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CAPÍTULO 2 – HISTÓRIA DE UMA EXPERIÊNCIA: O “FAZER-SE” DO MOVIMENTO

2.1.1. As primeiras demandas e as disputas internas

Nos primeiros anos é possível observar a preocupação dos estudantes não só com as questões estritamente educacionais, mas com a política e os problemas nacionais presentes na sociedade de então. Isto fica claro nas teses levantadas para discussão no momento do 2º Congresso Nacional dos Estudantes, de 1938, que, de forma resumida, abordou nos seguintes pontos (POERNER, 2004, p.126-130):

1) Situação cultural: função da universidade; formação e orientação profissional e técnica;

bolsas de estudos e viagens de intercâmbio universitário; bibliotecas; difusão da cultura etc.;

2) Situação econômica: problemas das taxas de matrículas; problemas de habitação –

cidades universitárias; casas de estudante; problemas de alimentação; estágio remunerado; assistência médica, dentária e judiciária etc.;

3) Saúde: higiene escolar, educação física etc.;

4) Mulher estudante: a mulher estudante frente ao problema do trabalho e em face das

organizações profissionais; a mulher estudante frente ao problema do lar; associações femininas; a instituição do divórcio e do exame pré-nupcial obrigatório; o ampara das leias trabalhistas à mulher etc.

5) Entre estes, também foi discutido: a luta contra o analfabetismo; o ensino reacionário

nas escolas e a proposição de uma cadeira de Sociologia nos cursos superiores; educação de adultos, ensino rural etc.

A sugestão e discussão das pautas do 2º Congresso Nacional dos Estudantes contou com a participação de várias entidades representativas estudantis de diferentes partes do Brasil. Chama-nos atenção a qualidade das propostas discutidas à época – muitas delas ainda hoje não resolvidas – e, mais especificamente, a pauta que aborda questões relativas ao papel da mulher na sociedade, uma verdadeira revolução naquele momento em que era bem mais comum à mulher as funções relativas ao espaço privado e, ao homem, as funções do espaço público.

No plano internacional, a década de 1940 foi marcada pelos acontecimentos da 2ª Guerra Mundial e por seus desdobramentos. Enquanto o governo Vargas flertava com nazifascismo europeu, os estudantes mostraram – talvez pela primeira vez em sua curta existência – seu poder de mobilização contra as forças conservadoras e de orientação totalitárias que pretendiam influenciar a política brasileira. Foi assim que teve início uma ampla mobilização dos estudantes ligados à UNE contra o apoio do Brasil às forças do Eixo.

Iniciado nas universidades, o movimento logo passou a contar com apoio de professores de diferentes centros acadêmicos do país. Comissões estudantis percorreram as redações de jornais, realizaram discursos em praças públicas e procuravam apoio entre os membros do governo Vargas. A ação dos estudantes culminou com a passeata de 4 de julho no ano de 1942, no Rio de janeiro, que contou com a participação de mais de mil estudantes. Poerner (2004, p.147), mostra que o esforço dos estudantes contra as forças nazifascistas foi determinante sobre a opinião pública nacional “[...] tanto que os nazistas e fascistas sustentavam, na época, que as atividades dos estudantes não passavam de manifestações de ‘baderneiros’ e ‘jovens irresponsáveis’”.

À esta altura, a UNE já havia tomado parte em relação às principais questões políticas e de repercussão nacional. A participação e pressão exercida pelos estudantes ao se posicionarem contra a presença do Brasil na Segunda Guerra – além de outros episódios como a luta pela anistia dos presos políticos e pela democratização – teve impacto na relação amistosa de até então entre os estudantes e o governo Vargas.

O Estopim que marcaria a cisão completa entre a UNE e Vargas se deu com a morte do estudante Demócrito de Souza Filho, primeiro secretário da União dos Estudantes de Pernambuco, em março de 1945, durante um comício pró-candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes, após o novo interventor de Recife determinar a repressão da manifestação. O episódio pôs fim a qualquer tipo de relação cordial com o governo – à essa altura mergulhado na ditadura Vargas. Desta forma, “declarando guerra ao governo, a UNE mobilizou estudantes, políticos e trabalhadores para frustrar a chamada ‘união nacional’ em torno de Vargas” (POERNER, 2004, p.162).

No final da Segunda Guerra Mundial o governo Vargas estava desgastado e entre os estudantes já havia um consenso em torno da democracia com eleições livres e com as liberdades civis. É neste momento que se acentua uma divisão interna no quadro da UNE entre estudantes ligados à UDN, por um lado, e estudantes ligados ao Partido Comunista, por outro. No final da década de 1940, estes dois grupos se revezaram na diretoria da UNE e disputaram o interesse dos estudantes a partir de um forte acirramento político e ideológico. No plano internacional, o fim da Segunda Guerra acentuou as diferenças entre EUA e URSS em torno da hegemonia político-ideológica, econômica e militar em todo mundo. Internamente predominava no Brasil “o antidemocratismo básico dos liberais brasileiros [e o] visceral anticomunismo das elites” (REIS, 2002 apud Mattos, 2014, p.77).

Este período foi marcado também por uma forte mobilização da UNE juntamente com diversos setores da sociedade civil em torno da campanha “O petróleo é nosso”. A campanha

visava assegurar o monopólio estatal sobre a exploração do petróleo brasileiro. Neste momento, o que figurava como pano de fundo era o sentimento nacionalista que visava garantir a autonomia econômica do Brasil em detrimento da entrada do capital estrangeiro. A campanha pelo petróleo acirrou ainda mais as posições de grupos tanto favoráveis como contrários a intervenção estrangeira em assuntos de interesse nacional.

Entre os anos de 1947 e 1950, os temas mais frequentes defendidos pela UNE, além da campanha pelo petróleo, estiveram relacionados ao alinhamento da entidade aos movimentos internacionais da Federação Mundial da Juventude Democrática (FMJD) e da União Internacional dos Estudantes (UIE), a adesão da UNE ao movimento pela paz mundial, as reivindicações pelas reformas do ensino, os problemas econômicos dos estudantes e a autonomia das entidades estudantis (MATTOS, 2014, p. 84-85).

Como se pode ver, os primeiros anos de estabelecimento e de consolidação da UNE foram marcados, por um lado, por sua forte presença nos debates dos grandes temas políticos, sociais e econômicos do país e, por outro, por uma acirrada disputa interna entre diferentes grupos, organizações e partidos de orientações ideológicas distintas. Ao analisar a atuação da UNE entre os anos de 1945 e 1964 – com foco na ação dos grupos e partidos que se revezaram na diretoria da entidade – Mattos (2014) nos mostra os constantes embates entre estudantes ligados à esquerda e à direita do espectro político e seus esforços em ampliar sua influência sobre o conjunto dos estudantes.

Assim, no período acima citado foi intenso os conflitos entre estudantes ligados a UDN e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Entre os anos de 1947 e 1949, estiveram à frente da direção da UNE estudantes do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Registra-se também a presença de organizações e tendências radicais que visavam combater as esquerdas a partir do discurso anticomunista. Além destes, outros grupos disputaram a atenção dos estudantes neste período como: a Juventude Comunista (JC), Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP) (MATTOS, 2014, p. 25-26).

Contra a tese de um movimento universitário unitário, progressista e que se coloca sempre ao lado dos interesses populares, Mattos (2014) afirma que tal movimento é um espaço em constante disputa. Assim, adjetivos como “inconformados”, “renovadores”, “progressistas”, “engajados” ou “revolucionário” presentes em boa parte das publicações sobre o tema se mostram fluidos e não dão conta da heterogeneidade do movimento estudantil. Segundo o autor, para uma melhor compreensão da atuação das entidades estudantis se faz necessário estar atento ao repertório dos estudantes, suas redes de relações, demandas e as possibilidades de diálogo com outras forças políticas.

A partir dessa identificação, conclui-se que não tenha existido uma UNE sempre progressista, sempre ao lado dos interesses populares ou que, quando isenta dessas características, a entidade tenha se desfigurado das suas tarefas consideradas inatas. Pelo contrário, os repertórios da UNE e os seus posicionamento, tanto nos momentos em que a entidade se colocou ao lado das forças de esquerda, quanto nos momentos em que se dedicou acirradamente contra o comunismo, foram resultados das disputas e das demandas que predominaram no interior da entidade: de intervenções organizadas que, no contexto nacional e internacional, buscaram legitimar crenças e posicionamentos que, expressadas pela UNE, passaram a ser adotadas pelos estudantes (MATTOS, 2014, p. 339-340).

Nos anos que se seguiram após o Estado Novo, a direção da UNE continuou sendo disputada por estudantes ligados à grupos e partidos de esquerda e da direita. A analogia a um campo de batalha não seria de todo um exagero, tendo em vista o contexto de forte repressão e estigmatização das esquerdas comunistas no período que vai do Pós-Segunda Guerra e que culmina com a ascensão dos militares ao poder em 1964.

O período do governo Eurico Dutra (1946-1951) foi marcado pelo pouco diálogo e forte repressão policial aos estudantes. Isto se observou, principalmente, em dois momentos: um deles foi na ocasião do Congresso da Paz em que a sede da UNE foi invadida pelo esquema policial de Dutra; e o outro se deu na ocasião dos protestos estudantis contra o aumento das passagens dos bondes no Rio de Janeiro, ambos em 1946. Em 1951, com a direção da UNE sob influência dos estudantes ligados à direita, registra-se a infiltração norte-americana no movimento estudantil brasileiro com a presença de estudantes americanos enviados pelo Departamento de Estado. O episódio se repetiria em 1956 com a vinda da estudante americana Helen Rogers que, com o aparente objetivo de propor um intercâmbio de experiências culturais e estudantis, visava introduzir o anticomunismo entre os estudantes. A tentativa se viu frustrada diante da negação dos diretores da UNE, desta vez sob orientação progressista (POERNER, 2004, p.164-170).

No início dos anos 1950, com os estudantes da direita udenista na direção da UNE, foram frequentes as tentativas de derrubada do governo nacionalista de Getúlio Vargas que voltara à Presidência da República, desta vez eleito através de eleições democráticas. O intervencionismo estatal de Vargas e a proteção do mercado nacional da influência estrangeira nunca foram bem vistos pelos estudantes e setores políticos da direita, uma vez que tais atitudes frente ao Estado ferem os princípios liberais da autorregulação do mercado.

Esta situação mudaria por completo com a passagem do governo Vargas para o de Juscelino Kubitschek, momento em que há uma reorientação da política econômica com vistas a acelerar o desenvolvimento econômico do país. Isto se daria com a implementação do

Programa de Metas, a “menina dos olhos” de JK, que abrangeu os setores da energia, transportes, alimentos e a indústria de base e representou um momento de profundo desenvolvimento do capitalismo no Brasil e das relações de dependência. Se durante o governo Vargas o desenvolvimento econômico e a industrialização foram pensados a partir da noção de emancipação econômica nacional, o mesmo não pode ser dito em relação ao governo Kubitschek, uma vez que, para este, industrialização e independência econômica nacional eram

entidades distintas (IANNI, 1991, p.188).

As mudanças econômicas observadas durante os anos JK possibilitaram não só o crescimento industrial brasileiro, mas o sentimento de que o Brasil estava passando por um processo de modernização acelerada – e isto se intensificou principalmente depois da construção de Brasília. De fato, era este sentimento que a propaganda oficial pretendia passar ao cunhar o slogan “50 anos em 5” que seria atingido com o plano de metas do governo.

Em síntese, ao desenvolver-se ainda mais o modo de produção capitalista no Brasil (como parte do sistema capitalista econômico mundial) desenvolveu-se tanto as relações de produção como o conjunto da estrutura social. Principalmente nos centros urbanos e industriais mais importantes do país, desenvolveu-se bastante a estrutura de classes sociais, com suas implicações políticas e culturais. [...] Pouco a pouco, avança a hegemonia da cidade, enquanto universo cultural singular, sobre a cultura de tipo agrário. [...] Nesses anos a “cultura da cidade”, enquanto sistema de valores, padrões de comportamento e modos de pensar peculiares às relações de produção geradas com a produção industrial e a expansão do setor terciário, passou a exercer uma influência ainda maior nos debates políticos, científicos e artísticos realizados nos centros dominantes do país (IANNI, 1991, p.177).