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O legado de Foracchi: balanço de sua contribuição e o desafio da compreensão da

1.2 Marialice Foracchi: a sociologia do jovem e do estudante na sociedade moderna

1.2.3 O legado de Foracchi: balanço de sua contribuição e o desafio da compreensão da

Pelo que foi exposto até aqui, nota-se a importância que os trabalhos de Foracchi assumem frente à compreensão dos principais temas que nortearam sua pesquisa, quais sejam: a juventude na sociedade moderna e o protagonismo do estudante enquanto agente de transformação. O rigor da análise, a busca dos fatores que incidem sobre a condição de jovem e de estudante e a profundidade com que buscou articular esses temas faz de seus trabalhos

referência obrigatória elevando-a a condição de uma autora clássica13.

Sendo a juventude uma fase da vida e o comportamento do jovem/estudante balizado pelo conjunto de elementos apresentados por Foracchi, cabe nos questionarmos a respeito da experiência de tempo e espaço vivenciada pelo jovem/estudante nos dias atuais; como as observações levantadas pela autora podem nos ajudar a compreendê-las e seus limites. Neste sentido, vale nos determos no trecho a seguir:

Ser estudante é, sob esse aspecto, uma condição especial que pressupõe o preparo gradativo e dosado a uma atividade profissional futura, o que equivale a dizer, a um modo definido de participar da sociedade do seu tempo. É,

portanto, uma virtualidade, eminentemente voltada para o futuro.

Qual seria, contudo, o futuro aberto para o estudante? As próprias características dessa condição social específica – a de estudante – indicam que o futuro que para ele se descortina, é o futuro possível no contexto da

classe, ou seja, da situação da classe no sistema global (FORACCHI, 1965,

p.211, grifos nosso).

A experiência da juventude na sociedade contemporânea tem nos mostrado uma ampliação dos processos de socialização que marcam suas vivencias e formas de experimentação de mundo. Muito antes de chegar ao ensino superior é possível que o jovem tenha tido a oportunidade de contato com diversos grupos juvenis pelos mais diversos interesses: político, religioso, raça, sexualidade, gênero, fins culturais etc. No contexto da sociedade contemporânea – marcada pelo processo da globalização e da presença massiva da tecnologia no cotidiano dos jovens –, estas experiências se somam à socialização tradicional ofertada pela família e pela escola, ampliando o leque de fatores que balizam o comportamento do jovem nos dias atuais.

O grau de diversificação dos meios de socialização que permeiam o cotidiano do jovem nas sociedades contemporâneas apontam para uma ampliação das “instancias reguladoras” dos costumes e formas de vida em sociedade. Como consequência, a família e a escola – instituições tradicionais voltadas para a formação de indivíduos integrados com o ideal público e para o desenvolvimento da ordem do sistema social – perderam a centralidade enquanto principais meios socializadores.

Simultaneamente, ocorre – ao longo do século XX e XXI – a consolidação de um mercado difusor de informações e de entretenimento que aos poucos se consolida no Brasil promovendo transformações na dinâmica cultural contemporânea. Assim, os meios massivos de difusão de informação – plasmados nos modelos da cultura de massa, no século XX; e a

cultura pós-massiva14, no século XXI – “partilham, pois, com a família e a escola, uma

responsabilidade pedagógica”. Estas instituições, “[...] tradicionalmente detentoras do

14 Neste quesito é interessante a distinção feita por Lemos (2014) entre mídia massiva e pós-massiva: “As mídias

de função massiva são, em sua maioria, concessão do Estado, controlam o fluxo da informação que deve passar pelos mediadores profissionais, instituem e alimentam um público (audiência, consumidores, massa) e são mantidas por verbas publicitárias, grandes empresas e grupos políticos. Estas mídias criaram a esfera e a opinião públicas modernas. São mídias de informação. As mídias de função pós-massiva surgem com as possibilidades ampliadas de circulação da informação com a globalização das redes telemáticas. O fluxo é descentralizado, típico

monopólio de formação de personalidades, aos poucos perdem seu poder na construção das identidades sociais e individuais dos sujeitos” (SETTON, 2000, p.346).

Pensar o jovem na sociedade contemporânea exige um esforço compreensivo que permita ver que, além das exigências coercitivas da classe, coexistem novas formas de experiências tempo-espaciais que moldam a cultura juvenil atual; e que o tom imperativo que

as diferentes posições de status imprimiam na trajetória (e na conduta) dos sujeitos de ontem,

hoje se dilui entre as demais formas socializadoras que perpassam o cotidiano da juventude. A passagem de uma “sociedade industrial moderna” – muitas vezes também chamada pela autora de “sociedade tecnocrata – para a sociedade contemporânea globalizada promoveu uma reestruturação do capitalismo impactando na reorganização e papel das instituições da sociedade contemporânea que, por sua vez, refletem nos diversos campos das relações humanas. É neste sentido que, pensar em “relações de dependência” e “expectativa de retribuição” – mantidas e sustentadas pela família nas relações interpessoais e que depois se estendem nos espaços do trabalho e da universidade – seria negar, hoje, um contexto plural de socialização do jovem em que tais elementos, no âmbito da estrutura familiar contemporânea, perdem sua força coercitiva.

Isto implica em observar que a própria universidade – enquanto instituição voltada à formação cultural e para integração do indivíduo ao sistema – também mudou em sua composição, formas de acesso e em sua lógica de funcionamento com a informatização dos processos de gestão e controle. Para Foracchi (1977, p.7), em meados dos anos 1960 “[...] o estudante universitário [poderia] se considera[r] [...] privilegiado, usufruidor exclusivo de oportunidades inexistente para a maioria dos jovens”. Já no início dos anos 1970, quando analisa o potencial de transformação da juventude moderna, a autora (1972, p.39) afirma que: “Trata-se de jovens privilegiados sob o ponto de vista social, pois pertencem, no geral, às classes superiores; privilegiados sob o ponto de vista educacional e intelectual, pois geralmente são jovens que tiveram acesso à educação superior”.

Este quadro apontado por Foracchi contrasta com as mudanças ocorridas nas últimas décadas que se deu, principalmente, a partir do investimento em políticas públicas de expansão

e financiamento do ensino superior15. Tais políticas viabilizaram o acesso de estudantes de

estratos economicamente menos favorecidos ao ensino superior tanto nas instituições públicas

15 Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), Financiamento

quanto privadas. Isto promoveu uma transformação significativa na composição das camadas sociais que constituem a universidade nos dias atuais.

A alteração no perfil dos estudantes do ensino superior será abordada com detalhes mais à frente (no 3º capítulo), mas, por hora, basta dizer que esta alteração tem implicações não só na ampliação do acesso a grupos menos favorecidos da sociedade à educação universitária, mas também numa maior diversidade no contingente estudantil que traz consigo a urgência da demanda da assistência ao estudante e discursos de alteridade.

No texto "Retomada de um legado intelectual: Marialice Foracchi e a sociologia da juventude", Maria Helena Augusto (2005), ao analisar o legado da contribuição de Foracchi na discussão sobre juventude e movimento estudantil, observa que muito embora os estudos de Foracchi sobre o tema permaneçam centrais, há hoje um relativo esquecimento de seu trabalho e atribui isto ao refluxo sofrido pelo tema que se deu em grande parte após os anos 1980.

A partir de então, os processos de mudança que se manifestaram com mais força, no Brasil, fizeram emergir e deram mais realce a outros objetos de reflexão, a outros movimentos sociais, com protagonistas até então menos

destacados (cf. Sader, 1988), minimizando a relevância dos movimentos

estudantis e da sua possível contribuição para a transformação social (AUGUSTO, 2005, p.12, grifo nosso).

Um olhar atento para a nossa história recente nos mostra que há um fluxo e um refluxo do movimento estudantil ao longo das décadas. Neste meio tempo, novas configurações sociopolíticas se desenham – ora em contextos democráticos, ora não democráticos; ora de um neoliberalismo selvagem, outrora de um neoliberalismo domesticado. Do mesmo modo, a atuação política da juventude faz e se desfaz renovando suas estratégias de luta e sua pedagogia

de ação16.