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1.1.1 – Geração

Podemos apontar o início do século XX como marco inicial para os estudos de uma “sociologia da juventude”. Embora questões relativas a este assunto já fizessem parte das preocupações investigativas dos teóricos da Escola de Chicago, na década de 20, – que o tratou a partir da questão do desvio social – foi só a partir dos trabalhos de Karl Mannheim que a sociologia avançaria nos estudos deste tema ainda pouco explorado.

É assim que Mannheim, em 1928, apresenta em seu ensaio “o problema das gerações” questões como: as mudanças geracionais; a transmissão dos bens culturais para as gerações seguintes, bem como a necessidade de novos portadores de cultura para a revitalização da dinâmica social. Desta forma, o autor inaugura os estudos pioneiros dentro do que ficaria conhecido posteriormente como “sociologia da juventude”.

Influenciado pela abordagem histórico-romântica alemã – principalmente pelas ideias inovadoras de Wilhelm Dilthey –, Mannheim se distancia do enfoque teórico positivista que predominava no pensamento liberal francês com suas análises quantitativas do ser-humano. De forma contrária, opta por uma análise qualitativa dos problemas investigados recusando associar as gerações a um conceito de tempo externalizado e mecanicista pautado por um princípio de linearidade (WELLER, 2007).

Delimitado o campo epistêmico de sua análise, Mannheim avança nos estudos sobre a geração procurando abordar o assunto em termos sociológicos, o que equivale a não perder de vista seu vínculo com os processos históricos e sociais. Nos próximos parágrafos faremos uma breve exposição dos principais pontos do ensaio “o problema sociológico das gerações”.

Neste ensaio, Karl Mannheim questiona sobre como “podemos definir e compreender a natureza da geração enquanto um fenômeno social?”. Para responder o problema, o autor procede descartando a possibilidade de aproximações do significado de geração com o de “comunidade concreta”, como a família, a tribo e a seita, que guardam “laços existenciais e vitais de ‘proximidade’”. Também não é comparável à associações e organizações regidas por estatutos e que, assim, conseguem manter a coesão de seu grupo interno.

Mannheim reconhece que o fenômeno sociológico das gerações está ancorado em fatores biológicos que determinam o ritmo da vida em nascimento e morte. No entanto, tal fenômeno não se reduz apenas ao fator biológico uma vez que,

Não fosse pela existência de interação social entre os seres humanos, pela existência de uma estrutura social definida, e pela história estar baseada num tipo particular de continuidade, a geração não existiria como um fenômeno de localização social; existiria apenas nascimento, envelhecimento e morte (MANNHEIM, 1982, p.72).

Assim, para o autor, os fatores biológicos possuem uma relevância sociológica, de forma que se faz necessário compreender o fenômeno geracional como um tipo particular de situação social. No entanto, persiste a questão: como seria possível compreender sociologicamente a natureza da geração?

Mannheim vai responder a esta questão procurando aproximar a noção de geração à outra categoria social. Desta forma, a geração é apresentada pelo autor como algo que se assemelha estruturalmente à posição de classe (ocupada por um indivíduo na sociedade). O autor explica que o indivíduo pertence a determinada classe, quer tenha ou não consciência disso, quer aceite ou não. Igualmente se dá com a geração: o indivíduo pertence a determinada geração quer tenha ou não consciência disso, quer aceite ou não.

Mannheim observa que há uma tendência entre aqueles que pertencem a uma mesma classe, geração ou a um determinado grupo etário a agir conforme modos definidos de comportamento, sentimento e pensamento que são comuns à classe, à geração ou ao grupo ao qual pertence o indivíduo. Assim, segundo o autor, há uma tendência “inerente a” uma situação social que circunscreve os participantes de uma situação comum numa mesma gama potencial de experiências e formas de pensamento dentro de um processo de repetição cotidiana vivenciado pelos membros de uma mesma classe, grupo ou geração.

Mannheim enumera algumas características da sociedade marcada pelo fenômeno das

gerações:

a) novos participantes do processo cultural estão surgindo, enquanto b) antigos participantes daquele processo estão continuamente desaparecendo; c) os membros de qualquer uma das gerações apenas pode participar de uma seção temporalmente limitada do processo histórico, e d) é necessário, portanto, transmitir continuamente a herança cultural acumulada; e) a transição de uma para outra é um processo contínuo (MANNHEIM, 1982, p.74).

Mannheim propõe a seguinte experiência: considerar a possibilidade de uma sociedade imaginária em que não houvesse sucessão de gerações. A alusão a tal sociedade utópica teria como fim pensar os aspectos da vida em sociedade que resultam da existência de gerações. O simples exercício de se imaginar tal sociedade rapidamente nos torna consciente das dificuldades de um mundo assim. De forma contrária, pensar a sucessão de gerações no plano social nos leva a coincidir nossas ideias com o que o autor chama de “fatos fundamentais relativos às gerações”.

O primeiro deles é o constante surgimento de novos grupos etários em que a produção cultural de uma sociedade se dá a partir da contribuição de diferentes indivíduos, através da sucessão das várias gerações. Entretanto, o contato com a herança cultural acumulada vai se dar de forma diferente para cada um. Para Mannheim é o ritmo da mudança biológica (que leva o indivíduo de uma geração à outra) que vai permitir o “contato original”, ou seja, encontrar algo de novo na transmissão da cultura que pode ser impactante na trajetória do indivíduo, mas que sua assimilação, uso e desenvolvimento pode ser modificada.

Um outro fato importante relativo a sucessão das gerações está ligado à memória e ao desaparecimento de membros das gerações anteriores portadores da cultura. “Para a sociedade continuar a existir, a recordação social é tão importante quanto o esquecimento e a ação a partir do zero” (MANNHEIM, 1982, p.76). É neste sentido que o autor destaca dois modos através dos quais a memória pode ser ativada podendo trazer para o presente a experiência passada, são eles: a) através de “modelos conscientes reconhecidos”, em que as pessoas moldam suas

condutas; e b) através do que o autor chama de “padrões inconscientemente ‘condensados’”. Tais padrões encontram-se “implícitos” ou “virtuais” e podem ser percebidos, por exemplo, na forma como as experiências passadas são trazidas à tona através da memória.

No entanto, Mannheim chama a atenção para a seleção entre os dados disponíveis, quase sempre inconscientemente, em que “[...] o material tradicional é transformado para adequar-se à nova situação prevalecente, ou então potencialidades anteriores despercebidas ou negligenciadas naquele material são descobertas durante o desenvolvimento de novos padrões de ação” (MANNHEIM, 1982, p.76). A importância da memória ou “recordação social” para transformar, readequar ou perceber as potencialidades da herança cultural das gerações anteriores aos novos padrões de ação do presente são fundamentais.

O terceiro fator diz respeito ao limite temporal da participação dos membros de qualquer uma das gerações no processo histórico. Aqui, a categoria de “similaridade de situação” é proposta como mais adequada para se analisar a questão. No entanto, o fato das pessoas estarem expostas à mesma fase do processo coletivo, o que caracteriza a similaridade de situação, não é o suficiente para afirmar que todos estão em uma posição comum em relação a vivência dos acontecimentos, uma vez que há uma “estratificação da experiência”. Isto posto, “o que realmente cria uma situação comum é eles estarem numa posição para experienciar os mesmos acontecimentos e dados, etc., e especialmente que essas experiências incidam sobre uma consciência similarmente ‘estratificada’” (MANNHEIM, 1982, p. 79-80). Assim, a vivencia de situações comuns deve vir acompanhada de uma semelhança na forma como cada acontecimento é processado a nível de consciência para que possamos falar de uma posição em comum entre os membros de uma geração.

Outro ponto a ser destacado diz respeito a ininterrupta transmissão da herança cultural, “[...] cujo aspecto mais importante é a passagem às novas gerações dos modos tradicionais de vida, sentimentos e atitudes” (MANNHEIM, 1982, p.81). No entanto, essa transmissão da cultura herdada se dá não sem tensão uma vez que os problemas experienciais dos jovens serem definidos por um conjunto diferente dos de seus professores. “Essa tensão é impossível de ser solucionada exceto por um fator de compensação: não apenas o professor educa seu aluno, mas o aluno também educa o professor. As gerações estão em um estado de interação constante” (MANNHEIM, 1982, p.83).

O último dos fatos fundamentais relativos às gerações analisado por Mannheim diz respeito a contínua mudança de gerações. A transição de uma para outra geração envolve não apenas as gerações mais velhas e as mais novas, mas soma-se à interação outras gerações “intermediárias”. Aqui, o dinamismo da sociedade (e o seu contrário) tem implicações na forma

como cada geração vai influenciar a outra. Nas sociedades estáticas, prevalece uma atitude de fidelidade, ou seja, há uma tendência da geração mais nova se adaptar à mais antiga. De forma contrária, “com o fortalecimento da dinâmica social, entretanto, a geração mais antiga se torna cada vez mais receptiva às influências da mais nova” (MANNHEIM, 1982, p.84). A constante mudança de gerações, assim exposta, explicita o processo dinâmico em que ela ocorre na sociedade mostrando como as gerações se conectam numa ação recíproca.

Mannheim analisa ainda três aspectos relativos ao fenômeno da geração que denomina de “Status de geração”, “Geração enquanto realidade” e “Unidade de geração”. O “status de geração” designa aqueles que nasceram dentro de um mesmo período histórico e cultural. No entanto, pode-se falar em “geração enquanto realidade” “na medida em que [os indivíduos da mesma geração] participam das correntes sociais e intelectuais características de sua sociedade e período, e na medida em que têm uma experiência ativa ou passiva das interações das forças constituintes da nova situação” (MANNHEIM, 1982, p.86). Por fim, a “unidade de geração” diz respeito não apenas a participação de vários indivíduos nos processos históricos de seu tempo, mas, principalmente, a uma identificação de reações e uma afinidade na forma como se relacionam com suas experiências.

Desta forma, é possível a coexistência de unidades de gerações antagônicas. Como exemplo Mannheim cita a juventude romântico-conservadora e o grupo liberal-racionalista alemão que, apesar de pertenceram a mesma geração no início do século XIX, reagiam diferentemente aos processos históricos vivenciados por todos em comum neste período.

O esforço de Mannheim na compreensão sociológica do fenômeno da geração evidencia uma postura de análise qualitativa do tema em detrimento das análises positivistas predominantes em sua época. Desta forma, realiza uma análise minuciosa em que evidencia a importância dos fatores sociológicos e históricos que incidem sobre a geração sem, contudo, perder de vista o aspecto biológico. A importância dos estudos geracionais e da juventude para a compreensão do comportamento político dos jovens na contemporaneidade nos fará retomar alguns destes pontos estudados por Mannheim no quarto capítulo.

1.1.2 – Juventude

Após enunciar os pressupostos básicos de uma “teoria da geração”, Mannheim trabalharia depois nos estudos sobre a juventude. Este tema foi abordado em seu ensaio “O problema da juventude na sociedade moderna”, publicado em 1943, portanto, quinze anos depois de suas investigações acerca do tema das gerações.

Na primeira parte do ensaio Mannheim localiza a discussão que se seguirá a partir da análise dos antecedentes históricos e do contexto concreto nos quais a juventude está inserida. Assim, o autor sai do terreno estritamente biológico que demarca o tema circunscrevendo-o dentro do campo sociológico. De início levanta o seguinte problema: “qual o significado da juventude na sociedade? [E] com que pode a juventude contribuir para a vida da sociedade?” (MANNHEIM, 1968, p. 69). A novidade sociológica é ressaltada pelo próprio autor em dois pontos: o primeiro diz respeito a análise histórica e concreta em que a juventude atuará; o segundo, está ligado à reciprocidade entre juventude e sociedade.

A juventude, para Mannheim, é vista como uma reserva de “recursos latentes” que a sociedade pode mobilizar. É assim que, para o sociólogo, “a função específica da mocidade é um agente revitalizante; é uma espécie de reserva que só se põe em evidência quando essa revitalização for necessária para o ajustamento para circunstâncias em rápida mudança ou completamente novas” (MANNHEIM, 1968, p.72).

No entanto, a função que o jovem pode desempenhar varia de uma sociedade para outra. Nas “sociedades estáticas”, é comum a confiança de seus destinos na experiência dos mais velhos. Enquanto que na sociedade moderna, a juventude é sempre uma força em potencial para a mudança. Todavia, é senso comum achar que a juventude é progressista, como se esta fosse

uma condição sine qua non para aqueles que se encontram nessa fase da vida. Na verdade,

afirma o autor, tanto os movimentos progressistas quanto os conservadores podem formar organizações juvenis. Ao desenvolver sua análise a partir do contexto histórico e social da Europa da primeira metade do século XX, Mannheim não pode deixar de atentar para a ascensão do nazismo e todo o trabalho de recrutamento da juventude naquela época mostrando que, a depender das forças sociais postas em marcha, as organizações juvenis podem pender para o progressismo ou conservadorismo.

O fato primordial que coloca a juventude em condições de almejar a mudança é que

“além de seu maior espírito de aventura, ela ainda não está completamente enredada no status

quo da ordem social” (MANNHEIM,1968, p. 73). Além disso, a compreensão da juventude

moderna passa pelo entendimento de que, ao chegar nesta fase, o jovem começa a fazer parte da vida pública, momento em que se choca com as normas e valores aprendidos no seio da família e que contrastam com os que predominam no mundo dos adultos.

Mannheim descreve o processo de socialização do jovem e sua passagem pelas esferas formadoras de seu caráter como a vida em família, ainda criança, e posteriormente, já na adolescência, o contato com a vizinhança, a comunidade e algumas esferas da vida pública. “Assim, o adolescente não está apenas biologicamente num estado de fermentação, mas

sociologicamente penetra num mundo em que os hábitos, costumes e sistemas de valores são diferentes dos que até aí conhecera” (MANNHEIM,1968, p. 75).

Escrito no calor dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e da ascensão do nazismo na Alemanha – o qual fez o sociólogo deixar este país para estabelecer-se na Inglaterra – o ensaio “O problema da juventude na sociedade moderna” retoma algumas premissas de seu ensaio anterior sobre as gerações – principalmente no que diz respeito ao destaque que dá aos fatores sociais e históricos em detrimento dos fatores biológicos. No entanto, este último ensaio passa a analisar, da segunda parte em diante, a situação da Inglaterra e as implicações da guerra e do totalitarismo sobre seu povo.

Preocupado com os rumos da sociedade e da educação tradicionalista vigente (e suas implicações sobre as gerações mais jovens), Mannheim visualiza uma saída democrática e enfatiza o papel da juventude ao afirmar que “o fator especial que torna o adolescente o elemento mais importante para a nossa arrancada de uma sociedade é ele não aceitar como natural a ordem consagrada nem possuir interesses adquiridos de ordem econômica ou espiritual” (MANNHEIM,1968, p. 77). Por conseguinte, “quanto à pergunta do que a juventude nos pode dar, a resposta é: é um dos mais importantes recursos espirituais latentes para a revitalização de nossa sociedade. Ela tem de tornar-se a força desbravadora de uma democracia militante”.

1.1.3 – Apontamentos sobre o conceito de geração e juventude em Karl Mannheim

Os estudos sobre os conceitos de geração e juventude inaugurados por Karl Mannheim o colocam entre os precursores na discussão desses temas nas ciências sociais. As muitas referências a estes trabalhos, ontem e hoje, atestam a profundidade com que o tema foi tratado de modo que suas observações não se perderam e nem se prenderam ao contexto político-cultural de seu autor. Segue-se algumas observações gerais.

A contribuição maior de Mannheim na discussão dos conceitos de geração e juventude está na abordagem qualitativa com a qual analisa estes temas. Isto o faz romper com análises de até então que evidenciavam apenas os aspectos biológicos e etários. Compreendida enquanto fenômeno social, a geração é analisada observando-se seus vínculos com os processos históricos e sua existência é perpassada pela interação social que se inscreve numa determinada estrutura de sociedade.

Pensar a geração nestes termos significa observar também, como ressalta o autor, o limite temporal da participação da geração no processo histórico. Cada geração pode contribuir

com o desenvolvimento político e cultural de seu tempo, mas dentro de um limite estreito compreendido entre a vida do jovem e do adulto. Assim, Mannheim ressalta a importância de alguns elementos como a transmissão da herança cultural para as novas gerações; o papel da memória e a forma como as experiências passadas podem ser ativadas pelas novas gerações; além da coexistência de unidades de gerações antagônicas.

Estes elementos operam como ferramentas para uma melhor compreensão da dinâmica dos grupos geracionais na sociedade moderna. Assim, nos oferece elementos para se pensar tanto a participação dos indivíduos nos processos históricos, suas afinidades e divergências podendo ir das ideias progressistas à uma posição conservadora.

Já nos estudos sobre a juventude, Mannheim evidencia o choque de valores com o qual se defronta o jovem ao entrar na vida pública, os conflitos daí existentes e como se processa no plano social sua vivência com tais valores, ora aceitando-os, ora resignificando-os. Além disso, ressalta o poder de transformação da juventude, sendo esta uma força latente que pode guiar os caminhos de mudanças apontando novas direções.

Ao avançar na compreensão do fenômeno da geração e da juventude na sociedade moderna, Mannheim estabelece elementos imprescindíveis para o entendimento deste assunto ao estabelecer uma análise que permite observar a ação e dinâmica das gerações e da juventude na estrutura social. “[...] Sua perspectiva não representa apenas uma contribuição teórica para os estudos sobre juventude e gerações, mas também uma proposta teórico-metodológica de pesquisa, capaz de superar as dimensões binárias presentes em algumas correntes teórico-metodológicas” (WELLER, 2007, p.12).

1.2 Marialice Foracchi: a sociologia do jovem e do estudante na sociedade moderna