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CAPÍTULO 2 – HISTÓRIA DE UMA EXPERIÊNCIA: O “FAZER-SE” DO MOVIMENTO

2.3. Lutas pela democracia

2.3.1. A derrota das Diretas Já e a constituição cidadã

Se no plano político a sociedade brasileira se encaminhava para a retomada das instituições democráticas com a renovação dos movimentos populares, dos partidos e entidades de representação política; no plano econômico, a situação não era nada animadora.

A partir de 1980/82, o crescimento econômico estagnou em toda América Latina, levando a maioria dos países a rever suas políticas econômicas e sociais. Acentuava-se a dependência em relação ao endividamento externo, iniciando um longo período de inadimplência – era a chamada “década perdida”. O modelo econômico colocado em prática desde os anos 30, baseado na substituição de importações, chegava ao seu limite; o grande tripé do nacional-desenvolvimentismo latino-americano – intervenção estatal, capitais nacionais e endividamento externo – esgotara sua capacidade criativa e muitos países conhecerão daí em diante uma nova fase de suas vidas econômicas, a desindustrialização (SILVA, 2000, p.385).

Com a rejeição, pela Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira, com vistas a realização de eleições diretas para Presidente da República em 1984, teve início um amplo acordo entre as elites políticas visando garantir uma transição controlada “pelo alto”, se mostrando então como uma transição para um sistema constitucional e representativo de cunho conservador. Desses acordos, emerge a figura de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, como novo presidente do Brasil.

No entanto, no mês de abril do mesmo ano Tancredo falece vítima de uma infecção generalizada. Toma posse, então, o Vice-presidente José Sarney. Maranhense com longa trajetória em partidos conservadores, como a UDN e a ARENA, passou pelo PDS, com o fim do bipartidarismo, até chegar ao PMDB, em 1984. Depois de toda as mobilizações país afora pelas Diretas Já, o Brasil tinha seu primeiro presidente pós governos militares que chegou ao poder via eleições indiretas.

No Brasil, a permanência no poder de grupos e políticos conservadores, seja na democracia ou em regimes de exceção, parece estar de acordo com o que José de Souza Martins (1999) chamou de “sociedade de história lenta”, ou seja, a presença ativa e viva, na contemporaneidade, de estruturas do passado que se manifestam com uma fachada de novo. Tais estruturas põem em marcha um progresso que se apresenta como mudança, mas mudança dentro da ordem, a partir de princípios enraizados na nossa cultura política como o patrimonialismo e o clientelismo. Resumindo: mudar para que se continue do mesmo jeito. Assim, “quando o pêndulo da política brasileira oscilou, mais uma vez, da ditadura para a democracia, foi na verdade empurrado pelas esquerdas, mas puxado pelas oligarquias” (MARTINS, 1999, p. 88).

Longe de ser uma ironia do destino – como se este tivesse a capacidade de materializar coisas em nossas vidas através desta figura retórica – a posse de José Sarney como presidente, representou, naquele momento, uma atualização das forças do passado. Coube então a ele a transição para a democracia, e na impossibilidade de eleições diretas, as expectativas dos partidos e de amplos setores da população se voltaram para a convocação da Assembleia

Constituinte, em fevereiro de 1987, para redação da nova constituição. Com o encerramento dos trabalhos da Assembleia Constituinte, em setembro de 1988, nascia a nova constituição brasileira depois de 21 anos de ditadura militar no Brasil.

A constituição de 1988 foi fruto não apenas do protagonismo de parlamentares e partidos políticos, mas de amplos setores da população que haviam despertado através da chamada “sociedade civil organizada”. Esta, organizada através das associações profissionais, de bairro, de consumidores, sindicatos etc., assumiu o papel de interlocutor legítimo com o Estado. Os partidos políticos, principais instrumentos de intermediação da relação sociedade/Estado, perderam o monopólio da representatividade (SILVA, 1990, p.390-391). Deste modo, trabalhadores urbanos e rurais, servidores públicos, empresários, membros do judiciário e forças armadas e também os estudantes exerceram um papel de extrema importância na redação da carta magna através de emendas populares que, por isso, ficou conhecida também por constituição cidadã.

A eleição (indireta) para presidente, em 1985, e a constituição de 1988 marcaram uma nova relação entre Estado e sociedade civil, um novo pacto configurado na constituição cidadã. É inegável o peso da luta e resistência do movimento estudantil contra a o regime militar, de modo que se questionar como teria sido este período sem a participação do ME, se de fato ele foi decisivo para o fim do regime, se configuraria como mera especulação, portanto, longe de nossos propósitos.

2.3.2. As contradições do movimento estudantil... os estudantes se dispersam

O período democrático que se desenhava no horizonte, em fins dos anos 1970, revelava não só o fim do regime militar, tão pretendido pelos estudantes, mas também as contradições internas do movimento estudantil. Tais contradições se revelaram num progressivo descenso do ME, na falta de representação do conjunto dos estudantes e num contínuo desinteresse destes em relação ao espaço universitário como espaço de experiências políticas e culturais. Estes sintomas parecem ser consenso na literatura que aborda o tema:

Em 1980, o movimento estudantil já começava a mostrar sinais de esgotamento. Por isso e pelo progressivo distanciamento da UNE em relação à grande massa estudantil, apenas 27% dos estudantes votaram para a presidência da entidade naquele ano (CAVALARI, 1987, p.273).

Observa-se a ambiguidade e o progressivo isolamento do movimento estudantil. No final da década de 60, encontrava-se afastado da massa popular, embora encontrasse certo respaldo na base estudantil. Entretanto, no final dos anos 70, o movimento estudantil não tinha nem mesmo o relativo apoio da massa dos estudantes (CAVALARI, 1987, p.273).

Como todos que estão hoje dentro do espaço universitário, os estudantes nele vivem experiências desencontradas com sua própria condição. Situação mais dramática ainda porque esta condição não é feita por um pertencimento profissional através do qual professores e funcionários costumam amortecer as frustrações. Variavelmente descrentes da experiência acadêmica e política, decepcionam-se com um espaço que não se deixa reivindicar como perspectiva criativa: percebendo as transformações que afetam a Universidade, não apostam mais nos canais montados para pensa-la; a retórica das tradições esvaziadas barra a condição daquilo que poderia emergir como novo. Para grande parte, a rotinização generalizada e os programas tradicionais de percurso da vida universitária geram uma recusa do que aí está, sem no entanto chegar a se formar alguma imagem que geram sentido como perspectiva coletiva de presença estudantil (PAOLI, 1985 apud PELLICCIOTTA, 1997, p.199).

[...] por volta de 1978 a Universidade já se constitui um espaço pelo qual os estudantes “passam” sem um maior comprometimento/investimento de suas vidas; questão que interfere diretamente nas ações políticas. [...] Os diretórios se tornam presas das perspectivas e exercícios políticos mais ortodoxos que em geral não possuem a problemática do ensino ou da cultura como questão primordial de ação política (PELLICCIOTTA, 1997, p.199).

As explicações para este fenômeno podem ser encontradas nas mudanças institucionais pelas quais passou a universidade pública brasileira ao longo dos anos 1960 e 1970; a radicalização dos estudantes na luta armada, influenciados por diversas matrizes teóricas que guiavam as ações e apontavam um caminho a se seguir; na posterior chegada de novas levas de estudantes, pós redemocratização, num momento em que tais teorias, ao que parece, já não tinham o vigor de antes; e no posterior aparelhamento das entidades estudantis por partidos

políticos31.

Talvez o quadro seja mais complexo do que este que esboçamos. No entanto, nos parece que ele ajuda, inicialmente, a pensar a fragmentação e dispersão dos estudantes nas últimas décadas do século XX até a contemporaneidade. Como vimos mais acima, esta fragmentação que se abateu sobre o ME em meados dos anos 1970 não é única deste movimento. Neste mesmo período, vimos os partidos e grupos de esquerda perderem a hegemonia da

31Alguns autores ressaltam o aparelhamento das entidades representativas estudantis por partidos políticos como uma das principais causas do distanciamento dos estudantes. Cf. BARBOSA, 2002; MESQUITA, 2003; SANTANA, 2007.

representação política quando novos atores políticos emergiram das camadas populares pautando problemas concretos da vida cotidiana a partir de uma reivindicação direta ao Estado. Desde então, esta pluralidade de movimentos se fez presente em nossa sociedade evidenciando novas formas de atuação cívica – fenômeno este que não é exclusivo do Brasil, mas amplamente observável nas sociedades de caráter democrático.

Outro fator que não pode ser esquecido por sua magnitude e implicações, principalmente sobre as esquerdas em todo mundo no final dos anos 1980, foi o fim das experiências socialistas na URSS e nos países do Leste europeu. A queda dos regimes socialistas foi celebrada pelas potências capitalistas ocidentais, principalmente os EUA, que aproveitou o momento para receitar aos países em desenvolvimento uma série de medidas econômicas que os alinhariam à nova ordem neoliberal. Este fato, exigiu das esquerdas um balanço de suas experiências no nível teórico e político, além de um “plano de sobrevivência” num mundo em que foi decretado o “fim da história” e das grandes narrativas.

Certamente o ME foi afetado por esses fatores neste período. A hegemonia dos grupos de esquerda na direção da UNE, nos anos 1960 e 1970, permitiu direcionar as lutas estudantis a favor da educação pública de qualidade e contra o autoritarismo no poder. Após a redemocratização, os grupos de esquerda continuaram exercendo influência entre os estudantes, mas, pelo que indicam os estudos já citados, o ME se arrefeceu e perdeu boa parte de sua representatividade frente ao conjunto dos estudantes brasileiros.

No entanto, isto não quer dizer que ele não tenha se renovado. Enquanto instituição, precisou acompanhar as mudanças da sociedade e se reformular internamente absorvendo novas

demandas, como veremos mais à frente32.

Todavia, nos anos que se seguiram pós-redemocratização uma avalanche de livros, estudos, pesquisas acadêmicas e depoimentos de ex-militantes encheram o mercado editorial abordando a experiência dos estudantes nos anos de chumbo. Por outro lado, na medida em que se multiplicavam estas publicações, pouca atenção foi dada à retomada do movimento

estudantil em condições de democracia33.

De toda forma, 1985 foi um ano importante para os estudantes. Em outubro deste mesmo ano, o então presidente José Sarney sancionou a Lei nº 7.395, do deputado Aldo Arantes (PCdoB-GO), ex-presidentes da UNE, que reconhecia a representatividade do órgão estudantil