ir à feira, à “casa de farinha” assistir à farinhada, com as comadres de minha mãe! Eu sim, é que parecia ser uma escrava... Não tinha licença de sair senão para ir à missa das Imburanas e, quando passava pela ladeira, com medo horrível que o carro de boi virasse, dava um vintém ao carreiro para não nos deixar cair no precipício... Como trocaria aquelas missas pelo prazer de ver fazer os beijus cheirando a cravo, que Tonha me trazia, dizendo: - Sinhá Lica, a roda da bulandeira que come a batata da mandioca é mais bonita que a roda do engenho que come cana! E que vontade eu tinha de assistir a uma farinhada! Mas, ao mesmo tempo, tinha medo, porque Tonha asseverava que a bolandeira comia mão de gente. As mulheres que “cevavam” a mandioca ficavam às vezes sem dedos. Tudo quanto ela dizia eu acreditava. Às vezes, chegava espantada, quando era notado o desaparecimento de um objeto ou a presença de outro quebrado, rogando-me, então, que a não deixasse apanhar uma surra... [...] E quando o perigo de levar a sova passava, ela se mostrava franca pedindo-me segredo de que quem quebrara o pires ou a xícara fora ela, enterrara os cacos no quintal, mas não tinha sido por gosto, escapulira da mão ao metê-nos no pote para... furtar mel! Eu perguntava por que ela não pedia e porque tirava escondido. Sorria e, revirando os olhos afirmava com estalo na língua: - Eu só gosto de comê mé escondido, pruquê, como com a mão lambendo os dedos (ANTUNES, 2003, p. 163-165; grifos meus).

Outro fato importante é possível observar no texto acima: a existência de repreensão e castigos físicos por motivos fúteis no engenho Oiteiro direcionados aos escravos e serviçais, como se nota pelo medo da escrava Tonha em ser descoberta pela quebra do pires ou da xícara ao furtar mel do pote da cozinha. Isso também aparece na seguinte passagem da fala que Magdalena Antunes atribui a Tonha: “- Sinhá Lica, graças a Deus aqui não se mata negro nem se dá surra em ninguém. Só quem apanhava às vezes do „feitô‟ é o Chico pruquê fica insuportave quando bebe cachaça e pra larga o viço... e eu pruquê mereço” (ANTUNES,

2003, p. 310). O que entra em contradição com o que Magdalena Antunes escreveu em outro momento: “Ainda hoje estas singelas palavras me consolam o coração. Lá em casa ninguém apanhava” (ANTUNES, 2003, p. 310).

Para toda a família, e inclusive para Patica, Tonha era um modelo que Magdalena Antunes não deveria se espelhar, pois aquela não se adequava às normas de subserviência impostas por seus senhores, e por tal motivo sofria represálias. Ao longo do Oiteiro, Tonha aparece enquanto contraponto a Patica, que, além de se mostrar mansa e submissa, ainda condenava a menina negra por esta não ser como ela, que aparentemente não tinha forças para lutar contra os opressores, cabendo-lhe assim conformar-se. No entanto, é Tonha que é invejada por Magdalena Antunes. Esta sonhava em ter a liberdade da neta de escravos para poder circular pelos espaços sem se preocupar com as convenções, com as expectativas e com a etiqueta do seu grupo social.

As instituições de ensino onde Magdalena Antunes estudou, tanto a escola de nível primário em Angicos mas, sobretudo, o Colégio de São José em Recife, visavam modelar o comportamento da menina que era filha de senhores de engenho a um ideal esperado, distanciando-se de Tonha, que era vista por todos na casa-grande como desobediente e imprudente, estando assim longe de conhecer os códigos de civilidade valorizados por aquela sociedade. Este dado é confirmado em um episódio muito particular, quando Magdalena Antunes retorna de férias do colégio de Recife, onde estava já há três anos. Ao chegar juntamente com seus irmãos, a menina foi recebida com festa no sobrado da família na cidade, onde se reuniram as principais personalidades do lugar em um acontecimento bastante celebrado.

Magdalena Antunes salientou que a velha escrava que fazia parte da comemoração olhava para ela admirada, vendo que a menina que havia saído anos antes não era a mesma que agora regressava. Assim Magdalena Antunes escreveu: “A Patica olhava-me embevecida! Como está inducada, delicada, sem intiquetas e sem os assanhamentos da negrinha Tonha!” (ANTUNES, 2003, p. 193). Ou seja, a partir do encantamento da escrava em relação aos novos ares incorporados pela menina, é visível que Magdalena Antunes se aproximava cada vez mais de um padrão de mulher valorizado socialmente, do qual a menina Tonha não possuía traços. Todavia, era Tonha a principal projeção de liberdade aos olhos da memorialista. Sobre o processo de modelação por que passou Magdalena Antunes, falarei adiante.